Foi há cerca de duas semanas que, provavelmente por via da parcimónia retentiva dos factos históricos da nossa mente – tão pressurosa a viver na contemporaneidade consumista –, fui personagem acidental de um curioso episódio de confrontação desse presente voraz e amnésico, ou melhor, pouco interessado em revivalismos, e de um passado não muito longínquo, cuja extensão do adjectivo vai um pouco para lá de uma dezena de anos da minha já madura existência. O supermercado.
Cheguei a casa de meus pais e o cenário que se postava diante dos meus olhos assemelhava-se ao de um terreiro onde se travava uma pequena, polvorenta e buliçosa batalha, em que a poeira de antanho se evidenciava pela reverberação causada pelos finos raios de sol de Inverno que atravessavam a vidraça e o cheiro a mofo desenterrado das entranhas de uma luta. O pó e o bafio atiçaram-me a costumeira reacção alérgica – o eterno acicate da histamina –, tanto física, como mental – este tipo de arrumações e o excesso de zelo que lhe é normalmente associado induzem-me a um estado de melancolia de uma despedida inevitável –, havendo crescido em mim um desejo irrefreável de retroceder uns minutos e adiar por umas horas a visita de um homem emocional, cumpridor das suas obrigações filiais.
Os meus pais, mantendo o seu rigor exclusivista em matéria livresca, como uma espécie de ordem de “não profanação” daquela espaço sagrado de tantos dias de aprazível ócio, arrumavam a sua bem recheada biblioteca, retirando os livros um por um, limpando capas e lombadas, e reparando badanas e folhas que, fora da sua função, se exibiam de forma impudica aos elementos.
Houve um ligeiro resmungo, misturado com uma espécie de prazer de ostentação doutoral, quando chegou o filho inquisidor e metediço, desarrumando as pilhas de livros prontas a regressar aos seus locais de décadas, e lendo os ex-líbris que ambos, enquanto jovens idealistas nos anos vinte das suas vidas, apunham à literatura que adquiriam e liam, bem longe da função de mero adorno que hoje em dia desempenham – a vida por vezes endurece determinados prazeres, tornando-os memórias distantes de um tempo passado, ressessos e sem brilho. A minha mãe, mais romanesca e congruente: Somerset Maugham, Irving Wallace, John Steinbeck, Máximo Gorki, e mais um bando de autores de frémito romanesco; o meu pai, mais heterogéneo no estilo literário e nos autores: Camus, Henry Miller, Hemingway, Morris West, dos Passos, Freud, Yourcenar, D. H. Lawrence, e imensos livros de História, cuja maioria versa sobre um dos seus temas bélicos preferidos, a II Guerra Mundial.
Entretanto, vislumbrei uma relíquia pela envolvência da sua composição em obra. Estava encafuado numa das pilhas, já expropriado do seu pó alpino, como as neves eternas: Os Inadaptados, do colossal dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005). Bem conservado, embora com um indisfarçável odor a velho bichado, tratava-se de uma edição da Livros do Brasil de 1961, com tradução de Sousa Victorino, cujo ex-líbris do meu pai assinalava a data de “20-V-67”.
Os Inadaptados (The Misfits, 1961), livro retirado do argumento escrito pelo próprio Miller para um filme de John Huston. O filme é um dos mais icónicos na fábrica de mitos e lendas de Hollywood, se nos atermos ao arrepiante departamento de “filmes maldição”. A história que envolveu a sua produção, há quase cinquenta anos, ainda consegue provocar calafrios aos mais supersticiosos, não só pela razia de mortandade que se abateu sobre o elenco principal nos períodos de pós-produção e de exibição, como nas constantes alterações de guião e batalhas surdas entre Miller, Huston e o produtor Frank E. Taylor, a que se juntaram os responsáveis pelos estúdios da United Artists, e para finalizar pelo desastre comercial e financeiro que o filme gerou:
- Do elenco principal, só Eli Wallach sobreviveu à devastação, talvez, e não o refiro sem malícia ao antimito louro, por Marilyn Monroe se ter incompatibilizado com o actor nova-iorquino, hoje com 94 anos, durante as filmagens, segundo se diz por esta, perante a sobriedade daquele, se sentir diminuída do seu protagonismo.
