quarta-feira, 30 de julho de 2008

O anti-melodrama

François Ozon

Tem sido um osso fílmico duro de roer, um soco no estômago cinematográfico que ainda faz repercutir as suas ondas de choque sobre a minha alma, uma traição em forma de filme cujo sabor amargo ainda perdura na minha boca, um… Chega!
O melodrama barato – a existir o caro… –, algo que nunca esteve presente nas anteriores longas-metragens realizadas pelo, provavelmente®1, melhor realizador francês da actualidade, nascido em Paris há menos de 41 anos (na imagem com um ar sério e não melodramático antes de proferir que a campónia e untuosa Romola Garai era a sua musa).
Como é possível ter-se por musa uma Romola?

Antes de descobrir a fonte de inspiração etérea, François Ozon havia realizado esta excepcional sequência de filmes:

  • Gotas de água sobre pedras escaldantes (Gouttes d’eau sur pierres brûlantes, 2000)2;
  • Sob a areia (Sous le sable, 2000);
  • 8 Mulheres (8 femmes, 2002);
  • Swimming Pool (2003);
  • Cinco vezes dois (5x2, 2004);
  • O tempo que resta (Le temps qui reste, 2005)

No admirável Sob a areia, Ozon demonstra toda a sua arte anti-climáctica, que antes poderia haver traduzido pelo horror ao melodrama.
Ozon cria o ambiente soturno de uma rotina conjugal e estraçalha o interior de uma mulher, Marie (soberbamente interpretada por Charlotte Rampling), que alheada da dor surda e da infelicidade estampada no rosto do marido (Bruno Cremer) quando chegam à sua casa de férias na estância de Landes, o vê partir no dia seguinte na praia quando este lhe disse que ia tomar um banho de mar. Apesar das buscas exaustivas, o corpo não aparece, uma série de incógnitas são levantadas (fuga, suicídio, morte acidental) e poderiam ter sido exploradas por Ozon para encetar um dramalhão de choro ininterrupto, dentro e fora do ecrã (neste último caso com um sério aviso para a eventual necessidade de uso do escafandro).
Marie parte para Paris, alheando-se da ausência do marido, falando dele no presente, compartilhando o leito com um homem num assumido adultério. Assiste-se ao desmoronar interior de um personagem, sem uma lágrima, apenas com gestos, reflexões e actos aparentemente demenciais de quem não aceita o que vê, mas apenas o que sente. Jean não está morto. A confrontação com a sogra. A morgue... a alienação.

Escrito em conjunto com três mulheres argumentistas (Emmanuèle Bernheim, Marina de Van e Marcia Romano), o momento da definição ocorre em Paris, na sala de aula da universidade onde Marie ensina Literatura Inglesa; Marie lê Virginia Woolf em voz alta, As Ondas, num momento da narrativa que se situa pouco após a morte do espectral Percival, na hora da confrontação da verdade poética com a realidade dos vários "eus" de Bernard:

«E o tempo, disse Bernard, esgota-se. A gota forma-se no telhado da nossa alma e depois cai. É o tempo que a faz cair. Na semana passada, quando me barbeava, a gota caiu. Estava de pé com a navalha de barbear na mão e de repente tomei consciência da natureza habitual desse meu gesto (a gota formando-se) e felicitei ironicamente as minhas mãos por se submeterem a esta rotina. “Barbeiem, barbeiem”, disse. Continuem a barbear. A gota caiu. Durante o dia, enquanto trabalhava, o meu pensamento escapou constantemente dirigindo-se a um lugar vazio em busca de qualquer coisa perdida, de qualquer coisa que acabara. «Morto e enterrado», murmurei consolando-me com as palavras. As pessoas repararam no meu ar ausente e na inconsequência das minhas frases. E enquanto abotoava o sobretudo para regressar a casa disse mais tragicamente: “Perdi a minha juventude.”»
Virginia Woolf, As Ondas, pág. 148
[Lisboa: Relógio D’Água, 1988, 239 pp; tradução de Francisco Vale; obra original: The Waves, 1931]

Marie interrompe a leitura nesse ponto da história, o terrível circunlóquio do despertar de Bernard, avista alguém no anfiteatro que ela sabe lhe poderá interromper o devaneio, a fuga que empreendeu para não ter de enfrentar a dor da perda. Interpelada no corredor, responde ao interlocutor, impávida, serena, firme da sua convicção do que é a verdade.
É, seguramente, um dos momentos mais sublimes da cinematografia contemporânea... apenas fica o silêncio da estupefacção...


Notas:

  1. Agradeço à Carlsberg pela utilização do advérbio de modo, que, nestes casos, impede que se ignorem os velhos ainda em actividade (Resnais, Rohmer, Godard, Rivette, Varda, Chabrol,…), os de meia-idade (Garrel, Téchiné, Schroeder, Chéreau,…) e os mais novos (Canet, Noé, Gondry, Carax, Honoré,…).
  2. Já o vi Luís, e agradeço-te a sugestão que colmatou uma das minhas falhas ozónicas (tenho ainda por ver Sitcom e Les amants criminels, para além da esmagadora maioria das curtas).

Porquê François? (em francês dava rima; volto à minha pose melodramática.)

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