Nasceu diferente na terra quente andaluza e nela morreu pela indisfarçável diferença na canícula de Agosto num país inflamado.
Falo de Lorca. Federico García Lorca (1898-1936), poeta espanhol, nascido em Granada, no coração da fúria e da virilidade espanholas, a Andaluzia, pátria do Flamenco, mas também dos touros e dos… duendes!
Em 1933, na Argentina, numa conferência na Sociedad de Amigos del Arte de Buenos Aires expõe pela primeira vez o seu mais famoso ensaio Jogo e Teoria do Duende (Teoría y Juego del Duende), e estabelece a notável distinção entre os conceitos de Musa, Anjo e Duende, na relação entre a arte e a morte.
A Musa:
«Quando a musa vê a morte chegar, fecha a porta ou ergue uma peanha, ou passeia uma urna e escreve um epitáfio com mão de cera, mas em seguida volta a regar o seu loureiro com um silêncio que vacila entre duas brisas.» (pág. 68)
O Anjo:
«Quando o anjo vê a morte chegar voa em círculos lentos, e com lágrimas de gelo e narcisos tece a elegia que vimos tremer nas mãos de Keats e nas de Villasandino, e nas de Herrera, e nas de Bécquer, e nas de Juan Ramón Jiménez. Mas que terror, o do anjo, se no seu brando pé rosado sentir uma aranha, pequena que seja!» (pp. 68-69)
O Duende:
«Pelo contrário, o duende não aparece se não vir possibilidade de morte, se não souber que irá rondar-lhe a casa, se não tiver a certeza de que vai agitar esses ramos que todos transportamos e não têm, não terão, consolo.» (pág. 69)
A editora Assírio & Alvim, pela mão de Aníbal Fernandes, reúne numa antologia, intitulada de Anjo e Duende, parte da prosa poética, dois textos escritos para conferências e cinco exemplares de um estranho exercício poético em diálogos criados pelo insigne autor granadino. São pistas biográficas. Textos que assim reunidos nos procuram levantar a ponta do véu sobre a dimensão humana, terna, frágil e angustiante, de um dos maiores poetas de sempre de língua castelhana. Neles se demonstram a obsessão do jovem poeta pela morte; o amor pelo mundano e pela cultura popular do seu país, os touros, o flamenco, os ciganos andaluzes e a sua ancestralidade oriental; as suas relações de amizade com os artistas da Geração de 27, que habitam a mesma residência de estudantes em Madrid, como Pepín Bello, Luis Buñuel e Salvador Dalí, com destaque especial para este último, pela profunda admiração mútua (e não só...), cuja amizade veio a sofrer uma dolorosa e lenta ruptura após Lorca haver publicado Romancero Gitano em 1928*, Dalí chega a apelidá-lo de un perro andaluz, ironizando através da alusão ao filme surrealista escrito por Dalí e Buñuel e realizado por este último; as entrelinhas da sua condição de homossexual, reprimida por uma sociedade tremendamente machista, de implacabilidade e violência homofóbicas e de um profundo fundamento religioso, onde as facas dilacerantes eram falos e a sua evocação da Lua, como anunciação permanente da morte e de um erotismo oculto. Por fim, o García Lorca político, a falaciosa capa de perigoso espião russo cuidadosamente erigida para ocultar a sua morte bárbara e desonrosa perante um pelotão de fuzilamento dos falangistas e que mais tarde foi impudica e ardilosamente aproveitada pelos vermelhos republicanos como bandeira dos seus ideais não menos bárbaros e sanguinários. Todavia, Lorca nada queria da política e dos políticos, apesar de demonstrar, através da sua arte, as suas preocupações sociais com os mais desfavorecidos e com as minorias étnicas. O poeta morreu vítima de uma sociedade fechada, confessional, preconceituosa e fortemente homofóbica. De um dos seus carrascos são as palavras: «Acabamos de matar a Federico García Lorca. Yo le metí dos tiros en el culo por maricón […] Es que estábamos hartos ya de maricones en Granada.» (pág. 15)
{*Excerto da carta de Salvador Dalí a García Lorca a propósito de Romancero Gitano: «“Li calmamente o teu livro […] A tua poesia de hoje cai dentro do tradicional, e nela descubro a substância poética mais suculenta que alguma vez existiu mas ligada em absoluto às regras da poesia antiga, incapaz de nos emocionar e satisfazer os nossos desejos actuais. A tua poesia está de mãos e pés amarrada à poesia velha. Talvez julgasses aquelas imagens atrevidas, ou naquilo que fazes encontrasses uma dose aumentada de irracionalidade, mas posso dizer-te que a tua poesia se move dentro da ilustração dos lugares-comuns mais estereotipados e conformistas.”» (pp. 129-130)}
Para terminar, resta apenas referir o trabalho notável de síntese, de tradução e de compilação de Aníbal Fernandes, aliás como vem sendo hábito na sua vasta carreira de tradutor de autores estrangeiros de primeira água.
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Federico García Lorca, Anjo e Duende. Lisboa: Assírio & Alvim, 1.ª edição, Abril de 2007, 155 pp. (tradução, apresentação e notas de Aníbal Fernandes).
