Foi apenas hoje que, enquanto perscrutava os escaparates de uma livraria concorrente, mais asseada, diversificada e arrumada, para somar à minha onerosa (de certo modo, utópica) lista de desejos para os Dias do Aderente Fnac nas próximas quinta e sexta-feira – nos tempos que correm, não são despiciendos os 19% de desconto sobre o preço de capa –, reparei numa nova edição de um romance de Bellow no mercado editorial português. Trata-se do admiravelmente urdido Morrem Mais de Mágoa (More Die of Heartbreak, 1987), talvez o último romance de grande fôlego do autor canadiano de nascença, embora americano crónico desde tenra idade.
Bellow é responsável por um dos mais saudáveis dilemas no meu habitual e íntimo exercício de classificação da obra de um autor em que pelo menos dois terços daquela hajam passado pelo meu crivo estético-literário; e esse dilema mostrou o seu aspecto de dolorosa indecisão – como se escolher um romance em detrimento de outros se tornasse um caso de vida ou de morte, talvez uma vacuidade neste mundo filistino, a tender inexoravelmente para o absoluto do qualificativo – quando na minha passagem relâmpago pelo Facebook (a um ano de distância a desistência após três meses afigura-se-me cada vez mais como um acto prudente e ajuizado, um bem-haja para mim) me propuseram que, à queima-roupa, postasse uma listagem com os meus 10 ou 15 romances preferidos, sem muito pensar ou discernir para não contaminar a imposta espontaneidade. Assim o fiz e de imediato fui criticado, porque para além de ter efectuado trabalhos manuais de “copiar e colar” de um texto que havia escrito há alguns anos, tive de colocar um asterisco à frente da obra de Bellow porque não me conseguia decidir entre três das suas obras como a minha favorita, por onde vagueava com firmeza a acima mencionada; e, assim, a que figurava no arrolamento tornava-se perfeitamente intermutável com as outras duas, sem que a tal lista corresse riscos de desmoronamento por atentado à integridade da minha curta reflexão.
Mas voltemos aos escaparates da dita livraria, verifiquei com surpresa que a Quetzal editou o Morrem Mais de Mágoa, com nova tradução, quando uma outra de responsabilidade da editora Livros do Brasil circula ainda sem rupturas no mercado, com uma excelente tradução (aliás é seu apanágio) de Fernanda Pinto Rodrigues – e não é de todo necessário entrar neste caso, e como me parece óbvio, com o critério da pobreza estética das edições antigas da colecção “Dois Mundos” nesta editora (ver imagem) –, recuperando a de 1989 do Círculo de Leitores – jovem de 21 anos. De imediato, averiguei se nas badanas ou na contracapa existia um manifesto sobre a continuidade de publicação das obras do Prémio Nobel da Literatura de 1976. Para meu contentamento, a Quetzal irá continuar a publicar Bellow, embora no meu entender tenha começado mal, e esta apreciação não se prende só com a duplicação de Morrem Mais de Mágoa no, parco em qualidade, mercado editorial luso (a potência do título é hiperbólica), mas com a tríade de obras inacreditavelmente ainda não publicadas em Portugal:
- The Adventures of Augie March (1953);
- Humboldt’s Gift (1975);
- The Dean’s December (1982).
E para terminar, mais uma pequena irritação – apenas aplacada pela exposição do primeiro parágrafo desta notável obra, logo a seguir –, desta feita, julgo que de origem tipográfica, na badana da capa da nova edição, Bellow viveu quase 100 anos, nasceu na província do Quebeque, no Canadá, em 1905…
«[O] ano passado, quando atravessava uma crise na sua vida, o meu tio Benn (B. Crader, o famoso botânico) mostrou-me um cartoon de Charles Addams. Era um cartoon trivial, bom para um sorriso, mas o Tio estava embeiçado por ele e queria discuti-lo minuciosamente. A mim não me apetecia analisar um cartoon. Ele insistiu. Mencionou-o relacionando-o com tantas coisas que me irritei e encarei até a ideia de mandar emoldurar o mamarracho e oferecer-lho no dia dos seus anos. Pendura-o na parede e livra-te dele, pensei. De vez em quando, Benn conseguia bulir-me com os nervos, daquele modo que só uma pessoa que ocupa um lugar especial na nossa vida consegue. Ele ocupava, sem sombra de dúvida, um lugar especial. Eu amava o meu tio.»Saul Bellow, Morrem Mais de Mágoa, p. 7 [Lisboa: Livros do Brasil, 1990, 353 pp.; tradução de Fernanda Pinto Rodrigues.]