Talvez seja esse o termo empregado em casa, na escuridão das palavras vãs, na educação moralizante que se dá a uma prole que se quer sã, despojada de todos os males do mundo moderno que redundou na licenciosidade.
Em minha casa ensina-se a moral cristã. E ponto final. Se houve Adão e Eva – crescei e multiplicai-vos, disse a troante voz divina, incapaz de matar a serpente do desejo, onde haverá lugar para Adão e Armando? E Eva encontrou uma Francelina de dedos hábeis? Não está escrito, são palavras ausentes que deveriam ter sido gravadas pelo fogo etéreo-criativo. Não vem n’O Livro. Procriai, independentemente da felicidade presente e futura desse acto.
Já me havia insurgido. No meu distrito, um partido – em que, sem me arrepender, já votei em três ou quatro eleições – colocou à frente de um conjunto de ilustres desconhecidos um homem ciliciado agarrado aos seus preconceitos e dogmas.
Fazer um referendo nacional sobre se os portugueses aceitam ou não “os casamentos entre pessoas do mesmo sexo” seria a mesma coisa que referendar o direito dos passantes domingueiros, de bigode à (bi)Godinho e fato de treino verde com laivos de roxo, à conquista dos sofás de um centro comercial.
Se os homossexuais são uma minoria, ainda desdenhados por uma espúria moral dita cristã – porque lendo e interpretando as palavras de Cristo, jamais nelas se encontra a reprovação da dita caridade mútua entre pessoas do mesmo sexo –, nunca, mas nunca mesmo tal referendo serviria para criar uma base jurídica que abriria a possibilidade do casamento entre duas pessoas que se amam, e que, por acaso, são ambas portadoras do mesmo par de cromossomas.
A questão do referendo é uma falácia. A (putativa) abertura de espírito evidenciada por aqueles que o defendem é uma impostura das mais ignóbeis. Uma mentira dita sem mover um músculo facial que revele o pensamento que lhe subjaz: esta questão referendada jamais triunfará para o lado dos invertidos.
Mesmo que o nosso povo revelasse, nos dias que correm, uma abertura de espírito e uma tolerância próprias dos tempos em que vivemos, no canto esconso, isolado, metálico, enferrujado da cabine de voto, votaria “não” à proliferação da bichice, da depravação moral, biblicamente destruída com Sodoma e Gomorra, do amor resultante apenas de um hedonismo doentio e incapaz de ser compreendido por quem tem a cabeça formatada por essa moral anquilosada fundada numa educação protocristã: se se querem sodomizar, sodomizem-se, mas longe da instituição casamento ancestralmente respeitada pelo moralista pequeno-burguês: talvez, o mesmo que bate na mulher, que não provê a casa de sustento, que se afunda no álcool e, mais modernamente, nas drogas ditas sociais, denega os próprios filhos, que se exime da reciprocidade afectiva que uma união exige, que se passeia no banco de trás por verdes prados com o colega de trabalho – seja de que sexo for, desde que ocultado dos olhos do mundo –, ou no motelzinho escondido por árvores frondosas cuja gerência garante confidencialidade imputando os encargos a despesas diversas com direito a dedução fiscal, até na transacção comercial do puro prazer, ou ainda nos mirmidões de que falava o Eduardo no seu belo romance Cidade Proibida, que se escondem nos baldios das nossas grandes cidades.
Porquê esta ideia absurda de referendar o direito à liberdade contratual? O casamento não é um contrato como outro qualquer? Apesar da carga religiosa que nos querem fazer incutir, o casamento civil é ou não é um contrato que, pelo amor, se anui na partilha de um património? Porquê referendar o direito à liberdade de escolha de uma minoria? Referende-se o povo turco quanto à independência do Curdistão. O povo da Arábia Saudita – habituadíssimo à democracia – sobre a introdução livre da carne porco e do álcool nos cardápios dos seus restaurantes.
Pobre gente. Pobres almas. Propositadamente ou não, é hoje lançado pela Asa um livrinho que faria bem às mentes do bando beato de políticos da falácia, porventura para libertar as pulsões há muito recalcadas. Talvez, após a sua leitura, saíssem do armário, onde previamente se despojariam de toda a hipocrisia, e agarrassem na bandeira multicor… [ver capa do livro na imagem – o tal que pelo simples vislumbre Frederico Lourenço suspirou de esperança, ao vê-lo postado numa biblioteca de um rapaz por quem sofria num silêncio de repressão social dos comportamentos.]
Seus mirmidões dos baldios!