Falo de Lorca. Federico García Lorca (1898-1936), poeta espanhol, nascido em Granada, no coração da fúria e da virilidade espanholas, a Andaluzia, pátria do Flamenco, mas também dos touros e dos… duendes!
Em 1933, na Argentina, numa conferência na Sociedad de Amigos del Arte de Buenos Aires expõe pela primeira vez o seu mais famoso ensaio Jogo e Teoria do Duende (Teoría y Juego del Duende), e estabelece a notável distinção entre os conceitos de Musa, Anjo e Duende, na relação entre a arte e a morte.
A Musa:
«Quando a musa vê a morte chegar, fecha a porta ou ergue uma peanha, ou passeia uma urna e escreve um epitáfio com mão de cera, mas em seguida volta a regar o seu loureiro com um silêncio que vacila entre duas brisas.» (pág. 68)
O Anjo:
«Quando o anjo vê a morte chegar voa em círculos lentos, e com lágrimas de gelo e narcisos tece a elegia que vimos tremer nas mãos de Keats e nas de Villasandino, e nas de Herrera, e nas de Bécquer, e nas de Juan Ramón Jiménez. Mas que terror, o do anjo, se no seu brando pé rosado sentir uma aranha, pequena que seja!» (pp. 68-69)
O Duende:
«Pelo contrário, o duende não aparece se não vir possibilidade de morte, se não souber que irá rondar-lhe a casa, se não tiver a certeza de que vai agitar esses ramos que todos transportamos e não têm, não terão, consolo.» (pág. 69)
A editora Assírio & Alvim, pela mão de Aníbal Fernandes, reúne numa antologia, intitulada de Anjo e Duende, parte da prosa poética, dois textos escritos para conferências e cinco exemplares de um estranho exercício poético em diálogos criados pelo insigne autor granadino. São pistas biográficas. Textos que assim reunidos nos procuram levantar a ponta do véu sobre a dimensão humana, terna, frágil e angustiante, de um dos maiores poetas de sempre de língua castelhana. Neles se demonstram a obsessão do jovem poeta pela morte; o amor pelo mundano e pela cultura popular do seu país, os touros, o flamenco, os ciganos andaluzes e a sua ancestralidade oriental; as suas relações de amizade com os artistas da Geração de 27, que habitam a mesma residência de estudantes em Madrid, como Pepín Bello, Luis Buñuel e Salvador Dalí, com destaque especial para este último, pela profunda admiração mútua (e não só...), cuja amizade veio a sofrer uma dolorosa e lenta ruptura após Lorca haver publicado Romancero Gitano em 1928*, Dalí chega a apelidá-lo de un perro andaluz, ironizando através da alusão ao filme surrealista escrito por Dalí e Buñuel e realizado por este último; as entrelinhas da sua condição de homossexual, reprimida por uma sociedade tremendamente machista, de implacabilidade e violência homofóbicas e de um profundo fundamento religioso, onde as facas dilacerantes eram falos e a sua evocação da Lua, como anunciação permanente da morte e de um erotismo oculto. Por fim, o García Lorca político, a falaciosa capa de perigoso espião russo cuidadosamente erigida para ocultar a sua morte bárbara e desonrosa perante um pelotão de fuzilamento dos falangistas e que mais tarde foi impudica e ardilosamente aproveitada pelos vermelhos republicanos como bandeira dos seus ideais não menos bárbaros e sanguinários. Todavia, Lorca nada queria da política e dos políticos, apesar de demonstrar, através da sua arte, as suas preocupações sociais com os mais desfavorecidos e com as minorias étnicas. O poeta morreu vítima de uma sociedade fechada, confessional, preconceituosa e fortemente homofóbica. De um dos seus carrascos são as palavras: «Acabamos de matar a Federico García Lorca. Yo le metí dos tiros en el culo por maricón […] Es que estábamos hartos ya de maricones en Granada.» (pág. 15)
{*Excerto da carta de Salvador Dalí a García Lorca a propósito de Romancero Gitano: «“Li calmamente o teu livro […] A tua poesia de hoje cai dentro do tradicional, e nela descubro a substância poética mais suculenta que alguma vez existiu mas ligada em absoluto às regras da poesia antiga, incapaz de nos emocionar e satisfazer os nossos desejos actuais. A tua poesia está de mãos e pés amarrada à poesia velha. Talvez julgasses aquelas imagens atrevidas, ou naquilo que fazes encontrasses uma dose aumentada de irracionalidade, mas posso dizer-te que a tua poesia se move dentro da ilustração dos lugares-comuns mais estereotipados e conformistas.”» (pp. 129-130)}
Para terminar, resta apenas referir o trabalho notável de síntese, de tradução e de compilação de Aníbal Fernandes, aliás como vem sendo hábito na sua vasta carreira de tradutor de autores estrangeiros de primeira água.
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Federico García Lorca, Anjo e Duende. Lisboa: Assírio & Alvim, 1.ª edição, Abril de 2007, 155 pp. (tradução, apresentação e notas de Aníbal Fernandes).
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