terça-feira, 4 de março de 2008

Mr. Vertigo

Para um português amante de literatura, há pequenos nadas, talvez o sejam e assim permaneçam para essa massa informe de leitores lusos de Coelho, Allende, Sparks, Modignani e quejandos, que potencialmente se transformam em incomensuráveis irritações nos limites da autoflagelação por amor ao próximo – entenda-se vizinho.
Por mais que me esforce não consigo vislumbrar um fio de racionalidade no mercado editorial luso da denominada grande literatura. São títulos que se deixam de editar sem razão aparente, são outros de grandes autores que nunca conheceram as palavras de Pessoa, outros ainda que são dados como mortos, mas que convivem com o pó dos babilónicos armazéns das distribuidoras – e quem já não experimentou comprar pelo menos um exemplar desses tais que, apesar do irrepreensível aspecto exterior, assim que abertos lançam esporos da mais perigosa bicharada microscópica que o odor bafiento não deixa enganar.

(Já agora, a talho de foice, gostaria de sugerir a presença de equipas do INEM à porta desses eventos – a imagem de Rene Russo, Spacey e Hoffman, no filme de Wolfgang Petersen parece-me adequada como exemplo – especializadas em doenças de rápida disseminação bacteriológica por uma exposta população num pequeno raio de acção.)

Um dos mais belos livros de Auster (logo, da História da Literatura, e aqueles que, infelizmente, me vão conhecendo através destas miseráveis linhas diárias entendem a plausibilidade desta minha afirmação) encontrava-se esgotado há anos no mercado editorial português. Falo do admiravelmente mágico Mr. Vertigo – figura de estilo: austérbole, ou hipérbole austeriana, por vezes pode metamorfosear-se numa simples perífrase samsa(?) –, publicado originalmente por Paul Auster em 1994. É o seu 6.º romance – 8.º se desmantelarmos a Trilogia em Cidade de Vidro (City of Glass, 1985), Fantasmas (Ghosts, 1986) e O Quarto Fechado (The Locked Room, 1986) –, seguiu-se, então, à Trilogia de Nova Iorque (New York Trilogy, 1987); No País das Últimas Coisas (In the Country of the Last Things, 1987); Palácio da Lua (Moon Palace, 1989); A Música do Acaso (The Music of Chance, 1990) e Leviathan (1992).
Com efeito, a Editorial Presença editou logo no ano de 1995 a versão portuguesa do romance em epígrafe, que, segundo me dizem as fontes – da Moura, de Boliqueime, o próprio bruxo ex-padre de Vilar de Perdizes –, ficou-se pela 2.ª edição em 1997. De lá para cá, por mais pedidos às livrarias, missivas enviadas às editoras, contactos nas feiras dos livros, que houvesse levado a cabo, ninguém me soube responder cabalmente sobre o destino do aéreo Walter Claireborne Rawley – uma das personagens mais marcantes da bibliografia de Auster – e no meio disto tudo houve quem me instruísse que o autor usava saias e que já havia morrido com muito orgulho e algum preconceito
Nos últimos anos da década de 90 do século passado – a trabalheira que dá elaborar um texto sempre que se muda de século; para mim o século passado continua a ser o XIX, ou “chiche” como muitos lêem –, a Asa adquiriu os direitos de publicação das obras do autor judeu norte-americano, nascido em Newark a 3 de Fevereiro de 1947, fanático, como Roth – seu conterrâneo –, dos Mets – DeLillo é dos Yankees (menos um a gostar dos Yankees, presumo) –, residente e oficialmente declarado filho do bairro de Brooklyn – foi inclusivamente instituído o Auster Day – em Nova Iorque… ah, pois, a Asa desde então passou a editar não só as obras que Auster foi escrevendo e publicando, como reeditou algumas das anteriores que já existiam na bibliografia nacional sob outra chancela. Todavia, até o critério de reedição primou pelo absurdo editorial: a Asa reeditou as obras da Presença que ainda se podiam encontrar nos escaparates das livrarias, como por exemplo: A Música do Acaso, a Trilogia de Nova Iorque, Leviathan e Solidão Reinventada (obra de não-ficção que a Asa rebaptizou de Inventar a Solidão), excepto Palácio da Lua que, há um par de anos, alguns exemplares ainda poderiam ser descortinados nas livrarias. Quanto a Mr. Vertigo e No País da Últimas Coisas, nem vê-los – nem precisava dos itálicos para o título desta última obra dada a sua aplicabilidade a esta miséria de território.
Mas a LeYa, no seu arrebatamento luxurioso pelo vagabundo dos espaços Han Solo, levantou lubricamente a Asa e pelo menos (re)concebeu Mr Vertigo.
Eis o primeiro parágrafo, com tradução da casa:

«Eu tinha doze anos na primeira vez que caminhei sobre a água. O homem vestido de negro ensinou-me a fazê-lo, e não vou fingir que aprendi o truque da noite para o dia. O Mestre Yehudi encontrou-me quando eu tinha nove anos, era um órfão que mendigava por tostões nas ruas de Saint Louis, e trabalhou perseverantemente comigo durante três anos antes de me autorizar a exibir o meu número em público. Isso foi em 1927, o ano de Babe Ruth e de Charles Lindbergh, no preciso ano em que a noite começou a cair no mundo para sempre. Continuei a representar até poucos dias antes do crash bolsista de Outubro de 29, e o que eu fiz era maior do que algo que esses dois senhores pudessem ter sonhado. Fiz o que nenhum americano fizera antes de mim e que ninguém jamais fez desde então.»
[Tradução: AMC, 2008; a partir da versão original (em inglês) Mr. Vertigo (1994), New York: Viking Books (Penguin)].


Pronto, já só faltam as restantes 303 páginas e meia, espero que traduzidas pelo mais que habituado aos austerianismos José Vieira de Lima.

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu continuo numa incessante busca pelas duas (inexplicavelmente) únicas obras de Pynchon editadas em Portugal - "o Leilão do Lote 49" e "V". (Já agora, alguma dica?)
Cristina