sexta-feira, 16 de abril de 2010

Infinidades

Moderada e incoerentemente publicado em Portugal, não é de surpreender que o último romance do já sexagenário escritor irlandês John Banville (n. 1945) não seja notícia ou, pelo menos, objecto de bulício literário no meio editorial nacional – dois advérbios de modo a abrir o texto para provocar estrondosos arrepios aos escrupulosos guardiães da língua portuguesa, e (ai, e a vírgula a seguir à conjunção copulativa…) por, gramaticalmente, ser tão ao gosto do autor em questão (suponho ser dele a maior sucessão de advérbios de modo que pude ler numa obra de ficção, em cujo uso García Márquez manifestava uma enorme repulsa ou, pelo menos, relutância, embora os haja utilizado profusamente na sua primeira autobiografia, Viver para Contá-la).
Em 2005, Banville vence inesperadamente o seu, por enquanto único, Booker Prize, com a novela, mascarada de romance, por jeito regulamentar conferido pelo júri do mencionado galardão, O Mar (The Sea; entre nós publicado(a) em 2006 pela Asa – na altura, editora símbolo do orgulho literário e da independência literária portuenses –, ainda fora do caldeirão LeYa), num ano cujo sexteto finalista foi até hoje, na minha única e inderrogável perspectiva, um dos mais ilustres desde 1969 (annus mirabilis em que o Booker começou a ser atribuído).
Mas a literatura irlandesa tem sido um problema luso. Beckett, Joyce e, em certa medida, Bernard Shaw à parte e nas suas épocas, continuamos a publicar de forma episódica e errática os grandes autores contemporâneos do país da Harpa Gaélica. Se Portugal contasse no mercado editorial mundial, Banville até nem teria muitas razões para se queixar pelo constatado esquecimento hibérnico que assola o cantinho literário luso; lembremo-nos, por exemplo e para citar apenas alguns dos mais recentes ou contemporâneos, Sebastian Barry ou Colm Tóibín ou até mesmo, vogando para terras do Ulster, pelo mundo dos mortos e por tempos mais remotos, o aclamado Flann O’Brien (1911-1966), pseudónimo mais reconhecido de Brian O’Nolan, cuja obra-prima, assim universalmente considerada, At Swim-Two-Birds (1939) continua por publicar no mercado nacional, onde na sua algaraviada deprecatória se ouvem os sons abafados da ainda 6.ª língua mais falada em todo o mundo.
Mais de quatro anos volvidos, Banville volta a publicar um romance, libertando-se do seu heterónimo (pelo menos, nas suas confissões, pressentem-se os sintomas de desmultiplicação do eu, processo eminentemente pessoano) Benjamin Black. Banville é um autocrítico implacável, duro e, por vezes, tão severo, que as suas palavras autodepreciativas roçam os cenários conjecturais mais hórridos da autoflagelação. Black é prolífico, simples, redutor e escreve romances policiais, cujas palavras surgem como torrentes – segundo confissão do próprio – erigindo como epítome o belga, literariamente fértil, Georges Simenon e a obra das obras La neige était sale (1948), na opinião do escritor irlandês.
Por agora, jaz, constrangido, na minha pilha dos livros de leitura futura, a novel edição da Asa do primeiro romance de Black na era de fecundidade do alter-ego de Banville – O Segredo de Christine (Christine Falls, 2006). A seu tempo apreciá-lo-ei palavra por palavra, arabesco por arabesco. Todavia, para um banvilliano confesso, por maior que seja o menosprezo do próprio autor pela sua obra publicada – que se fosse outro a dizê-lo, lembro-me por exemplo de Auster, seria interpretado como um exercício da mais descarada forma de auto-indulgência de apelo à piedade pelo desgraçado –, os sintomas de ressaca de banviallina já se manifestam, catalisados pelo nervo óptico, tal é a quantidade de lixo estrangeiro que, hoje em dia, por aqui se publica. Só quem não leu o devastador, melancólico e sombrio (pois claro, está no título) Eclipse (2000) ou, por exemplo, os concatenados O Livro da Confissão (The Book of Evidence, 1989) e Fantasmas (Ghosts, 1993), é que pode vituperar estas curtas linhas de pura e irrestrita afeição literária.
Banville, o artista perturbado com o seu passado literário, lançou mão do seu predilecto e fonte de inspiração Heinrich von Kleist (1777-1811), baseando o seu romance mais recente na peça de teatro burlesca Anfitrião (Amphitryon, 1807), que o ilustre e desassossegado alemão foi beber à fonte inexaurível de Molière, que já vinha do romano Plauto, precedido, segundo se diz (não existe escrito), pelo génio criativo do grego Sófocles. O romance chama-se The Infinities, usando como referência a imortalidade olímpica.
Eis um pequeno excerto (1.º parágrafo) da, por agora, elogiadíssima obra, com tradução cá da casa – apesar do temor (e tremor) inicial em arruinar (dantescamente condenado às chamas do círculo nono do Inferno, traditore) as palavras etéreas que saem daquela pena:

