segunda-feira, 31 de março de 2008

Decisão



Texto (post) n.º 450
Até às 22:30 de 31 de Março de 2008 (desde 2 de Dezembro de 2006):
40.288 visitantes
52.050 páginas visitadas
Fonte: eXTReMe Tracking

Em contagem decrescente até 5 de Abril: 20.550 caracteres de prosa traduzida, hoje a partir da meia-noite (usa como te aprouver, Henrique, suponho que te irá interessar.)
Título e autor (norte-americano) revelados no final da contagem.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Primeiras Impressões


Svn Fngrs
1. The Seus
2. Garbage Heap
3. Half Man
4. I Sent Away
5. Seven Fingers
6. The Tale Of Lonesome Fetter
7. When They Come To Murder Me

Primeiras impressões: "thumbs up" (os dois, ainda os há?...)

Notas:
A vermelho: não te metas por aí, pá...
A azul: a minha preferida do momento. Um pouco pop, é certo, mas há laivos do baixo (salvo seja) de Deal.
A laranja deslavado (LFM): As que prometem...

Os Melhores de Sempre



Sinatra & Jobim

(estado em que se encontra este blogue: melancolia, saudade,... feeling blue...)

Tô nem aí

I’m Not There e a sua tradução portuguesa lembraram-me o mega-ultra-hit das pistas de dança algarvias, resvaladiças, triplamente perigosas até: não só pelo deslizamento garantido a puxar à espargata de verdadeiro perigo escrótico-traumático, como de levar uma cotovelada devido aos braços que se agitam frenéticos no ar, voluteando, aspergindo energia (e não só, como iremos já verificar), cuja intensidade ganhou outro fulgor com a descida do IVA para os ginásios – Sócrates e o tratamento do físico dos portugueses, fomentador dos verdadeiros centros de cultura, no seu sentido mais amplo, porque garante uma boa criação de fungos, sem qualquer tipo de ameaça de ruptura de stock, a fazer vender em barda o utilíssimo Canesten em pulverizador –, e depois aquele inultrapassável aroma sudorífero, verdadeiros substitutos do iodo reparador estival do nosso aparelho respiratório nas nossas saudáveis e ventosas praias nortenhas.

De modo que, I’m Not There poderia ser “Tô Nem Aí, mi deixa, cara”, em vez do anódino Não Estou Aí, porque disso já todos nós sabemos – ou deveríamos ter sabido, antes de despender os cerca de 5 euros para mais de duas horas de Olcadil (deixei-me do Xanax) –, e isto se exceptuarmos Dylan, ele mesmo numa filmagem pirata, de harmónica nos beiços entoando uma quase inédita “I’m Not There”, mesmo antes do aparecimento dos piedosos e libertadores créditos finais.


Os do meio são meros personagens de ficção. Os restantes quatro existiram e de alguma forma contribuíram, segundo Haynes, para a imagem e para o desenvolvimento dos quase cinquenta anos de carreira de Bob Dylan.
Billy the Kid (Richard Gere) e Rimbaud (Ben Whishaw, o do nariz prodigioso), e uns desconhecidos impulsionadores da folk music americana Woody Guthrie (Marcus Carl Franklin) e Jack Rollins (Christian Bale, que não sabe desempenhar mal um papel, apesar de alguma histrionia no último Herzog). Finalmente, temos a andrógina Jude Quinn (Cate Blanchett, o pronto-socorro para a conquista de galardões) e o actor ficcionado, machão dos sete costados, Robbie Clark que ganha fama quando interpreta Dylan (interpretado pelo malogrado Heath Ledger). Segundo o realizador, são todos episódios e facetas da vida atribulada de Mr. Zimmerman... mas, na cabeça de Mr. Haynes.

E como já havia prometido que sobre cinema, só falaria para o final de 2008, fico-me por aqui. Porém, amanhã assistiremos à materialização em texto da veia encomiástica da elite cinéfilo-intelectual lusitana sobre o experimentalismo de Todd Haynes, os planos, os vários tipos de película que usou para filmar, Rimbaud num tribunal warholiano, Ginsberg e Orlosvky recitando de chopper poemas para o asfalto, representando o seu grupinho sanfranciscano
de bêbados letrados da década de 50 (e o Castro só surgiu nos 70).
Não há fio condutor. As partes não encaixam. É expressionismo abstracto sem qualquer tipo de alucinação criativa.

E Dylan sabe? Gostou, Mr. Zimmerman?

Tô nem aí, Tô nem aí...
Pode ficar com seu mundinho, eu não tô nem aí


(carregar aqui, só para recordar este hino tão socrático à cultura do físico).

quinta-feira, 27 de março de 2008

Permanece a dúvida: Что делать?

Que fazer?
De regresso ao denso nevoeiro da incerteza.

Assim não há dúvida existencial que resista

Já me havia habituado a vê-lo assim, cabelo branco, rugas vincadas, em filmes de faca e alguidar, muitas vezes envergando um enorme par de óculos quadrados de massa. Tinha 93 anos:

Richard Widmark

Richard Widmark
(26 de Dezembro de 1914 – 24 de Março de 2008)

Um mecânica tétrica: este blogue, nos últimos dias, reaparece da bruma depressiva para anunciar mortes…

quarta-feira, 26 de março de 2008

Perplexidade Leninista...

Que fazer, foda-se?

Nota transplantada da legenda da imagem acima por motivo de visibilidade: peço as minhas sinceras desculpas a todos a quem eu ainda não respondi às interpelações feitas em textos anteriores. Crise existencial: life sucks.

sexta-feira, 21 de março de 2008

Ao ritmo de “1 por dia”...

Aproxima-se o equinócio de Primavera, e estes acontecimentos mortais sucedem-se numa cadência insólita:

Paul Scofield (©Associated Press)


Paul Scofield
(21 de Janeiro de 1922 – 19 de Março de 2008)


Filho da prodigiosa escola dramática inglesa, muitas vezes comparado ao gigante Laurence Olivier, notabilizou-se sobretudo no teatro, colaborando em menos de três dezenas de obras de longa-metragem cinematográfica.
O seu ponto alto na 7.ª Arte deu-se em 1966 interpetando o papel do humanista Sir Thomas More em Um Homem para a Eternidade (A Man for All Seasons), realizado pelo austro-americano Fred Zinnemann (1907-1997), que lhe valeu o Óscar para Melhor Actor em 1967, derrotando nomes como Alan Arkin (em Vêm Aí os Russos de Norman Jewison), Richard Burton (em Quem tem medo de Virginia Woolf? de Mike Nichols), Michael Caine (em Alfie de Lewis Gilbert) e Steve McQueen (em Yang-Tsé em Chamas de Robert Wise).

