Não sei por onde começar, e muito menos como este texto poderá acabar. Dou, portanto, livre curso às palavras que se sucedem num ritmo ditado por um raciocínio não repisado, apenas animado pela leitura terminada há quatro dias, deixando que alguma da emoção ganhe corpo nas breves linhas que se seguem.
Há uns dias, quando soube da iminência da estreia do novo trabalho do autor inglês Ian McEwan, escrevi isto, tentando dar uma perspectiva evolucionista, onde não faltava o processo de selecção natural, da sua já extensa bibliografia.
Sinceramente, não sei se tudo o que proferi naquele texto foi entretanto derrogado por este último trabalho. Porém, essa tal derrogação, um processo súbito de nulidade da minha divagação de diletante, a ter ocorrido só veio demonstrar quão bela é, para nós leitores – receptores passivos –, esta arte de escrever. Arte a que se convencionou chamar de Literatura: imprevisível, arrebatadora, sufocante e verdadeiramente deslumbrante quando as palavras e as ideias, como uma amálgama de barro em bruto em cima da pedra do oleiro, são trabalhadas, quiçá, por inspiração divina, por um misterioso sopro etéreo ininteligível e jamais acessível ao comum dos mortais. Essa é, decerto, a maneira mais cómoda para catalogar a genialidade de alguém que dos caracteres – tão à nossa mão – engendra a beleza e, de forma indelével, transporta o seu nome para o Olimpo das letras.
Depois de escritos e de lidos os parágrafos anteriores, constato que estes não surgiram sem causa aparente. Transmitiram, na verdade, o que me ia na alma quando me atrevi a falar de Ian McEwan e do seu último romance – novela? – Na Praia de Chesil.
Quem são Florence e Edward? Ou melhor, o que representa esse conúbio de nomes próprios?
Há uns dias, quando soube da iminência da estreia do novo trabalho do autor inglês Ian McEwan, escrevi isto, tentando dar uma perspectiva evolucionista, onde não faltava o processo de selecção natural, da sua já extensa bibliografia.
Sinceramente, não sei se tudo o que proferi naquele texto foi entretanto derrogado por este último trabalho. Porém, essa tal derrogação, um processo súbito de nulidade da minha divagação de diletante, a ter ocorrido só veio demonstrar quão bela é, para nós leitores – receptores passivos –, esta arte de escrever. Arte a que se convencionou chamar de Literatura: imprevisível, arrebatadora, sufocante e verdadeiramente deslumbrante quando as palavras e as ideias, como uma amálgama de barro em bruto em cima da pedra do oleiro, são trabalhadas, quiçá, por inspiração divina, por um misterioso sopro etéreo ininteligível e jamais acessível ao comum dos mortais. Essa é, decerto, a maneira mais cómoda para catalogar a genialidade de alguém que dos caracteres – tão à nossa mão – engendra a beleza e, de forma indelével, transporta o seu nome para o Olimpo das letras.
Depois de escritos e de lidos os parágrafos anteriores, constato que estes não surgiram sem causa aparente. Transmitiram, na verdade, o que me ia na alma quando me atrevi a falar de Ian McEwan e do seu último romance – novela? – Na Praia de Chesil.
Quem são Florence e Edward? Ou melhor, o que representa esse conúbio de nomes próprios?
«Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.» (pág. 7)
Não, não vou voltar a falar da importância de uma boa abertura de uma obra de ficção para o conjunto da obra. No entanto, toda o romance, de escassas 129 páginas na versão portuguesa, parece subsumido, numa perspectiva aglutinadora, por esta primeira frase.
A época
A parte principal da narrativa decorre em 1963, época definida em termos históricos como prenunciadora das grandes convulsões sociais, precisamente encaixada no interstício entre a cura das feridas abertas pelo conflito mundial de 39-45 pela sociedade britânica do pós-guerra e os primeiros sinais da revolução cultural – incluindo a libertação sexual – que iria transformar o mundo ocidental na década 60 do século XX. Trata-se do período histórico da consciencialização social e da materialização do hiato geracional que divide, num antagonismo difícil de não sobrevir à luz do dia, os fazedores e os filhos da guerra. Entre o pragmatismo marcial de defesa dos valores ancestrais de um povo e o idealismo humanista, um grito de alerta perante a constatação das debilidades de uma estrutura social vetusta e corrompida, descentrada do género humano, dos seus anseios mais prementes, e voltada para um paradoxo concretizado na febre securitária na corrida ao armamento, potencialmente aniquiladora do género humano.