«De entre as coisas que criámos para que eles se possam sentir desassombrados, o alvorecer é a que funciona melhor. Quando a escuridão é coada pelo ar, como suaves e finas partículas de pó, e a luz começa a espalhar-se, vagarosamente, a partir do Oriente, nesse instante todos, excepto os mais miseráveis entre a humanidade, recobram forças. É um espectáculo que nós, imortais, desfrutamos, esta pequena ressurreição diária; muitas vezes juntamo-nos nas muralhas das nuvens e fitamo-los, os nossos pequeninos, à medida que se agitam para acolher o novo dia. Que silêncio, então, se abate sobre nós, o triste silêncio da nossa inveja. Muitos deles continuam a dormir, claro, alheados do encantador truque matutino da nossa prima Aurora, mas há sempre os insones, os enfermos agitados, os mal-amados a dar voltas nas suas camas solitárias, ou apenas os madrugadores, os atarefados, com os seus alongamentos, os seus duches frios e as suas chaveninhas aparatosas de ambrósia negra. Sim, todos aqueles que o testemunham saúdam o alvorecer com alegria, ou quase todos, se exceptuarmos, claro, os homens condenados, para quem a primeira luz será a última sobre a Terra.»
John Banville, The Infinities, p. 1 [tradução livre: AMC, 2010]
[London: Picador, September, 2009, 304 pp.]

Um mimo simbolicamente banvilliano (ou banvillianamente simbólico?)
Obras de John Banville editadas em Portugal, organizadas cronologicamente (data de publicação da obra original), da mais antiga à mais recente:
  • Doutor Copérnico (Dom Quixote; obra original: Doctor Copernicus, 1976) – inacreditavelmente, sem seguimento com as restantes duas obras que completam a “Trilogia das Revoluções”, literatura e ciência: Kepler (1981) e The Newton Letter (1982);
  • O Livro da Confissão (Quetzal; obra original: The Book of Evidence, 1989);
  • Fantasmas (Dom Quixote; obra original: Ghosts, 1993): neste caso, ficou por publicar o último livro da sua segunda trilogia, “Frames” – dada a carga semântica deste título, optei por o deixar em inglês, porquanto se refere não só à simples “moldura” de um mero quadro (roubado pelo omnipresente e brutal narrador no 1.º livro), como também à “urdidura” ou “trama”, bem como ao referencial temático da relação entre a arte (pintura) e a literatura, intertextualidade e descrição minuciosa do objecto artístico –, trilogia, então, constituída por este e pelo livro precedente, e ainda pelo não publicado Athena (1995);
  • O Intocável (Dom Quixote; obra original: The Untouchable, 1997);
  • Eclipse (Ulisseia; obra original: Eclipse, 2000);
  • O Impostor (Ulisseia; obra original: Shroud, 2002);
  • Imagens de Praga: Retratos de uma Cidade (Asa; obra original: Prague Pictures: Portrait of a City, 2003);
  • O Mar (Asa; obra original: The Sea, 2005);
  • O Segredo de Christine (Asa; obra original: Christine Falls, 2006) – publicada sob o pseudónimo Benjamin Black.