Enfim, a Civilização


Habitual deambulação pela Fnac, constatação (que me valeu o empobrecimento em 17,91 euros): A Civilização acaba de lançar no mercado editorial português o segundo livro da tetralogia do Coelho de John Updike (n. 1932).
Nem de propósito. Há dias, devido às encarniçadas batalhas editoriais portuguesas na conquista do território da literatura histórica, prolíficas no desbarato de papel impresso, por um lado, e ao filme das maninhas Bolena em disputa das virtudes de um rei, cujo romance de base havia sido prontamente publicado sob um verde fulgurante da indumentária real pela Civilização Editora, por outro, falei da estranheza do não prosseguimento da publicação dos restantes livros que compõem a mais famosa das tetralogias da literatura contemporânea – e, por favor, não nos esqueçamos que, em 2001, Updike publicou, em formato de novela, uma breve elegia ao seu personagem mais célebre, inserido numa colectânea de contos de sua autoria, traduzível por Lambidelas de Amor.
Assim, deixo para a posteridade a assunção de um mea culpa pela precipitação, que só não é de uma magnitude sísmica, porque para um amante da literatura e dos escritos do provecto autor norte-americano os intervalos entre publicações deveriam ser mais curtos: Corre, Coelho foi publicado em Fevereiro de 2007.
Tal como o livro que deu início à tetralogia, o livro agora publicado, Regressa, Coelho (Rabbit Redux, 1971), não conseguiu vencer qualquer prémio literário, contrastando com a verdadeira chuva de prémios que inundou as duas obras que completaram o quarteto: dois Pulitzer, dois National Book Critics Circle Award e um National Book Award. Enquanto estes últimos não chegam, aqui fica o primeiro parágrafo, com uma curtíssima revelação do início do segundo parágrafo (quem leu Corre, Coelho, entende-me…):

«Às quatro em ponto, os homens emergem pálidos da pequena tipografia, como fantasmas pestanejantes, até que a luz do exterior vence o olhar constante da iluminação interior que a eles se agarra. No Inverno, a esta hora, a Pine Street está na penumbra, a escuridão insiste desde cedo para se estender desde a montanha erguida sobre a estagnada cidade de Brewer; mas agora, no Verão, os passeios de granito salpicados de mica e as filas de casas diferenciadas pelo revestimento manchado de tábuas falsas e pelos pequenos e esperançosos alpendres com os seus arcos irregulares e as caixas cinzentas para as garrafas de leite e árvores ginkgo sujas de cinza e os carros a cozerem no passeio estremecem sob o brilho de uma explosão gelada. A cidade, na intenção de reanimar o centro decadente, derrubou quarteirões de edifícios para criar parques de estacionamento, de modo que as ruas, outrora compactas, são invadidas por uma vastidão desolada de ervas e entulho, expondo as fachadas das igrejas nunca vistas ao longe e gerando novas perspectivas de entradas traseiras e pequenos becos e intensificando a cruel grandiosidade da luz. O céu está limpo mas incolor e dele paira uma humidade esbranquiçada ao estilo típico dos Verões da Pensilvânia, que só servem para fazer crescer as coisas verdes. Os homens nem sequer se bronzeiam; cobertos por uma película de transpiração, amarelecem.
Um homem e o seu filho – Earl Angstrom e Harry – encontram-se entre os tipógrafos que saem do trabalho.
(…)»
John Updike; Regressa, Coelho (Civilização, 2008, pág. 7; trad. Carmo Romão).


Nota: A listagem, de elaboração própria – por enquanto mantida no segredo dos deuses por mera preguiça que, por sua vez, fica a dever-se a um temor informático dos potenciais problemas de formatação – já referida noutras ocasiões, de 50 obras essenciais de 10 autores norte-americanos contemporâneos (ou quase) nunca publicadas em português de Portugal, sofreu, com o acontecimento acima relatado, uma ligeira alteração: o “50” passa a “49”, número de obras não traduzidas. OK, está bem, revelo pelo menos os apelidos dos autores:
Barth, Barthelme (R.I.P.), Bellow (R.I.P.), DeLillo, Foster Wallace, Nabokov (R.I.P.), Pynchon, Roth, Rush e Updike.

quinta-feira, 20 de março de 2008

A fábula e o contador de histórias

É um terrível lugar-comum, mas atrevo-me a renová-lo afirmando que uma paixão não se explica, nem sequer se discute. Não há racionalidade que permita compreender o arrebatamento, a agitação, o caldeirão fervente de emoções humanas perante o objecto elevado à idolatria. Sou assim com Auster, como fui com outros ídolos da juventude, do futebol à fórmula 1, do cinema à música. Tive talvez a sorte (ou o azar, para muitos, os que censuram esta minha admiração incondicional) de me iniciar com A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy, 1987), que me levou a ler de uma assentada A Música do Acaso (The Music of Chance, 1990) e Leviathan (1992) – por feliz coincidência, continua a ser o meu trio preferido de obras de Auster, dos 165 conjuntos de três obras, diferentes entre si, que permitem combinar os 11 romances até hoje publicados e por mim lidos na íntegra (ou 13?*)
Depois, por esses tempos de frenesim austeriano percorri as livrarias e consegui encontrar Palácio da Lua (Moon Palace, 1989) e Timbuktu (1999) que acabara de ser publicada, e, ainda mais tarde, O Livro das Ilusões (The Book of Illusions, 2002) e A Noite do Oráculo (The Oracle Night, 2004). Para terminar com As Loucuras de Brooklyn (The Brooklyn Follies, 2005) e Viagens no Scriptorium (Travels in the Scriptorium, 2007).
Percorri páginas na internet, sítios de leilões e espaços físicos de livrarias e alfarrabistas, contactei a editora, mas nunca encontrei No País das Últimas Coisas (In the Country of Last Things, 1987) e Mr. Vertigo (1994). Resisti, tentando não infringir a velha regra que aponho na leitura enquanto divertimento: só leio em português, apesar de me poderem apontar os inconvenientes deletérios das traduções; mas se assim fosse, ficar-me-ia apenas pelos autores de língua inglesa e espanhola, e alguns franceses mais acessíveis, e jamais haveria lido Tchékhov, Gogol, Tolstói, Dostoievski, Walser, Benjamin, Kafka, Musil, Mann, Böll, Rilke, Eco, Calvino, Pirandello, Moravia, Pasolini, Mishima, Ibsen, Hamsun, Laxness e por aí em diante. Infelizmente não leio alemão ou russo ou até norueguês. Não navego em pensamentos com a Enterprise e os seus imaginosos aparelhos de tradução automática para Ferengis ou Klingons.

Que outra coisa senão uma verdadeira paixão é capaz de fazer invalidar um todo intrincado de princípios auto-impostos para tentar arrancar da existência uma alegria breve, efémera, asseverando conscientemente o merecimento da aplicação da pena que será, sabemo-lo, cumprida com zelo. Somos eminentemente livres, é certo, porém o paradoxo está na dificuldade em divisar que coordenadas usar no estabelecimento das barreiras dentro das quais podemos exercer essa tal liberdade, com vista a alcançar a inatingível quimera da felicidade plena – que insatisfação, que sede, que angústia… sinto-as, e a reflexão agrava-as. Assim, racionalmente derroguei o princípio, li, sem dramas e, em boa verdade e com bom senso, sem motivos para que os houvesse, In the Country of Last Things e Mr. Vertigo na língua em que originalmente foram publicadas.
Bom, para encerrar esta minha divagação estéril, bastaria referir que a insignificância da infracção em nada beliscou uma paixão que se vai estruturando – tem graça conjugar este último verbo com a volatilidade de um sentimento exaltado –, nem tão-pouco seria necessário travestir-me de Florentino Ariza à espera de Fermina Daza (a estreia cinematográfica de amanhã de gente das letras colombianas nobelizada levou-me a esta comparação no mínimo destemperada). A estupidez também tem limites; talvez os conceitos de paixão e de estupidez sejam irmãos no infortúnio.

Há três dias acabei de reler Mr. Vertigo, agora em português, na edição deste ano da Asa.
Li-o com a mesma avidez de um inédito. Cheguei às conclusões que havia chegado outrora; e não há muito mais a acrescentar às primeiras impressões retiradas da sua leitura na língua original. Curiosamente, o inestético frontispício escolhido pela editora portuguesa contém uma simples frase retirada de uma recensão de 1994 publicada no periódico britânico The Independent:

«Uma grandiosa obra de literatura pela mão de um monstro da fábula moderna norte-americana.»

