sábado, 28 de agosto de 2010

Presente ou prenda?

Presente de Morte foi o título escolhido em Portugal para apresentar a última diabrura devaneante do menino-prodígio norte-americano Richard Kelly (n. 1971) que, com vinte e nove anos, assustou meio mundo, assim como o jovem púbere Donnie Darko (Jake Gyllenhaal) com um coelho psicadélico ectoplasmático e marcadamente apocalíptico.
The Box, ou A Caixa, é o seu título original, tal como original – podem substituir o adjectivo por heteróclito – foi a designação seleccionada para o circuito comercial português, que decerto teve o cunho da cerebral e erudita Cinha Jardim que tem horror a “prenda” para denominar uma “oferenda”, embora neste último caso a palavra tenha uma conotação mais bíblica e por isso mais próxima do bafio confessional que marcou o homem, por ela reverenciado, originário do Vimieiro, Santa Comba Dão, Viseu, que governou o país entre 1932 e 1968, e daí o seu uso poder ser interpretado como uma dupla heresia.
Saindo do mundo intelectual onde se cultiva o cinhismo, desta feita Kelly adaptou ao grande ecrã um conto, “Button, Button”, do autor prolixo de ficção científica Richard Matheson – publicado pela primeira vez na revista Playboy na edição de Junho de 1970, tendo como playmate nas icónicas centerfold Elaine Morton (julgo ser assaz relevante ter aposto neste texto esta nota, assim como a sua hiperligação de pendor biográfico).
O Coelho (esqueçam-se da minha deambulação pelo mundo das coelhinhas) transformou-se num homem enigmático, grotesco e cauterizado de nome Arlington Steward (Frank Langella, que substituiu à última hora Sandro Correia, uma vítima de outros raios, mais pneumáticos), e Donnie no casal Lewis (interpretado por Cameron Diaz e James Marsden), e mais uma vez, e de forma engenhosa, o sobrenatural se transubstancia num pano de fundo moral, cujas ganância e volúpia do materialismo sobressaem como teste de resistência à integridade humana. Estávamos na época de Gerald Ford, em plena efervescência da conquista do planeta vermelho e do lançamento da sonda espacial Viking 1.
Neste momento, e decorridas quase vinte e quatro horas da sua projecção perante estes meus olhos que muito já devoraram de arte cinematográfica, o filme subsiste no terrível limbo dos OFNI (Objecto Fílmico Não Identificado). Está, por enquanto, bastante longe do prazer que retirei do assombroso Donnie Darko (2001), embora perdure na minha mente um gérmen ambivalente e paroxísmico, pronto a eclodir, como um raio chamuscador que rasga os céus rumo a terra firme, numa aversão desmesurada ou numa afeição arrebatada; como até pode por lá permanecer (porventura acomodado num vácuo que por ora soberbamente desconheço) e definhar por inanição e indiferença.
Derrogando, com imenso prazer, o cinhismo balofo: que rica prenda Kelly nos deixou, manifestamente ignorada pelo mundo contemporâneo da cinefilia.