sexta-feira, 21 de março de 2008

Enfim, a Civilização


Habitual deambulação pela Fnac, constatação (que me valeu o empobrecimento em 17,91 euros): A Civilização acaba de lançar no mercado editorial português o segundo livro da tetralogia do Coelho de John Updike (n. 1932).
Nem de propósito. Há dias, devido às encarniçadas batalhas editoriais portuguesas na conquista do território da literatura histórica, prolíficas no desbarato de papel impresso, por um lado, e ao filme das maninhas Bolena em disputa das virtudes de um rei, cujo romance de base havia sido prontamente publicado sob um verde fulgurante da indumentária real pela Civilização Editora, por outro, falei da estranheza do não prosseguimento da publicação dos restantes livros que compõem a mais famosa das tetralogias da literatura contemporânea – e, por favor, não nos esqueçamos que, em 2001, Updike publicou, em formato de novela, uma breve elegia ao seu personagem mais célebre, inserido numa colectânea de contos de sua autoria, traduzível por Lambidelas de Amor.
Assim, deixo para a posteridade a assunção de um mea culpa pela precipitação, que só não é de uma magnitude sísmica, porque para um amante da literatura e dos escritos do provecto autor norte-americano os intervalos entre publicações deveriam ser mais curtos: Corre, Coelho foi publicado em Fevereiro de 2007.
Tal como o livro que deu início à tetralogia, o livro agora publicado, Regressa, Coelho (Rabbit Redux, 1971), não conseguiu vencer qualquer prémio literário, contrastando com a verdadeira chuva de prémios que inundou as duas obras que completaram o quarteto: dois Pulitzer, dois National Book Critics Circle Award e um National Book Award. Enquanto estes últimos não chegam, aqui fica o primeiro parágrafo, com uma curtíssima revelação do início do segundo parágrafo (quem leu Corre, Coelho, entende-me…):

«Às quatro em ponto, os homens emergem pálidos da pequena tipografia, como fantasmas pestanejantes, até que a luz do exterior vence o olhar constante da iluminação interior que a eles se agarra. No Inverno, a esta hora, a Pine Street está na penumbra, a escuridão insiste desde cedo para se estender desde a montanha erguida sobre a estagnada cidade de Brewer; mas agora, no Verão, os passeios de granito salpicados de mica e as filas de casas diferenciadas pelo revestimento manchado de tábuas falsas e pelos pequenos e esperançosos alpendres com os seus arcos irregulares e as caixas cinzentas para as garrafas de leite e árvores ginkgo sujas de cinza e os carros a cozerem no passeio estremecem sob o brilho de uma explosão gelada. A cidade, na intenção de reanimar o centro decadente, derrubou quarteirões de edifícios para criar parques de estacionamento, de modo que as ruas, outrora compactas, são invadidas por uma vastidão desolada de ervas e entulho, expondo as fachadas das igrejas nunca vistas ao longe e gerando novas perspectivas de entradas traseiras e pequenos becos e intensificando a cruel grandiosidade da luz. O céu está limpo mas incolor e dele paira uma humidade esbranquiçada ao estilo típico dos Verões da Pensilvânia, que só servem para fazer crescer as coisas verdes. Os homens nem sequer se bronzeiam; cobertos por uma película de transpiração, amarelecem.
Um homem e o seu filho – Earl Angstrom e Harry – encontram-se entre os tipógrafos que saem do trabalho.
(…)»
John Updike; Regressa, Coelho (Civilização, 2008, pág. 7; trad. Carmo Romão).


Nota: A listagem, de elaboração própria – por enquanto mantida no segredo dos deuses por mera preguiça que, por sua vez, fica a dever-se a um temor informático dos potenciais problemas de formatação – já referida noutras ocasiões, de 50 obras essenciais de 10 autores norte-americanos contemporâneos (ou quase) nunca publicadas em português de Portugal, sofreu, com o acontecimento acima relatado, uma ligeira alteração: o “50” passa a “49”, número de obras não traduzidas. OK, está bem, revelo pelo menos os apelidos dos autores:
Barth, Barthelme (R.I.P.), Bellow (R.I.P.), DeLillo, Foster Wallace, Nabokov (R.I.P.), Pynchon, Roth, Rush e Updike.

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