Volto à prelecção Nobel de Doris Lessing e ao discurso de Auster em Oviedo a propósito do recebimento do Prémio Príncipe de Astúrias das Letras. Ambos, de maneiras diferentes, especularam sobre a aparente inutilidade da arte, em concreto da literatura: não sacia a sede, não mata a fome, não acaba com a miséria humana na luta pela sobrevivência; mas divisam a necessidade primordial que o Homem tem da fábula. A menina-mãe africana de Lessing que lê fragmentos de Anna Karénina, abandonados por quem tudo tem, enquanto espera sedenta com o filho amarrado ao corpo exposta ao sol quente de África que lhe encham a bilha de água potável, é uma das mais belas imagens dessa utilidade onírica da literatura. Não é um muro que se ergue para esconder o problema, é apenas o enriquecimento de um imaginário, do fortalecimento espiritual indispensável à própria sobrevivência; não é prostração, indolência ou desistência, é antes o cumprir somente humano de uma função vital: sonhar.

Mr. Vertigo é Auster a fazer uma vez mais um apelo deliberado às suas publicitadas influências literárias, nos tempos em que descobriu que escrever seria a sua missão enquanto vagueasse neste mundo: Dickens, mas sobretudo, como acaba por confessar em entrevista, Carlo Collodi e a versão não adulterada de Pinóquio.
Eis Walter Claireborne Rawley na primeira pessoa, no primeiro parágrafo da obra:

«Tinha doze anos quando caminhei sobre as águas pela primeira vez. Foi o homem de preto quem me ensinou a fazer isso e não vou pôr-me para aqui com histórias e dizer que aprendi o truque da noite para o dia. Quando o Mestre Yehudi me descobriu tinha eu nove anos e era um dos muitos órfãos que mendigavam nas ruas de Saint Louis, e só ao fim de três anos de um treino incessante é que ele me deixou mostrar as minhas habilidades em público. Isso aconteceu em 1927, o ano de Babe Ruth e Charles Lindbergh, esse mesmo ano em que a noite começou a cair sobre o mundo para todo o sempre. Continuei a trabalhar até poucos dias antes do crash de Outubro e devo dizer que aquilo que fiz nesse poucos anos foi maior do que tudo o que aqueles dois cavalheiros possam ter sonhado. Eu fiz o que nenhum americano tinha feito antes de mim, o que ninguém fez desde então.»
Paul Auster, Mr. Vertigo (pág. 7)

Mr. Vertigo é um conto de fadas que se vai transformando num épico americano. Não faltam as alusões ao Ku Klux Klan, ao desastre da Lei Seca, à dizimação dos índios, ao crash bolsista de Outubro de 1929 e à II Guerra Mundial, e as metamorfoses que um mendigo de nove anos vai sofrendo ao longo da sua vida, de miséria e de prosperidade, de fome e da abundância, de santidade e da mais extrema violência, do amor ao ódio exacerbado.
Retirado das ruas de Saint Louis, Missouri por um judeu de origem húngara, o Mestre Yehudi – uma percebida referência a mestre da ilusão Harry Houdini –, sob a promessa de um dia poder vir a voar, Walter Rawley (a sonoridade do seu nome muito próxima do de Sir Walter Raleigh não é fruto da coincidência, é antes o acaso materializado pela pena do seu principal efabulador) troca as ruas da sua cidade por uma zona desolada do Kansas, nas cercanias de Wichita, onde terá por companhia, para além do Mestre, um rapaz negro deformado, um pouco mais velho, com uma inteligência e uma cultura acima da média – que no futuro lhe garantirão a uma bolsa de estudo e uma entrada em Yale para iniciar os estudos universitários –, sugestivamente chamado de Esopo, e uma anciã índia, sobrinha do famoso Touro Sentado, da tribo Sioux, carinhosamente chamada de Mãe Sioux, a que não falta Mrs. Witherspoon (ou Mrs. W.), o último vértice de um triângulo quando a primeira tragédia, que se confunde com a história do racismo na América, bate à porta.
E, para mais não revelar, fico-me por estas já extensas palavras, sobre mais um romance; convicto, porém, de que o leitor, pelas mais diversas razões que se circunscrevem às emanações etéreas de uma obra deste tipo, dele não se conseguirá livrar nos tempos mais imediatos após o encerramento da página número 299, a última.
Abaixo do meu trio sagrado, A Trilogia de Nova Iorque, A Música do Acaso e Leviathan; quase a par com o duo Palácio da Lua e de No País das Últimas Coisas; mas ao nível do deslumbrantemente terno Timbuktu e do engenhoso Viagens no Scriptorium, Mr. Vertigo é imperdível… aliás, como todas as restantes obras deste judeu, que há 61 anos nascia em Newark, Nova Jérsia e que um dia respondeu à sua própria pergunta “Não sei porque me dedico a isto?”, desta forma:

«Nunca quis trabalhar noutra coisa.»

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica
Paul Auster, Mr. Vertigo. Porto: Asa, 1.ª edição, Março de 2008, 304 pp. (tradução de José Vieira de Lima; obra original: Mr. Vertigo, 1994).


Nota: *A contagem não é pacífica, embora, pela minudência da questão, não seja objecto de polémica. O 12.º romance de Paul Auster, Man in the Dark, vem a caminho, será publicado nos Estado Unidos no próximo mês de Agosto e, provavelmente, tê-lo-emos em português no próximo Natal. No entanto, há quem inicie a contagem das obras de ficção de meia e longa narrativa do autor norte-americano, a partir da novela ou romance curto “Cidade de Vidro” (City of Glass) publicado em 1985, desdobrando assim a famosa Trilogia, que prosseguiu com a publicação em separado de “Fantasmas” (Ghosts) em 1986 e que apenas ganhou corpo como um trio de obras com a conclusão de “O Quarto Fechado” (The Locked Room) no mesmo ano. Em 1987, por sugestão da editora inglesa
Faber & Faber, as três histórias formaram-se como partes integrantes e perfeitamente indissociáveis de uma só obra, A Trilogia de Nova Iorque e daí, dada essa trindade que apenas ganha sentido na unidade, preferir o “11” como número de obras de ficção publicadas por Auster, e isto, claro, no dia em que escrevo este texto.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Reviver os últimos dias de Julho de 2007

Arthur C. Clarke
Arthur C. Clarke

(16 de Dezembro de 1917 – 19 de Março de 2008)

Morreu, em Colombo, Sri Lanka (onde vivia há mais de 50 anos) o pai de 2001 – Odisseia no Espaço (1968) de Stanley Kubrick, com quem partilhou a elaboração do argumento do filme baseado no seu conto The Sentinel (1948)

Quem não se recorda de O Mundo Misterioso de Arthur C. Clarke na televisão nos anos 80?

Nota: David Fincher irá levar ao grande ecrã a sua obra de ficção científica Rendezvous with Rama, publicada no ano do meu nascimento, 1972, (Rendez-vous com Rama, da colecção Argonauta da editora Livros do Brasil, com tradução do saudoso Eurico da Fonseca).

Em jeito de homenagem, ao homem que me pregou alguns sustos enquanto criança e me deixou literalmente siderado na adolescência, ficam os famosos créditos iniciais de O filme, com a abertura “Aurora” de Assim falava Zaratustra (Also Sprach Zarathustra) de Richard Strauss, dirigida por Herbeth von Karajan e interpretada pela Filarmónica de Viena:


Inacreditável

Anthony Minghella (©Getty Images) Anthony Minghella

(6 de Janeiro de 1954 - 18 de Março 2008)

Para a História do cinema, dois filmes magistrais: O Paciente Inglês (The English Patient, 1996) e O Talentoso Mr. Ripley (The Talented Mr. Ripley, 1999).

terça-feira, 18 de março de 2008

Obra (quase) Completa

Winfried Georg Maximilian Sebald
(1944-2001)

("Texturas oníricas", umas luzes sobre o mais enigmático e arrepiantemente profético trabalho de V.N. – embora seja quase indiferente para muitos nabokovianos –, escrito numa quarto de banho do seu quarto de hotel em Paris, para não acordar Dmitri, então com 5 anos.)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Colecções...

