sexta-feira, 4 de abril de 2008

2,... [com pedido de divulgação]

IV

Um dia, a mãe dele fez um bolo de chocolate e pô-lo a arrefecer na mesa da cozinha. Tinha pelo menos vinte centímetros de espessura, e ele sabia que deveria estar delicioso. Naqueles dias ele tinha desenhado imenso, colheres e garfos, ou maços de cigarros ou, ocasionalmente, o vaso chinês da sua mãe com o dragão pintado, tudo o que possuísse uma forma interessante. Vai daí ele colocou o bolo numa cadeira próxima da mesa e desenhou-o por uns momentos, levantou-se e, por alguma razão, foi lá fora e distraiu-se com as suas tulipas, que havia plantado no Outono anterior, que já começavam a querer mostrar as suas pontas. Depois decidiu procurar uma bola de baseball praticamente nova, que havia perdido no Verão passado e de que tinha quase a certeza só poderia estar na cave dentro de uma caixa de cartão. Ele nunca havia conseguido chegar ao fundo da caixa, porque acabava sempre por se distrair com algo que ele havia esquecido e que, outrora, aí tinha depositado. Ele entrou na cave pela porta exterior, que fica debaixo do alpendre das traseiras, quando reparou que a pereira que havia plantado há dois anos, tinha uma espécie de rebento num dos seus ramos mais finos. Aquilo surpreendeu-o e fê-lo sentir triunfante e orgulhoso. Ele tinha pagado trinta e cinco cêntimos pela árvore na Court Street e mais trinta cêntimos por uma macieira, que ele plantou a dois metros de distância, na esperança de poder vir a instalar uma longa cama de rede entre elas. Mas, ainda eram muito jovens e finas, talvez o conseguisse no próximo ano. Ele adorava observar as duas árvores, porque tinha sido ele plantá-las, e cria que elas, de alguma forma, sabiam que ele as observava, e que elas lhe retribuíam o olhar. O quintal terminava numa cerca de madeira de três metros de altura que rodeava Erasmus Field, onde as equipas semiprofissionais e amadoras jogavam nos fins-de-semana. Equipas como a House of David e os Black Yankees e aquela com Satchel Paige, que era conhecido por ser um dos melhores lançadores do país, só que era Preto e, obviamente, não podia jogar nas grandes ligas. Os jogadores da House of David tinham todos longas barbas – ele nunca havia entendido o porquê, mas talvez eles fossem judeus ortodoxos, apesar de não o aparentarem. Uma tacada extremamente longa sobre o lado direito do campo podia fazer com que uma bola ficasse no quintal, e era essa mesma bola que lhe tinha ocorrido procurar, agora que chegara a Primavera e o tempo estava a aquecer. Na cave, ele encontrou a caixa e ficou inesperadamente admirado com os seus patins por estarem tão afiados, e recordou-se que em tempos tivera um torno para prender os patins par a par para que com uma pedra pudesse amolar as suas lâminas. Ele retirou uma luva de baseball rasgada, uma luva de guarda-redes de hóquei cujo par ele sabia que havia perdido, alguns tocos de lápis e uma caixa de lápis de cor, e um homenzinho de madeira cujos braços se esticavam para cima para baixo puxando-se um fio. De seguida ouviu o cachorrinho a latir por sobre a sua cabeça, mas não era o seu ladrar habitual – era contínuo, agudo e alto. Ele correu escadas acima e viu a sua mãe a descer do segundo piso para a sala de estar, o fino vestido voava para trás das costas, tinha uma expressão de medo na sua cara. Ele podia ouvir o arranhar das unhas do cão no linóleo, e correu para a cozinha. O cachorrinho corria em círculos emitindo uma espécie de gritinhos e pôde ver num relance que a barriga do cão estava inchada. O bolo estava no chão, e maioria dele tinha desaparecido. “O meu bolo!” gritou a mãe, e pegou no prato com os restos, levantou-o e manteve-o assim, para o pôr a salvo do cão, apesar de praticamente nada haver sobrado. O rapaz tentou apanhar o Rover, mas ele esgueirou-se para a sala de estar. A mãe, por trás dele, gritava “O tapete!” O Rover continuou a correr, agora em círculos cada vês mais largos porque tinha mais espaço, ao mesmo tempo que se formava espuma no seu focinho. “Chama a Polícia!” gritou a mãe. De repente, caiu e não saiu do sítio, a arfar e soltar pequenos guinchos por cada fôlego. Como eles nunca tinham tido um cão e nada sabiam de veterinários, ele procurou na lista telefónica e encontrou a A.S.P.C.A.* e telefonou-lhes. Agora tinha medo em tocar no Rover, porque o cão deu-lhe uma pequena mordidela quando ele aproximou a mão e ainda por cima tinha espuma a sair da boca. Quando a carrinha chegou à frente de sua casa, o rapaz foi lá fora e viu um tipo novo a retirar uma gaiola pequena da mala. Ele disse-lhe que o cão tinha, praticamente, comido o bolo inteiro, mas o homem não mostrou interesse algum e entrou em casa e deteve-se, por um momento, a olhar para o Rover, que agora emitia uns pequenos latidos mas que se mantinha deitado no mesmo lugar. O homem atirou-lhe uma rede e quando o meteu dentro da gaiola, o cachorrinho tentou levantar-se e correr. “O que é que acha que ele tem?” perguntou a mãe do rapaz. A boca dela ganhou uma expressão de horror, que o próprio rapaz sentiu nele mesmo. “O problema dele é que comeu um bolo,” disse o homem. Depois levou a gaiola para fora e, através da porta traseira da carrinha, atirou-a para o fundo escuro. “O que é que vai fazer com ele?” perguntou o rapaz. “Tu quere-lo?” redarguiu o homem. A mãe dele, que estava no pequeno terraço à entrada de casa, escutou-os. “Nós não o podemos ter aqui,” advertiu ela, com receio e convicção na sua voz e aproximou-se do jovem. “Nós não sabemos tratar de um cão. Talvez alguém que o saiba queira ficar com ele”. O jovem assentiu sem interesse particular, sentou-se ao volante e partiu.
(continua)


*American Society for the Prevention of Cruelty to Animals, com os mesmos fins e missão da nossa Sociedade Protectora dos Animais. (N. do T.)
(nota: a divisão do conto em capítulos é da minha inteira responsabilidade – Cap. IV: 4575 caracteres)


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