Sentei-me sem expectativa que adviesse de conselho de mente avisada na cinefilia médico-legal do “suspense”. Procurei não ler e nada ver ou ouvir sobre a última obra de Scorsese, a mente mais preclara e enciclopédica de Hollywood sobre a arte, a ciência e a técnica cinematográficas da indústria centenária.
Ecrã preto, letras no velho formato cinemascópio e um navio ao largo de Boston quebrando as ondas ao som do trecho orquestral “Lontano” do compositor austro-húngaro György Ligeti, criam o ambiente hitchcockiano que, como prenúncio, sabemos que irá salpicar de estilo as cenas marcantes do filme.
A obra de base é um thriller de Dennis Lehane, e o primeiro passo consistiu em vencer a tentação de catalogação apriorística – ir ao fundo da mente para denegar a denegação –, surdindo um apelo de confrontação entre o italo-americano e o Mestre inglês, em que, um dos corolários da agitação da memória, se faz recordando e estabelecendo-nos na admiração irrestrita do primeiro sobre a plasticidade transformadora de uma má história na mais brilhante mistura cénica para o grande ecrã. E não foi só, porquanto o cientista foi buscar os distúrbios de personalidade e o seu recontro final esquizofrénico a um Samuel Fuller (argumento e realização) do início dos anos 60: O Corredor do Silêncio (Shock Corridor, 1963) e a inesquecível sequência do sonho. Mas mais uma vez são do Mestre as reminiscências que me assaltam em catadupa; e a ele recorro invocando esse portentoso e incrivelmente tortuoso A Casa Encantada (Spellbound, 1945), estigmatizado pela cena do “sonho” concebida por Salvador Dalí – Peck em DiCaprio, porque não? Ballantine e Daniels, uma curiosa contenda onomástica entre um scotch e um bourbon.
Lembrei-me também do subavaliado Fear X – O Medo (2003) escrito pelo desenfreado Hubert Selby, Jr. nos seus últimos dias de vida, em parceria com o jovem realizador dinamarquês Nicolas Winding Refn, e do seu final aberto, com a curiosidade de Brian Eno ser um dos elementos comuns com esta ilha do desassossego.
E depois emergiu o mínimo literário Harlan Coben, engenhosamente adaptado por Guillaume Canet, trasladando a trama de Nova Iorque para Paris, e o sonho ganhou aqui uma palpabilidade propulsada por um inusitadamente realista happy ending.
No fim do filme, enquanto seguia atrás de dois casais de septuagenários que, para além de teimosamente, com a sua parcimónia senil, me tentarem manter dentro da claustrofobia que desceu sobre a sala com o angustiante “This bitter Earth” plantada em “On the nature of daylight”, ensaiavam interpretar o final de Shutter Island, outras imagens corriam desenfreadamente na minha mente. Os paralelismos, sem nunca pensar em plágios, senão em arte como uma sucessão de originalidades decorrentes de repetições ao longo dos séculos, neste caso encorpada por um dos poucos fazedores de filmes que pode ser comparado a uma filmoteca viva, cujas técnicas foram aprendidas e apreendidas pelo olhar de relojoeiro no rendilhado minucioso que molda com uma marca pessoal inimitável, com a sua assinatura, uma obra de arte.
A mim bastou-me aquele início para a rendição completa, uma câmara hitchcockiana a deambular pelas escarpas de uma ilha-prisão assustadora pelo som tenebroso do trítono de “Passacalha - Allegro Moderato”, o 4.º andamento da 3.ª sinfonia de Penderecki.
Sem mais delongas ou palavras vãs: Arrepiante. Magnífico. A arte de tornar verosímil o absurdo, aqui como no Mestre, elevada ao seu expoente máximo. Martin Scorsese.
Ouvir aqui Dinah Washington (This bitter earth) e Max Richter (On the nature of daylight), uma mistura etérea de autoria de Robbie Robertson.