Roma, de Federico Fellini (fotograma)
Quando o Público anunciou a sua extraordinária série de livros e filmes de 25 mestres do cinema mundial, sob a marca dos Cahiers du Cinéma – série que em França foi difundida pelo jornal Le Monde – tratei de elaborar as minhas (já famosas) listas, não só para verificar quanto tempo – contado em número de sextas-feiras – duraria a fastidiosa corrida às tabacarias e quiosques da minha cidade para adquirir o apêndice do dito jornal, por uns premeditados nove euros e noventa e cinco cêntimos, como também, para efeitos de comparação com a minha já considerável videoteca, para apurar as possíveis repetições de tal empreendimento – 248,75 euros já é uma cifra razoável, a pedir ponderação.
Feita a lista, uma pequena fúria, insípida, insonora, e até inodora – acabara de esgotar o meu stock de enxofre com os desgovernos socráticos (que não o mestre de Platão) – apoderou-se de mim, tendo por alvo um heteróclito quinteto: Nuno Artur Silva, Jorge Leitão Barros, Vasco Graça Moura, João Mário Grilo e Clara Ferreira Alves, respectivamente por, Fellini (com mais de 20 filmes, alguns ½), Coppola (mais de 30), Bergman (mais de 60), Rosselini (cerca de 50) e Antonioni (quase 40). Os 9,95 passariam a financiar apenas a curta biografia, atendendo à minha feliz condição de possuidor de bases para copos robustas e mais que suficientes, que vão permitindo manter imaculados os meus móveis de design (de concepção caseira), sem aquelas inestéticas rodelas que mesmo o cristal – vejam só! –, previamente humedecido dos mais finos espíritos condensados, sói deixar.
No entanto, esta semana, após um curto desabafo da minha lusitana avareza com o meu pai, ele disse-me: «Ouve lá, compra na mesma, eu pago-te metade e fico com o DVD. A cada passo dou por mim a rir-me sozinho com situações do Roma do Fellini… lembras-te do tipo que sai da plateia e vai acender o cigarro à vela que um cantor segurava no palco?… [sim, lembro-me] “e se te fosses f*** e acendesses nos c*** do pai!”» [os asteriscos são de exclusiva responsabilidade do decoro paterno, que se verbalizaram em palavras sincopadas a apelar à imaginação (ou inteligência) do receptor]
Negócio fechado.
Lapsos de segundo que me pareceram uma eternidade. O mal já havia sido reproduzido pelo meu menear de cabeça em assentimento, embora o mais zeloso dos contabilistas, se presente, manifestasse orgulho no potencial fiel seguidor… quiçá o próprio Bartleby.
Um forte lampejo de clarividência, perfeitamente verificável num cefalópode, e a vitória de espírito filial sem condições sobre o materialismo, levantaram do tapete os contundidos respeito e carinho que sinto pelo meu querido pai. Apercebendo-me do erro, antes ainda da terrível expiação, tentei reparar o dano – que não sei se foi sentindo como tal do outro lado – e disse:
«Deixa estar, pai. Eu vou comprá-lo porque quero ficar com o livro, e não precisas de me pagar a metade pelo DVD, dou-to como prenda do dia do pai que… humm… [lentamente dando-me conta do agravamento da minha mísera condição de Ebenezer Scrooge; os tais momentos em que o silêncio, com toda a sua implacabilidade, se transforma na única tábua de salvação, enquanto não chega o tenebroso fantasma dos Dias do Pai futuros] … é na próxima terça, não é?»
Não, minha alimária, é na quarta-feira.

Hoje, à hora que finalizo este texto, percorridas cerca de uma dúzia de bancas de jornais, nem Roma, nem biografia de Federico… E o jornal da Sonae, merecia uma resposta bem ao estilo do Mestre, que esta semana, por inépcia logística tão típica das empresas lusas, desapareceu das bancas.


Ah, entretanto, o meu pai está a gozar as suas merecidas férias durienses. Quarta-feira...

sexta-feira, 14 de março de 2008

Pynchon Luso

Para os pynchonianos do nosso burgo, que lêem há anos, pelo menos desde 1963, as obras do esquivo, obscuro e admirável autor norte-americano Thomas Pynchon (n. 1937), informo que, após um das minhas cada vez mais raras perambulações pelas ruas da baixa – que, por tradição, inclui sempre uma visita à Livraria Leitura (agora pertença do império Bulhosa) em busca de raridades que escapam à indexação cibernética –, avistei uma das suas duas únicas obras que se encontram traduzidas para português de Portugal: V. (1964), da extinta Editorial Notícias, com edição de Fevereiro de 2000 (estavam disponíveis dois exemplares). Logo, aconselha-se ao mais empedernido dos pynchonianos uma rápida visita à livraria da José Falcão (a entrada da Rua de Ceuta, junto à Livros do Brasil, está fechada).
Em Portugal, para além de V. – obra de estreia de Pynchon, que (des)honradamente continua a pertencer ao meu íntimo e particular top 10 das melhores obras de ficção de todos os tempos, a história dos inesquecíveis Stencil e Benny Profane – apenas podemos correr o sério risco de encontrar a segunda obra de Pynchon (em termos cronológicos) devidamente traduzida para a nossa língua, numa edição de Junho de 1987 – pelo menos, é a data da edição que repousa na minha biblioteca: trata-se do mais pequeno dos seus romances, O Leilão do Lote 49 (The Crying of Lot 49, 1966) da já possivelmente defunta Editorial Fragmentos.

Por editar, neste país de requintados e selectivos letrados, continua a sua enciclopédica obra-prima Gravity’s Rainbow (1973) – que, a título de exemplo, está publicada no Brasil sob o título O Arco-íris da Gravidade –, para além da colectânea de contos Slow Learner (1984) e dos romances Vineland (1990), Mason & Dixon (1997) e o recente Against the Day (2006).

Nota: há uns anos transcrevi para o meu blogue, agora inactivo, Data, um dos diálogos mais curiosos da obra.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Literatura

«Ria-me nalgumas partes, chorava noutras, e que mais pode uma pessoa querer de um livro senão isso mesmo – a possibilidade de sentir o delicioso aguilhão da alegria e a ferroada terrível da tristeza? Agora que chegou a minha vez de escrever um livro, não há um único dia em que não pense em Esopo lá em cima no seu quarto. Já lá vão sessenta e cinco Primaveras, mas é como se eu estivesse ainda a vê-lo sentado à secretária, rabiscando no papel almaço, avançando na redacção das suas memórias juvenis, enquanto a luz que se coava pela janela fazia ressaltar as partículas de poeira que dançavam à volta dele. Se me concentrar um pouco mais, ainda consigo ouvir a sua respiração, o ar que entrava e saía dos seus pulmões, ainda consigo ouvir o aparo da caneta arranhando o papel.»
Paul Auster, Mr. Vertigo, pág. 94
(Porto: Asa, 1.ª edição, Março de 2008, 306 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: Mr. Vertigo, 1994)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Chablis

Donald BarthelmeComo o prometido é devido, publico aqui, com tradução a meu cargo, a partir do original em inglês, um dos muitos e portentosos contos publicados pelo malogrado autor norte-americano Donald Barthelme (Filadélfia, PA, 7 de Abril de 1931 – Houston, TX, 23 de Julho 1989).
Bartheleme é considerado, por muitos, como o pai do pós-modernismo literário (sinceramente, não sei a que é que isso se refere; se é bom ou mau? será uma enfermidade? uma rotularite?) e que, apesar de todas as notáveis referências na literatura universal, certificadas, por exemplo, pelo número de línguas em que as suas obras se encontram traduzidas, permanece inédito no excelso meio editorial português.
No próximo ano cumpre-se o 20.º aniversário da sua morte.
Bartheleme morreu aos 58 anos vítima de um filho da puta de um cancro.