Era o tempo do Primeiro-Ministro britânico Harold Macmillan e dos seus esforços para que o Reino Unido integrasse a, à época, recentemente formada CEE, contemporâneo do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy – e não sei se se trata de uma mera coincidência, mas a acção principal decorre em meados do Verão de 63, sendo que JFK foi assassinado em Dallas a 22 de Novembro desse ano – e de Nikita Khrushchev como secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética.
Jovens diplomados e virgens
Florence e Edward simbolizam a tão mcewaniana tensão sexual que dá impulso ao mundo e que, posteriormente, depois de libertada, o cobre de uma mancha indestrutível, a inocência definitivamente perdida e a frustração advinda dessa perda.
Dois jovens que se conhecem, segundo eles, num conjunto de acasos ordenados por uma entidade superior e cujo destino se precipita para o, aparentemente, inevitável enlace conjugal.
Edward, filho de um professor e de uma mulher que, de forma insólita – um misterioso viajante da City, sem tempo a perder, abre a porta do comboio, ainda em andamento, que a atinge na cabeça enquanto esta, grávida de gémeos, espera pelo marido, regressado da guerra, no cais de embarque da estação de comboios –, se vê definitivamente aprisionada dentro da casa de gritos que é a sua própria mente, deixando entregues ao cuidado do pai os afazeres domésticos, para além da árdua tarefa de sustentar com os seus proventos a educação dos filhos. Edward licencia-se em História, com menção de honra, no University College de Londres. Leva uma vida perfeitamente vulgar e comum à maioria dos jovens adultos da sua comunidade: estudos, pubs, pancadaria, mulheres e um ritual masturbatório de estrita observância.
Florence, filha de pais ricos, vive em Oxford, estuda música e toca violino, havendo terminado o curso no Royal College of Music em Londres e formado um quarteto com três dos melhores alunos da faculdade, o Ennismore Quartet. Vive entre uma mãe filósofa fria e distante, e um pai, um bem-sucedido homem de negócios, desprovido de emoção. Ela própria transporta consigo a frialdade do ambiente familiar, carente de afectos e de manifestações de sentimento.
Ambos assentam que se podiam ter conhecido mais cedo quando em 1959 participaram na mesma manifestação em Londres, na Trafalgar Square, contra a bomba atómica. E é curiosamente a propósito de uma futura reunião do CND – Campaign for Nuclear Disarmament – que se ficam a conhecer, apesar de ambos haverem acorrido ao local por motivos diversos, como uma fuga perante uma agitação momentânea.
É na inusitada conjugação destes dois mundos, o antigo e o moderno, o rebuscado e o rude, o frágil e o duro, Florence e Edward, que McEwan constrói a narrativa. É a história de uma união que se consumou no papel num dos primeiros dias de Julho, no Verão de 1963, entre uma Florence dedicada e subtil, que apenas suporta a tessitura da música clássica, e um Edward, instruído e viril, que pressente, pela música, os ventos de mudança que começam a chegar de quatro rapazes de Liverpool, dos Rolling Stones e dos EUA, Chuck Berry e os pais do rock and roll.
A narrativa inicia-se numa suíte nupcial num hotel contíguo à praia de Chesil, no condado de Dorset, no Sudoeste de Inglaterra.
Encontram-se ambos no quarto, com uma refeição para degustar, servida por dois rapazes empregados do hotel, esperando pelo momento da consumação do casamento, onde se entrecruzam os sentimentos de horror e de exasperação, por um acto tão simples como amar, que se exige sem qualquer tipo de amargura e de pudor, sob pena de se viver nos escombros de uma vida arruinada.
(O relato dos acontecimentos da Praia de Chesil foi propositadamente evitado para com ele não estragar o prazer da descoberta a quem, com muita paciência, digeriu este texto e ainda não leu, mas tenciona ler, o romance de McEwan.)
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Ian McEwan, Na Praia de Chesil. Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Abril de 2007, 129 pp. (tradução de Ana Falcão Bastos; obra original: On Chesil Beach, 2007).
Nota: curioso o aviso final (pág. 129) escrito pelo próprio autor, ainda torturado com a infâmia que uma aproveitadora lhe lançou acerca da sua melhor obra de sempre: Expiação.
A época
A parte principal da narrativa decorre em 1963, época definida em termos históricos como prenunciadora das grandes convulsões sociais, precisamente encaixada no interstício entre a cura das feridas abertas pelo conflito mundial de 39-45 pela sociedade britânica do pós-guerra e os primeiros sinais da revolução cultural – incluindo a libertação sexual – que iria transformar o mundo ocidental na década 60 do século XX. Trata-se do período histórico da consciencialização social e da materialização do hiato geracional que divide, num antagonismo difícil de não sobrevir à luz do dia, os fazedores e os filhos da guerra. Entre o pragmatismo marcial de defesa dos valores ancestrais de um povo e o idealismo humanista, um grito de alerta perante a constatação das debilidades de uma estrutura social vetusta e corrompida, descentrada do género humano, dos seus anseios mais prementes, e voltada para um paradoxo concretizado na febre securitária na corrida ao armamento, potencialmente aniquiladora do género humano.
