sábado, 26 de maio de 2007

David

David FincherNos dias que correm, essencialmente por motivos de crescimento familiar, é-me cada vez mais difícil conseguir deslocar-me a uma sala de cinema para assistir às últimas novidades. Normalmente, espero pela edição em DVD e mesmo assim, encontrar um ínterim de descontracção nas tarefas parentais, é objectivamente uma tarefa delicada.
Contudo, há excepções que se abrem por causas que reputo de nobres na minha escala de encantamentos muito pessoal, de mais fácil concretização na Literatura, de alguma dificuldade de acrobata no Cinema – locais de exibição, horários e tempo de permanência no circuito comercial – e de uma quase impossibilidade na Música – concertos em Lisboa ou em locais inacessíveis, pantanosos e babilónicos como os que acolhem os festivais de Verão.
Eis a excepção para a fuga: David.

Nascido há quase 45 anos em Denver, Colorado, Estados Unidos (Agosto de 1962), David Fincher é, de longe, na actualidade, o meu realizador de cinema preferido.
Sem formação académica nas artes e ciências cinematográficas, começou, por realizar anúncios publicitários para marcas destacadas e alguns vídeos musicais. Com apenas 30 anos realizou o terceiro filme da saga Alien – de longe o seu pior, abaixo da versão de Ridley Scott (Alien, o 8.º passageiro, filme de 1979) e da de James Cameron (Aliens, recontro final, filme de 1986), mas imensamente superior à de Jean-Pierre Jeunet.
Segue-se a fabulosa sequência Se7en (1995), O Jogo (1997), Clube de Combate (1999), A Sala de Pânico (2002) e Zodiac (2007), encontrando-se a rodar o mais do que aguardado The Curious Case of Benjamin Button, baseado no conto homónimo do gigante decadentista Francis Scott Fitzgerald – um dos melhores de sempre na sua arte e no top 10 das minhas preferências literárias –, com Brad Pitt e Cate Blanchett nos principais papéis.
Já descrevi em inúmeros textos neste e no meu anterior
blogue as sensações experimentadas com cada filme daquele sublime quarteto. Hoje chegou a vez de Zodiac, estreado em Portugal e no mundo inteiro (circuito comercial) no passado dia 17 de Maio.

Fincher, conhecido no meio pela exigência que apõe nos guiões que escolhe para levar à grande tela – lembro-me bem do desgosto que se acometeu de mim quando o seu nome foi apontado para a realização do 3.º filme da série Missão Impossível, que, felizmente, mais tarde viria a recusar –, conseguiu uma vez mais subverter as expectativas que qualquer cinéfilo poderia dispor sobre um filme baseado nos crimes reais ocorridos, nas décadas de 60 e 70 do século passado, em São Francisco, perpetrados por um assassino em série que se dava a conhecer pelo nome de código Zodiac, que por sua vez deriva do expediente de envio de mensagens encriptadas onde aquele relatava os brutais assassinatos. Zodiac não é um filme sobre serial killers, cujo modelo está completamente estafado após as incontáveis réplicas, tão típicas de Hollywood, que se seguiram ao excepcional O Silêncio dos Inocentes de Jonathan Demme – atenção que Se7en também não o foi...
Do parágrafo anterior não se entenda que o derribar das tais expectativas contribuiu para ferir de morte o fascínio que a obra suscita. Bem pelo contrário, a surpresa surge pela engenhosa secundarização dos crimes, mostrando-nos outra realidade que, à boa maneira de Hitchcock, está diante dos nossos olhos, é palpável, tem som, cor e cheiro, mas que se nos vai revelando de forma progressiva e parcimoniosa, como se caminhássemos sob as trevas profundas de uma caverna em direcção à porta para o resplandecente mundo exterior: aquilo que antes era um ténue fio de luz culmina num brilho ofuscante, de íris ainda dilatadas pela surpresa.


Zodiac é um filme sobre a obsessão e sobre a ínfima distância, não percebida, a que aquela se encontra de nós, à ilharga, pronta a atacar pelo choque e pelo medo emanados de um acontecimento brutal. A obsessão é aqui entendida como um ser vivo que se vai alimentando, numa voracidade invisível, de tudo aquilo que rodeia o seu objecto, como uma bomba de neutrões detonada pela nossa acção primária sem a assunção das possíveis consequências, e cuja radiação destrói tudo o que se mexe e que gravita em torno da nossa existência, deixando apenas de pé a efígie do monumento que é a nossa mente.
Zodiac não é um filme de travelings ou de soluções tecnológicas inovadoras como foram os seus predecessores, realizados por Fincher. É, no entanto, um filme cerebral e perturbador pela forma como se escoa o fio da narrativa em planos fixos, gestos, olhares e toda uma coreografia representativa da somatização de um desconcerto espiritual e comportamental. É, também, uma obra cheia de subentendidos, de imagens subliminares e de planos que despertam em nós o sentimento, bem sintetizado pela expressão francesa, de “dejà vu” – o Ricardo, por exemplo, lembra uma delas que também não me escapou enquanto via o filme: o grande crachá do Nixon na secretária do jornalista Paul Avery interpretado, de forma magistral, por Robert Downey, Jr.


Depois há a ligação estabelecida ao filme mudo The Most Dangerous Game (1932) realizado pela dupla Irving Pichel e Ernest B. Schoedsack, baseado na obra homónima do escritor norte-americano Richard Donnell – que se encontra editada em Portugal pela Assírio & Alvim (colecção Beltenebros) sob o título Zaroff (O Jogo mais Perigoso) – este livro conta a história de um psicopata, o Conde Zaroff, que vivendo isolado no seu castelo situado numa ilha, vai recebendo os náufragos que aí vão acostando, entre eles o caçador Bob Rainsford que de súbito se vê envolvido num jogo de contornos macabros criado pelo anfitrião, onde os hóspedes se tornam presas – o jogo mais perigoso. Ora, Zodiac, o homicida, ter-se-á, alegadamente, baseado na obra de Connell, na medida em que se serve dessa tensão psicológica de expectativa de crime iminente para, através dos jogos labirínticos criados para as suas presas preferenciais – os investigadores policiais e os jornalistas –, poder perpetrar os seus crimes. O assassino do zodíaco vive precisamente aí, no intrincado da lei processual penal excessivamente garantista, que rege a própria investigação criminal, e que se propaga a todo um ordenamento jurídico de um Estado de Direito. E daí as diversas alusões ao eterno inspector Harry Callahan, mais conhecido como Dirty Harry, personagem imortalizada no cinema por Clint Eastwood, que por outros meios, chamemos-lhes, eufemisticamente, heterodoxos, alcançava êxito nas suas brutais investigações policiais, tal como sucede no filme epónimo com a perseguição ao homicida de nome Scorpio, que os investigadores e jornalistas do filme de Fincher assistem na data da sua estreia em 1971: [Dirty Harry]: Well, I'm all broken up over that man's rights! [Em resposta ao magistrado do MP que o acusava de brutalidade policial e de desrespeito à lei].

Com Zodiac temos David no seu melhor.
(Embora possa aqui fazer um mea culpa, ao reconhecer a inutilidade do emprego do adjectivo comparativo de superioridade de bom na última frase. Em Fincher não lhe consigo detectar outro valor na escala qualitativa.)

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