Chablis

A minha mulher quer um cão. Ela já tem uma criança. A criança tem quase dois anos. A minha mulher diz que a criança quer um cão.
A minha mulher está há muito tempo à espera de um cão. Tive de ser eu a dizer-lhe que ela não o poderia ter. Mas agora a criança quer um cão, diz a minha mulher. Isto até pode ser verdade. A criança é muito chegada à minha mulher. Andam juntas o tempo todo, agarram-se, apertam-se com força. Eu pergunto à criança, que é uma rapariga, “És a menina de quem? És a menina do papá?” A Criança diz, “mamã”, e não se fica por aí, di-lo repetidamente, “mamã, mamã, mamã.” Eu não vejo por que razão hei-de comprar um cão de cem dólares para o raio daquela criança.
A raça de cão que a criança quer, diz a minha mulher, é um Cairn Terrier. Esta raça de cão, diz a minha mulher, é Presbiteriana tal como ela e a criança. No ano passado a criança era Baptista – ou seja, ela frequentou o programa inteiro para mães da Igreja Baptista, duas vezes por semana. Este ano é Presbiteriana porque os Presbiterianos têm mais baloiços e escorregões, e outras coisas assim. Eu acho isso uma enorme falta de vergonha e disse-lho. A minha mulher foi uma Presbiteriana legítima durante toda a vida e diz que isso a autoriza a agir assim; quando era uma criança ela costumava frequentar a Igreja Presbiteriana em Evannsville, Illinois. Eu não ia à igreja porque eu era uma ovelha negra. Havia cinco filhos na minha família e, entre nós homens, íamos fazendo girar o estatuto de ovelha negra, o mais velho seria a ovelha negra durante uns tempos, enquanto passava pelo seu período de embriaguez ou o que quer que fosse, e só depois, à medida que ia envelhecendo, e tendo talvez arranjando um emprego ou estando até cumprir serviço militar, tornava-se finalmente numa ovelha branca quando cassasse e tivesse um neto. A minha irmã nunca foi uma ovelha negra porque era uma rapariga.
A nossa criança é uma criança encantadora. Durante anos disse à minha mulher que ela jamais poderia ter uma criança porque isso seria muito caro. Mas elas derrotam-nos sempre por exaustão. Elas são bastante boas a derrotar-nos por exaustão, mesmo que isso possa demorar anos, como foi o caso. Agora ando com a criança ao colo e abraço-a sempre que posso. O nome dela é Joanna. Ela veste um macacão da Oshkosh e diz “não”, “biberão”, “fora” e “mamã”. Ela é a coisa mais adorável quando está molhada, quando acaba de tomar banho e o seu cabelo louro está encharcado, embrulhada numa toalha bege. Por vezes quando está a ver televisão ela esquece-se por completo que também estamos lá. Podemos ficar só a olhar para ela. Quando ela está a ver televisão parece muda. Gosto mais dela quando está molhada.
Esta coisa do cão está a transformar-se na grande questão. Eu disse à minha mulher, “Bom, já tiveste a criança, precisaremos também agora do diabo de um cão?”. O cão irá provavelmente morder alguém ou até perder-se. Já me estou a ver a percorrer o nosso bairro inteiro a perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho?” “Como se chama o cão?”, irão todos perguntar, e eu fitá-los-ei com toda frieza e direi, “Michael” É assim que ela o quer chamar, Michael. É um nome estúpido para um cão e lá terei de procurar por esse cão, possivelmente raivoso, e perguntar às pessoas, “Por acaso viu este cão castanho? Michael?” É o suficiente para nos pormos a pensar em divórcio.
O que é que a criança poderá fazer com o cão que não o possa fazer comigo? Brincar livre e desenfreadamente? Eu consigo fazê-lo. Levei-a ao parque infantil da escola. Era domingo, o local estava deserto, e brincámos de uma forma livre e desenfreada. Eu corri, e ela cambaleou atrás de mim a um bom ritmo. Eu amparava-a sempre que deslizava no escorregão. Ela percorreu todo o caminho interior de um tubo de cimento que existia no parque. Ela apanhou uma pena e ficou horas a contemplá-la. Eu estava preocupado que aquela fosse uma pena contaminada mas ela não a meteu à boca. Depois corremos ainda mais pelo campo pelado e abrasivo de softball e através das arcadas que ligam as salas de aula de madeira temporárias, que estão a perder a sua pintura amarela, ao edifício principal. Num destes dias, a Joanna irá frequentar esta escola, e isto se eu permanecer no mesmo emprego.
Fui ver alguns cães no Pets-A-Plenty, que tem pássaros, roedores, répteis e cães, todos em óptima condição. Eles mostraram-me os Cairn Terriers. “Eles têm os seus livros de orações?”, perguntei. A funcionária não entendia o que é que eu estava para ali a dizer. Os Cairn Terriers poderiam rondar os 295 cada, com papéis. Eu comecei por perguntar se por acaso eles não teriam algum filho ilegítimo a preços mais baixos, mas pude ver que isso seria inútil, e cheguei mesmo à conclusão de que a mulher já não ia com a minha cara.
Mas, o que é que há de errado comigo? Porque é que eu não sou uma pessoa mais natural, tal como a minha mulher pretende que o seja? Eu permaneço acordado, desde manhã cedo, postado à minha secretária que está no segundo piso da casa. A secretária está de frente para a rua. Às cinco e meia da manhã, os corredores já estão lá fora, individualmente ou em pares, a correr por uma saúde de ferro1. Eu estou a beberricar um copo de Chablis2 Gallo com uma pedra de gelo, a fumar, a preocupar-me3. Preocupo-me com a possibilidade de a criança cravar uma faca de cozinha numa tomada eléctrica enquanto estiver molhada. Apliquei aquelas pequenas fichas de protecção de plástico em todas as tomadas, mas ela aprendeu a retirá-las. Já verifiquei os lápis de cera. Mas eles fizeram-nos de forma a tornar a sua ingestão inofensiva – eu telefonei para sede na Pennsylvania. Ela pode comer uma caixa inteira de lápis de cera que nada lhe acontece. Se eu não comprar os novos pneus para o meu carro, posso comprar o cão.
Lembro-me do tempo, há cerca de trinta anos, quando, na estrada de Beaumont, atirei com o Buick da mãe do Herman para um campo de milho. Havia outro carro que seguia na minha faixa, não bati nele e ele também não me bateu. Lembro-me de guinar o carro para a direita, seguindo para baixo para a valeta, atravessando a vedação, detendo-me apenas no campo de milho e saí do carro para acordar o Herman para ambos verificarmos como tinham ficado os felizes bêbados do outro carro, na valeta do outro lado da estrada. Isso aconteceu quando eu era uma ovelha negra, anos e anos atrás. Aquilo foi realizado com toda a destreza, penso eu. Levanto-me, felicito-me pela memória e vou lá dentro para dar uma espreitadela à criança.


Donald Barthelme, Forty Stories, “Chablis”. New York: G.P. Putnam’s Sons, 1st edition, 1987, 256 pp. [tradução: AMC, Março/2008]
(Este conto foi originalmente publicado na revista The New Yorker, de 12 de Dezembro de 1983, p. 49 [Vol. 59 Issue 43])

Notas de tradução:
  1. No texto original surge a expressão “rude red health”, que designa aqueles que demonstram e dispõem de uma invejável condição física.
  2. Chablis é um conhecido vinho francês produzido na região da Borgonha, vinificado exclusivamente em vinho branco e apenas com uvas da casta chardonnay. É um típico vinho branco seco, suave.
  3. Curioso jogo de palavras nestas duas frases, para os desportistas matinais usam-se, em contexto semântico diverso, as espressões “rude” e “red” (que também pode designar “tinto” para os vinhos), por oposição às subentendidas características organolépticas do próprio vinho, o Chablis (isto é só para enófilos, claro.)

terça-feira, 11 de março de 2008

O 6.º romance


Já está disponível nas livrarias a reedição do 6.º romance do autor norte-americano Paul Auster (n. 1947), agora sob a chancela da Asa, depois de se haverem esgotado há anos as duas primeiras edições a cargo da Editorial Presença.