Era o tempo do Primeiro-Ministro britânico Harold Macmillan e dos seus esforços para que o Reino Unido integrasse a, à época, recentemente formada CEE, contemporâneo do presidente norte-americano John Fitzgerald Kennedy – e não sei se se trata de uma mera coincidência, mas a acção principal decorre em meados do Verão de 63, sendo que JFK foi assassinado em Dallas a 22 de Novembro desse ano – e de Nikita Khrushchev como secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética.
Jovens diplomados e virgens
Florence e Edward simbolizam a tão mcewaniana tensão sexual que dá impulso ao mundo e que, posteriormente, depois de libertada, o cobre de uma mancha indestrutível, a inocência definitivamente perdida e a frustração advinda dessa perda.
Dois jovens que se conhecem, segundo eles, num conjunto de acasos ordenados por uma entidade superior e cujo destino se precipita para o, aparentemente, inevitável enlace conjugal.
Edward, filho de um professor e de uma mulher que, de forma insólita – um misterioso viajante da City, sem tempo a perder, abre a porta do comboio, ainda em andamento, que a atinge na cabeça enquanto esta, grávida de gémeos, espera pelo marido, regressado da guerra, no cais de embarque da estação de comboios –, se vê definitivamente aprisionada dentro da casa de gritos que é a sua própria mente, deixando entregues ao cuidado do pai os afazeres domésticos, para além da árdua tarefa de sustentar com os seus proventos a educação dos filhos. Edward licencia-se em História, com menção de honra, no University College de Londres. Leva uma vida perfeitamente vulgar e comum à maioria dos jovens adultos da sua comunidade: estudos, pubs, pancadaria, mulheres e um ritual masturbatório de estrita observância.
Florence, filha de pais ricos, vive em Oxford, estuda música e toca violino, havendo terminado o curso no Royal College of Music em Londres e formado um quarteto com três dos melhores alunos da faculdade, o Ennismore Quartet. Vive entre uma mãe filósofa fria e distante, e um pai, um bem-sucedido homem de negócios, desprovido de emoção. Ela própria transporta consigo a frialdade do ambiente familiar, carente de afectos e de manifestações de sentimento.
Ambos assentam que se podiam ter conhecido mais cedo quando em 1959 participaram na mesma manifestação em Londres, na Trafalgar Square, contra a bomba atómica. E é curiosamente a propósito de uma futura reunião do CND – Campaign for Nuclear Disarmament – que se ficam a conhecer, apesar de ambos haverem acorrido ao local por motivos diversos, como uma fuga perante uma agitação momentânea.
É na inusitada conjugação destes dois mundos, o antigo e o moderno, o rebuscado e o rude, o frágil e o duro, Florence e Edward, que McEwan constrói a narrativa. É a história de uma união que se consumou no papel num dos primeiros dias de Julho, no Verão de 1963, entre uma Florence dedicada e subtil, que apenas suporta a tessitura da música clássica, e um Edward, instruído e viril, que pressente, pela música, os ventos de mudança que começam a chegar de quatro rapazes de Liverpool, dos Rolling Stones e dos EUA, Chuck Berry e os pais do rock and roll.
A narrativa inicia-se numa suíte nupcial num hotel contíguo à praia de Chesil, no condado de Dorset, no Sudoeste de Inglaterra.
Encontram-se ambos no quarto, com uma refeição para degustar, servida por dois rapazes empregados do hotel, esperando pelo momento da consumação do casamento, onde se entrecruzam os sentimentos de horror e de exasperação, por um acto tão simples como amar, que se exige sem qualquer tipo de amargura e de pudor, sob pena de se viver nos escombros de uma vida arruinada.
(O relato dos acontecimentos da Praia de Chesil foi propositadamente evitado para com ele não estragar o prazer da descoberta a quem, com muita paciência, digeriu este texto e ainda não leu, mas tenciona ler, o romance de McEwan.)
Classificação: ***** (Muito Bom)
Referência bibliográfica:
Ian McEwan, Na Praia de Chesil. Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Abril de 2007, 129 pp. (tradução de Ana Falcão Bastos; obra original: On Chesil Beach, 2007).
Nota: curioso o aviso final (pág. 129) escrito pelo próprio autor, ainda torturado com a infâmia que uma aproveitadora lhe lançou acerca da sua melhor obra de sempre: Expiação.
Sem comentários:
Enviar um comentário