- Clark Gable morre alguns dias após o fim da rodagem do filme – nem sequer assistiu à sua estreia.
- Marilyn Monroe divorcia-se de Arthur Miller, ironicamente processo que se acelerou por desentendimentos sobre a construção da volúvel personagem Roslyn Taber encarnada por Monroe, para quem Miller escreveu propositadamente o guião para tentar minorar a imagem de superficialidade da actriz californiana, que lhe era incessantemente aposta pela imprensa dedicada à 7.ª arte; este também foi o último filme protagonizado por Monroe, já que morre, encharcada em drogas, em Agosto de 1962 antes de completar o filme dirigido por George Cukor, Something’s Got to Give, cuja produção foi interrompida e jamais finalizada, dada a recusa inamovível de Dean Martin em contracenar com outra actriz que não a loura mais famosa de Hollywood.
- Montgomery Clift foi o mais resistente, morre em sua casa durante a madrugada de 23 de Julho de 1966, vitimado, tal como Gable, por um ataque cardíaco fulminante. Segundo a sua biógrafa, Patricia Bosworth, as últimas palavras conhecidas proferidas por Monty compuseram a frase “Absolutely not!”, quando interpelado pelo seu companheiro-secretário Lorenzo James à 1 da manhã desse mesmo dia fatídico sobre se o actor gostaria de ver Os Inadaptados, precisamente na noite em que o filme de Huston fazia a sua estreia na televisão nacional.
E eis, neste momento, o livro em minha casa, pronto a ser desfrutado, sem a real possibilidade de o poder acompanhar com a edição portuguesa do filme, porventura caído no esquecimento da esmagadora maioria dos portugueses, que nem as sinistras desventuras que o envolveram, o fizeram despertar para o circuito comercial em DVD.
Folheadas as primeiras páginas, saltaram-me à vista alguns deliciosos e falsos anacronismos, como algo que sentidamente acharíamos impossível verificar-se à data de edição em 1961. Porém, as disparidades entre a maior potência mundial e o nosso cantinho retrógrado, governado pela pequenez reducionista de uma ditadura, pronta a entregar os seus filhos numa guerra sem sentido que duraria treze anos, são hoje desconcertantes para quem sempre viveu os seus anos de assunção plena da sua consciência numa democracia ocidental, que se foi desenvolvendo, para o bem e para o mal, rumo a uma economia aberta, de mercado, sem fronteiras e sem as grilhetas que outrora amarravam, sem piedade, as liberdades mais fundamentais à existência digna do ser humano.
A páginas tantas, é mesmo a 13 – o número do anátema, mas também da religiosidade acerba – pode ler-se: «Vemos, através da montra dum supermarket (3) uma mulher que segura um grande saco de géneros de mercearia com um dos braços, enquanto baixa com o outro a alavanca de uma máquina caça-moedas.»
E o (3) refere-se à 3.ª nota assestada pelo tradutor desde que se iniciou a narrativa, que reza o seguinte:
«(3) Grande estabelecimento, principalmente de produtos alimentares, em que o cliente se serve a si próprio. (N. do T.)»
Era este o país dos estouvados marçanos que, agarrados à sua bicicleta munida do cesto na retaguarda carregado de produtos alimentares, se esgueiravam a toda brida por ruas e passeios e namoravam as criadas dos senhores às portas das casas fidalgas onde entregavam os produtos encomendados à mercearia do Sr. António. Sítio lúgubre, de mil odores em que constava a folha dos fiados escrita cuidadosamente à mão e quando aberto podia ainda sentir-se o cheiro a farinha do pão acabado de amassar, aí encerrado, com zelo, no momento da escrita.
Proposta pascal para tema de redacção: O Supermercado.