Serviço (quase) Público

Para amanhã, talvez...
  • Porque a minha inusitada fase bibliófaga de antologia de contos lusos urge em socorrer-me pela leitura dos melhores;
  • Porque é uma porra de uma injustiça ser-se esquecido pela sexta língua mais falada no mundo inteiro – embora a infeliz falta de proveito seja um verdadeiro acto autopunitivo dos seus utilizadores;
  • Porque se vende tanto lixo;
  • Porque se já há Carver, Gógol, O’Connor, O. Henry, Tchékhov, Bukowski, Scott Fitzgerald, entre muitos outros de igual ou superior eminência literária;
  • Porque em apenas uma hora consegui compilar 50 obras (conto, novela ou romance) de 9 autores norte-americanos que teimosamente, com o passar dos anos, vão perdendo a vez na edição das suas obras na língua de Pessoa, e logo para os seus conterrâneos mais que descartáveis – (volto ao) lixo não biodegradável que contamina os nossos escassos recursos intelectuais;
  • Por que razão se perde tanto tempo com tanta merda?

"Chablis", DB. Amanhã.

segunda-feira, 10 de março de 2008

Finalmente à Solta



Deixo ficar uma das epígrafes da obra, anterior e erroneamente traduzida por Os Possessos:
Mato-me e não vejo o carreiro;
Perdemo-nos, sim! Tanta monta!
Estou que nos leva o Diabo
Faz-nos dar volta atrás volta!
................................................................
Tantos! Por que [sic] vão espantados
E choram lastimosamente?
Será que se casa uma bruxa
Ou enterram algum duende?

Aleksandr Púchkin
(Presença, 1.ª edição, Março de 2008; trad. Nina Guerra e Filipe Guerra)

sábado, 8 de março de 2008

Listomania


É verdade, sou um listómano. Confesso, sem sombra de vergonha – afinal, trata-se de uma das facetas da minha indestrutível natureza pubertária –, a minha mania obsessivo-compulsiva de ordenar, classificar, qualificar os meus gostos, prazeres, encantamentos, ódios de estimação em listas, na maioria das vezes hierarquizadas.
Há pouco, enquanto deambulava pela rede, descobri a lista dos livros preferidos do escritor britânico (nascido acidentalmente em Paris, pelas funções de embaixador exercidas pelo pai) William Somerset Maugham (1874-1965). Não é que o autor faça ressoar as minhas campainhas da beleza e do espanto literários, aliás suponho que dos seus livros apenas um passou pelos meus olhos de ávido leitor – e foi o suficiente, por enquanto –, mas, curiosamente, quando num destes dias discutia literatura e gostos literários com a minha, outrora bibliófila, mãe, ela confessava-me que não só admirava os livros de Maugham – já na fase pós Condessa de Ségur (Sophie Feodorovna Rostopchine) –, havendo-os lido todos, como também os de outro escritor que, sinceramente, para mim e para o ponderado mundo literário contemporâneo, é-me completamente indiferente, falo do outrora popularíssimo autor norte-americano Irving Wallace (1916-1990), ele próprio um listómano, vejam-se os três volumes, publicados, respectivamente, em 1977, 1980 e 1983, do The Book of Lists.
Suponho que foi Jorge Silva Melo que, em conversa com Paula Moura Pinheiro, referiu a interessante mutabilidade dos gostos literários em Portugal – afirmando, no entanto, que o fenómeno não é exclusivamente nacional. Se atentarmos nos nomes de autores estrangeiros que encabeçavam as listas de vendas das livrarias portuguesas nas décadas de 60 e 70 do século passado, notamos que, apesar de se manter a avidez pela leitura dos denominados clássicos, alguns desses nomes e as suas obras foram relegados para segundo plano, substituídos por outros que lhes foram contemporâneos ou até mais antigos. À excepção de uns poucos, como Tolstói, Dostoievski, Hemingway, Steinbeck, Austen, as manas Brontë ou Kafka, hoje dificilmente conseguimos encontrar um numeroso conjunto de leitores de Graham Greene, Thomas Mann, Máximo Gorki, Chesterton, Jack London, John dos Passos, Leon Uris, Yourcenar, Morris West e até Doris Lessing, cuja literatura foi, todavia, recentemente ressuscitada pela atribuição do Nobel.
Não sei se os antigamente populares Irving Wallace, Morris West, ou mesmo Maugham, foram substituídos por autores cuja qualidade literária os consegue sobrelevar – também não os leio. Mas já não aguento entrar numa livraria nacional e ser acometido de uma cegueira súbita e, felizmente, transitória, pela iridescência de um mau gosto atroz dos frontispícios dos Sparks, Modignani, Nora Roberts, Allende, Paulo Coelho, Joanne Harris, Steel, já para nem falar dos livros de presuntivos escritores nacionais, que escondem, atrás do seu brilho, senão expulsando de todo para o pó dos armazéns, a literatura que gostaríamos não só de ler, como de dar a ler àqueles de quem gostamos. No Porto, pelo menos, não há nenhuma livraria que ponha cobro a este peste do popularucho e vendável.

Sem mais delongas, eis a tal lista de Somerset Maugham – cujas obras referenciadas, à excepção do estranhamente desaparecido dos escaparates lusos Henry Fielding, ainda hoje têm mercado:

  1. Tom Jones, de Henry Fielding (1749);
  2. Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (Pride and Pejudice, 1813);
  3. O Vermelho e o Negro, de Stendhal (Le Rouge et le Noir, 1830);
  4. O Pai Goriot, de Honoré de Balzac (Le Père Goriot, 1835);
  5. David Copperfield, de Charles Dickens (1850);
  6. Madame Bovary, de Gustave Flaubert (1857);
  7. Moby Dick, de Herman Melville (Moby-Dick, 1851)
  8. O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë (Wuthering Heights, 1847);
  9. Os Irmãos Karamazov, de Fiodor Dostoievski (Brat'ya Karamazovy, 1880);
  10. Guerra e Paz, de Lev Tolstói (Voyna i mir, 1865-1869).

sexta-feira, 7 de março de 2008

Um grande candidato…

…a pior filme do ano.

Não se deixem iludir, isto são falsificações!


Depois de terminada a efervescência de entrega dos galardões máximos do cinema mundial, embora o período de nojo seja em breve interrompido com a abertura do Festival de Cinema de Cannes, que este ano irá decorrer entre 14 e 25 de Maio, é meu hábito encerrar, pelo menos numa base sistemática, as minhas deambulações pelo cinema, donde as apreciações dos filmes em cartaz são parte integrante; aliás, porque este é um blogue que, se é que serve para alguma coisa que consiga atingir alguns laivos de consistência, procura concentrar-se nos livros, nos assuntos literários e, com especial utilidade sadomasoquista – qual daguerreótipo de Severin von Kusiemski –, no remoque implacável (ou que busca essa implacabilidade) nas descoroçoantes acções da gente ilustre deste pobre país – já estou como Steiner, por vezes seria preferível no estudo dos factos empregar-se a introdução “às trevas de” em vez de “à luz de” nas posteriores derivações.

