quarta-feira, 16 de maio de 2007

O Hexágono

«O universo (a que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no meio, cercado de parapeitos baixíssimos.»

Corro de plano em plano e ainda nem sequer saí do primeiro hexágono. «Os idealistas argumentam que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto, ou pelo menos da nossa intuição do espaço. Consideram que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (Os místicos pretendem que o êxtase lhes revela uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que dá toda a volta das paredes; mas o seu testemunho é suspeito; as suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus.) Basta-me por agora repetir a clássica sentença: A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, e uma circunferência é inacessível.»
A volúpia das palavras que sofregamente vou tragando avoluma o meu inextinguível desassossego por aquelas que não li, são como açúcar para hiperglicemia, a traição para a inveja, não são uma inutilidade, porque não são neutras; massacram, extenuam, adejam por sobre as nossas cabeças em movimentos lúbricos, exibindo-nos a certeza de que sempre existirão em combinações de 25 sinais ortográficos que se repetem em livros de 410 páginas que se diferenciam entre si pela mudança de apenas uma delas, e voltamos ao primeiro axioma de Borges que a "Biblioteca existe ab aeterno" e seríamos perfeitamente estúpidos se nela vislumbrássemos um fim.
Porventura foi esse sentimento de imortalidade que se renova a cada palavra escrita que me tornaram bibliómano sem remição; o meu longínquo momento de fuga pela Tua ausência, o desvio para a paralela superior e a esperança não-euclidiana de nos encontrarmos, segundo Poncelet, no tal ponto no infinito – aquele que a perspectiva une na eternidade duas paralelas. E sei, por Pascal, que com esse hexágono gravado nessa circunferência divina e etérea consigo encontrar três pontos de intersecção, formados a partir da projecção de três pares de rectas dos lados opostos do hexágono, que são colineares... deles extraio o caminho que me leva a esse além-mundo inescrutável.
Agora pensa nas rectas que se formam a partir desses hexágonos de nível superior, na infinidade de caminhos que se cruzam e me distraem de um objectivo que o tempo tornou difuso. Em suma, o esforço inumano que qualifica esta fuga, que me desvia daquilo que os outros assentiram ser a minha vocação, o tal fundamento para uma condenação in absentia.
E sigo ainda com Borges, através de Vila-Matas, Doutor Pasavento, que vou tragando com a tal, a inaudita, sofreguidão:

«Ignoro se a música sabe desesperar da música e se o mármore do mármore, mas a literatura é uma arte que sabe profetizar aquele tempo em que terá emudecido, e encarniçar-se com a própria virtude e enamorar-se da própria dissolução e cortejar o seu fim.»

Falta-me tempo…
Trinta e três obras foram seleccionadas por Jorge Luis Borges para integrarem A Biblioteca de Babel, uma selecção de textos de literatura fantástica, originalmente propostos ao autor argentino pelo editor italiano Franco Maria Ricci e prefaciados por Borges – ler aqui a história. Como é sabido, a Editorial Presença teve a feliz ideia de editar esta colecção no nosso país, que começou a ser publicada desde o início de 2007.
Se apenas escrevo no aqui e agora uma nota sobre esta empreitada, tal ficou a dever-se a alguma preguiça de escritor blogueiro, cujo momento escolhido, o agora, resultou da eminência do autor do 4.º livro publicado da série referida. Trata-se da obra Os Amigos dos Amigos (The Friends of the Friends, 1896 [originalmente publicado como The Way It Came]) escrita por O Mestre, Henry James, pela primeira vez traduzida para a língua de Camões.
Os livros já publicados para além deste último (por ordem cronológica de publicação):

  • Gustav Meyrink – O Cardeal Napellus (Der Kardinal Napellus, 1913);
  • Pedro Antonio de Alarcón – O Amigo da Morte (El amigo de la muerte: cuento fantástico, 1852);
  • Giovanni Papini – O Espelho que Foge (Lo specchio che fugge, 1906).

Para além das 4 obras já publicadas, que representam, respectivamente, 4 línguas diferentes – alemão, espanhol, italiano e inglês – e de mais 4 obras de Borges – uma delas em co-autoria com Bioy Casares –, fazem parte desta biblioteca – que será publicada na íntegra pela Editorial Presença – nomes como Melville (com o seu Bartleby), Kafka (O Abutre), Wilde, Poe, Hawthorne, Voltaire, Chesterton, H.G. Wells, R.L. Stevenson, J. London e R. Kipling.

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