Bom, regressando ao mundo real. Fui ao cinema na desconfortável condição de pré-babado, um trintão de lolitas, segundo a mais recente doutrina mexiana, e vi, claramente visto, duas matronas que tentaram envergar (e porque não falar mesmo da envergadura literal e física) de Natalie (1981) – luz da minha vida – e Scarlett (1984) – fogo da minha virilidade – durante quase duas horas de celulóide desperdiçado.
Um realizador de quinta categoria, pega num romance de quarta, escrito por uma romancista de segunda – bolas, saltei um passo – de Phillipa Gregory (agora publicada pela Civilização que, ao que parece, deixou cair Lively, Berger e Updike, entre outros, iniciando-se na terrível contenda editorial tão cúpido-portuguesa pelo arrebatamento dos direitos de publicação de todo o lixo literário).
De primeira, apenas o estímulo anabólico* para o esquecimento mal se abandona a sala de projecção.

*Desenganem-se o os lolitologistas, ao invés do potencial aumento da massa muscular, teve um efeito mirrador de larga duração e espectro.

Filme: Duas Irmãs, Um Rei (The Other Boleyn Girl, 2008) de um tal de Justin Chadwick.

quinta-feira, 6 de março de 2008

Mand i mørke

Entenderam?
É o título do novo romance de Paul Auster (o seu 12.º)... em dinamarquês.
Tal como sucedeu com a obra anterior Viagens no Scriptorium (Travels in the Scriptorium, Jan/2007; Jun/2006 na Dinamarca), os dinamarqueses, uns austerianos de primeira água, assim como a generalidade dos nórdicos, irão poder desfrutar, com razoável antecipação, da estreia mundial de Man in the Dark, romance que só será publicado nos Estados Unidos no próximo mês de Setembro.




Nem me atrevo, sequer, a conjecturar sobre a data de publicação em Portugal…

Nota: via fonte (normalmente) bem informada, o blogue do basco Aitor Alonso.

quarta-feira, 5 de março de 2008

Sem paciência

Sem a mínima pachorra para as habituais pseudo-recensões – ao contrário de outros apocalípticos, este blogue segue inexoravelmente para implosão, leia-se mente arrevesada que não sabe o quer – aqui ficam três imagens de três livros que li nas últimas semanas, unindo-os a publicação em 2008 no mercado português dos livros.
As respectivas notas de apreciação seguem, como é hábito – homessa, alguns hábitos são difíceis de extinguir, mesmo recorrendo ao rapazinho nuclear – directamente para a coluna do lado direito dedicada aos livros editados este ano.
Extraordinariamente tocante (atendendo à idiossincrasia do alter-ego literário), fina ironia (as provas) e erudição (nas parábolas), e a tal que supostamente era mas não passou da prima-do-mestre-de-obras (literatura regional e do usurpado, tirada semi-nabokoviana), e isto, respectivamente (já não sei de quê):



Nota: amanhã, talvez (Doce?, e se tiver paciência, lá está?) postarei aqui um grupo de 50 obras de pressão (incentivado por um comentário da Cristina ao texto anterior).

terça-feira, 4 de março de 2008

Mr. Vertigo

Para um português amante de literatura, há pequenos nadas, talvez o sejam e assim permaneçam para essa massa informe de leitores lusos de Coelho, Allende, Sparks, Modignani e quejandos, que potencialmente se transformam em incomensuráveis irritações nos limites da autoflagelação por amor ao próximo – entenda-se vizinho.
Por mais que me esforce não consigo vislumbrar um fio de racionalidade no mercado editorial luso da denominada grande literatura. São títulos que se deixam de editar sem razão aparente, são outros de grandes autores que nunca conheceram as palavras de Pessoa, outros ainda que são dados como mortos, mas que convivem com o pó dos babilónicos armazéns das distribuidoras – e quem já não experimentou comprar pelo menos um exemplar desses tais que, apesar do irrepreensível aspecto exterior, assim que abertos lançam esporos da mais perigosa bicharada microscópica que o odor bafiento não deixa enganar.

(Já agora, a talho de foice, gostaria de sugerir a presença de equipas do INEM à porta desses eventos – a imagem de Rene Russo, Spacey e Hoffman, no filme de Wolfgang Petersen parece-me adequada como exemplo – especializadas em doenças de rápida disseminação bacteriológica por uma exposta população num pequeno raio de acção.)

Um dos mais belos livros de Auster (logo, da História da Literatura, e aqueles que, infelizmente, me vão conhecendo através destas miseráveis linhas diárias entendem a plausibilidade desta minha afirmação) encontrava-se esgotado há anos no mercado editorial português. Falo do admiravelmente mágico Mr. Vertigo – figura de estilo: austérbole, ou hipérbole austeriana, por vezes pode metamorfosear-se numa simples perífrase samsa(?) –, publicado originalmente por Paul Auster em 1994. É o seu 6.º romance – 8.º se desmantelarmos a Trilogia em Cidade de Vidro (City of Glass, 1985), Fantasmas (Ghosts, 1986) e O Quarto Fechado (The Locked Room, 1986) –, seguiu-se, então, à Trilogia de Nova Iorque (New York Trilogy, 1987); No País das Últimas Coisas (In the Country of the Last Things, 1987); Palácio da Lua (Moon Palace, 1989); A Música do Acaso (The Music of Chance, 1990) e Leviathan (1992).
Com efeito, a Editorial Presença editou logo no ano de 1995 a versão portuguesa do romance em epígrafe, que, segundo me dizem as fontes – da Moura, de Boliqueime, o próprio bruxo ex-padre de Vilar de Perdizes –, ficou-se pela 2.ª edição em 1997. De lá para cá, por mais pedidos às livrarias, missivas enviadas às editoras, contactos nas feiras dos livros, que houvesse levado a cabo, ninguém me soube responder cabalmente sobre o destino do aéreo Walter Claireborne Rawley – uma das personagens mais marcantes da bibliografia de Auster – e no meio disto tudo houve quem me instruísse que o autor usava saias e que já havia morrido com muito orgulho e algum preconceito
Nos últimos anos da década de 90 do século passado – a trabalheira que dá elaborar um texto sempre que se muda de século; para mim o século passado continua a ser o XIX, ou “chiche” como muitos lêem –, a Asa adquiriu os direitos de publicação das obras do autor judeu norte-americano, nascido em Newark a 3 de Fevereiro de 1947, fanático, como Roth – seu conterrâneo –, dos Mets – DeLillo é dos Yankees (menos um a gostar dos Yankees, presumo) –, residente e oficialmente declarado filho do bairro de Brooklyn – foi inclusivamente instituído o Auster Day – em Nova Iorque… ah, pois, a Asa desde então passou a editar não só as obras que Auster foi escrevendo e publicando, como reeditou algumas das anteriores que já existiam na bibliografia nacional sob outra chancela. Todavia, até o critério de reedição primou pelo absurdo editorial: a Asa reeditou as obras da Presença que ainda se podiam encontrar nos escaparates das livrarias, como por exemplo: A Música do Acaso, a Trilogia de Nova Iorque, Leviathan e Solidão Reinventada (obra de não-ficção que a Asa rebaptizou de Inventar a Solidão), excepto Palácio da Lua que, há um par de anos, alguns exemplares ainda poderiam ser descortinados nas livrarias. Quanto a Mr. Vertigo e No País da Últimas Coisas, nem vê-los – nem precisava dos itálicos para o título desta última obra dada a sua aplicabilidade a esta miséria de território.
Mas a LeYa, no seu arrebatamento luxurioso pelo vagabundo dos espaços Han Solo, levantou lubricamente a Asa e pelo menos (re)concebeu Mr Vertigo.
Eis o primeiro parágrafo, com tradução da casa:

«Eu tinha doze anos na primeira vez que caminhei sobre a água. O homem vestido de negro ensinou-me a fazê-lo, e não vou fingir que aprendi o truque da noite para o dia. O Mestre Yehudi encontrou-me quando eu tinha nove anos, era um órfão que mendigava por tostões nas ruas de Saint Louis, e trabalhou perseverantemente comigo durante três anos antes de me autorizar a exibir o meu número em público. Isso foi em 1927, o ano de Babe Ruth e de Charles Lindbergh, no preciso ano em que a noite começou a cair no mundo para sempre. Continuei a representar até poucos dias antes do crash bolsista de Outubro de 29, e o que eu fiz era maior do que algo que esses dois senhores pudessem ter sonhado. Fiz o que nenhum americano fizera antes de mim e que ninguém jamais fez desde então.»
[Tradução: AMC, 2008; a partir da versão original (em inglês) Mr. Vertigo (1994), New York: Viking Books (Penguin)].


Pronto, já só faltam as restantes 303 páginas e meia, espero que traduzidas pelo mais que habituado aos austerianismos José Vieira de Lima.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Médium Coupland

[A Patricia Arquette que se cuide…]

Eram simples perguntas vadias que de súbito se transformaram numa sessão espírita, com chás servidos em elevadores com mesas pé de galo.

Dwight Garner, um dos colaboradores do blogue literário
Paper Cuts do The New York Times, perguntou ao autor canadiano Douglas Coupland (n. 1961), o pai da Geração X, a propósito do lançamento do seu novo romance sugestivamente descartável (pelo título) The Gum Thief – fez-me lembrar a outra, que se acha o máximo, com os Sapatos de Rebuçado:

«Quais são os autores cujos livros são normalmente seus vizinhos nas prateleiras das livrarias?»
Ao que Coupland respondeu:
«Do lado esquerdo está uma escritora chamada Catherine Cookson (que provavelmente sabe tanto de mim como eu dela). No lado direito desconheço. Um dia Ms. Cookson e eu ficaremos presos num elevador na Barnes & Nobel da Union Square – e depois iremos beber uns copos e rir acerca disto – e talvez pregar uma partida pelo telefone à misteriosa personagem do lado direito.» [tradução livre: AMC]

Que, proponho eu, bem poderia ser o defunto Noël Coward, que, assim, juntando-se o útil ao agradável, até compartilharia – ou compartilhava? – as suas preferências sexuais, os seus contos e peças de teatro, interpretando marotamente pelo telefone “A Canção do Pénis” dos Monty Python.
No entanto, existe de facto um problema, não só a prolífica e popularucha escritora inglesa Catherine Cookson morreu em 1998, como também Coward, o por mim aventando como hipótese de vizinhança de prateleira, morreu em 1973 na Jamaica, e ambas as mortes deram-se por complicações cardíacas, e estivessem vivos teriam as enérgicas idades, próprias para as atrevidotas brincadeiras couplandianas, de 101 e 107 anos, respectivamente.

Bem, juntar-se-iam os três a Eric Idle nesta exibição (sabendo que ambos os mancebos haveriam decerto preferido juntar-se à diversão musical a que se entregaram Pitt e Ed Norton no intervalo das gravações de Fight Club de Fincher):


domingo, 2 de março de 2008

Orgulho e independência

«Mas isto já me acontecera mais do que uma vez na vida: recusara-me a permitir que as convenções determinassem a minha conduta para afinal aprender, depois de ter percorrido o meu próprio caminho, que os meus fundamentais e entranhados sentimentos eram mais convencionais do que a minha noção de inabalável imperativo moral.
[…]
Enfim, aprendemos com os nossos próprios erros. “Paciência”, pensei. “Quase se pode dizer que o dinheiro foi bem empregue para poder apreciar, uma vez mais, a comédia da nossa própria marca de presunçosa estupidez.”»
Philip Roth, Património, pp. 95-96
(Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Fevereiro de 2008, 214 pp.; trad. Fernanda Pinto Rodrigues; obra original: Patrimony, 1991)

Quantas vezes? Dez? Vinte? Foram tantas assim?
Facilmente nos convencemos de que apusemos uma moral certa nos nossos comportamentos, da laudatória singularidade do nosso temperamento, talvez à espera de que nos seja reconhecida essa superioridade: comentada, alardeada; disseminada por um conjunto tão alargado de pessoas, que, nos nossos devaneios de frágeis glórias, nos imaginamos no palco, escuro, sombrio, gélido, mas moderadamente aquecido por um foco incandescente que do outro lado nos encandeia, cerra-nos os olhos, e escancara os ouvidos aos “ahs!” e “bravos!”, aclamações de uma santidade, aplausos por um heroísmo, louvores por um acto que qualquer um dos encomiastas que convocámos para a festa da entronização, na sua cupidez de repartição do espólio, não atribui qualquer espécie de valor.

Quero a tua tigela de barbear, T. Mas que o meu orgulho de irmão, severa e definitivamente, ferido pela tua morte prematura não aceitou, distanciando-me, como diz Roth, de um objecto-símbolo da tua sobrevivência.

Nem nos damos conta dos actos brutais tão civilizados, da camisa de titânio que nos envolve e que, dia após dia, semana após semana, se vai apertando sem remissão, para que possamos ocultar, por pudor, a frágil estrutura de cristal que sustenta as nossas emoções. Depois… agora, é tarde de mais.

E é, talvez por isso, que não consigo pôr um fim a esta merda.

sábado, 1 de março de 2008

M. Butterfly

(acompanhar com o texto, de preferência)

«Vós conheceis-me, não é verdade? Porquê? Porque sou uma celebridade. Faço rir as pessoas. Fiz rir toda a França. Mas se realmente o pudésseis entender… jamais vos haveríeis de rir. Bem pelo contrário. Homens como vós deveriam bater-me à porta suplicando-me que lhes contasse os meus segredos. Porque eu, René Gallimard, conheci e fui amado pela mulher perfeita.

Existe uma visão do Oriente que eu partilho: mulheres esguias, em qipaos e kimonos, que morrem pelo seu amor a indignos demónios estrangeiros. Elas nascem e são criadas para se tornarem mulheres perfeitas, aceitando qualquer tipo de castigo que lhes inflijamos e devolvem-no-lo fortalecido pelo amor. Incondicional. Esta visão converteu-se na minha vida.

O meu erro foi simples e absoluto. O homem que eu amei não era digno; não merecia sequer uma segunda oportunidade. Mas em troca eu dei-lhe o meu amor. Todo o meu amor.

O amor de que vos falo embotou os meus olhos. Por isso, agora, enquanto me olho ao espelho, não vejo mais que…

Eu tenho uma visão do Oriente. Nelas o mais profundo desejo morre, em silêncio. Mas continuam a ser mulheres. Mulheres dispostas a sacrificarem-se pelo amor de um homem. Mesmo por aquele cujo amor não merece respeito, é indigno. A morte com honra é preferível a uma vida com desonra.Assim… finalmente, aqui na prisão, longe da China, encontrei-a.

O meu nome é René Gallimard…. Também conhecido por Madame Butterfly.»

David Cronenberg’s M. Butterfly (1993), com Jeremy Irons, baseado na peça homónima de David Henry Hwang [tradução livre/versão de AMC, 2008, a partir da audição do monólogo]


Uma das cenas que marcará toda a História do cinema, e que já imortalizou o Mestre David Cronenberg (apesar de alguns recentes ostracismos inter pares).

Fundo musical: ária “Un bel dì vedremo” da terrivelmente melancólica Ópera de Giacomo Puccini (1858-1924) Madama Butterfly (1904), na banda sonora de Howard Shore, no filme de Cronenberg, interpretada pela Orquestra de Ópera de Budapeste com a soprano Maria Tereza Uribe, dirigida pelo maestro Adam Medveozky.

Dá-me para isto, quando a melancolia aperta... as minhas desculpas.