A frase em epígrafe estava inscrita numa tatuagem de um dos braços de Arbatchak, um dos “brutos”, um urca, do campo de trabalhos forçados, ou Gulag – acrónimo para a administração dos campos de trabalho ou de reeducação – estalinista, em Norlag na Sibéria, a Rússia setentrional, para além do Círculo Polar Árctico.
«O meu irmão mais novo chegou ao campo em 1948 (eu já lá estava), no auge da guerra entre os brutos e as bestas…» (pág. 13)
Estas são as primeiras palavras do 1.º capítulo do romance epistolar A Casa dos Encontros do escritor britânico Martin Amis (n. 1949) e «esta é uma história de amor. Amor Russo, é certo. Mas amor.» (pág. 13)
O narrador, um próspero imigrante russo de 84 anos a viver nos Estados Unidos, de quem nunca saberemos o nome, escreve uma longa carta à filha, Venus – filha de Fénix, a renascida... –, sobre o seu passado bárbaro na União Soviética, enquanto navega pelos mares gelados do Árctico rumo ao espaço físico que as suas rememorações jamais abandonaram, e que o próprio sabe que o acompanharão até aos dias do fim.
O narrador avisa a filha para a brutalidade da história, que apenas os seus olhos ocidentais confirmarão como tal, mas que para um russo, mesmo que afastado do país há 20 anos, faz parte da realidade e do quotidiano daquele país, de uma verdade nua e crua que, há centenas de anos, e de forma inelutável, parece haver sido inscrita e posteriormente confirmada no código genético da sua História. Uma história que se conta através das atrocidades perpetradas pelos seus diferentes protagonistas, «não há Deus russo que chore e cante»: desde o século X até aos czares, a revolução de 1917 e as atrocidades do País dos sovietes, e o novo capitalismo, de rosto russo, estatizado, onde o Estado deixou o monopólio e passou a principal accionista, «o oligarca principal», onde não faltam sequer as tragédias do teatro Dubrovka em Moscovo e a chacina de Beslan… Porém, esta é uma história de amor:
O narrador, um próspero imigrante russo de 84 anos a viver nos Estados Unidos, de quem nunca saberemos o nome, escreve uma longa carta à filha, Venus – filha de Fénix, a renascida... –, sobre o seu passado bárbaro na União Soviética, enquanto navega pelos mares gelados do Árctico rumo ao espaço físico que as suas rememorações jamais abandonaram, e que o próprio sabe que o acompanharão até aos dias do fim.
O narrador avisa a filha para a brutalidade da história, que apenas os seus olhos ocidentais confirmarão como tal, mas que para um russo, mesmo que afastado do país há 20 anos, faz parte da realidade e do quotidiano daquele país, de uma verdade nua e crua que, há centenas de anos, e de forma inelutável, parece haver sido inscrita e posteriormente confirmada no código genético da sua História. Uma história que se conta através das atrocidades perpetradas pelos seus diferentes protagonistas, «não há Deus russo que chore e cante»: desde o século X até aos czares, a revolução de 1917 e as atrocidades do País dos sovietes, e o novo capitalismo, de rosto russo, estatizado, onde o Estado deixou o monopólio e passou a principal accionista, «o oligarca principal», onde não faltam sequer as tragédias do teatro Dubrovka em Moscovo e a chacina de Beslan… Porém, esta é uma história de amor:
«A história de amor é de forma triangular e o triângulo não é equilátero. Por vezes, gosto de pensar que é um triângulo isósceles: forma sem dúvida um vértice muito aguçado. Mas, sejamos honestos, admitamos que o triângulo se mantém brutalmente escaleno. […] Escaleno, do grego skalenos: desigual.» (pág. 14)
Lev, o meio-irmão do narrador, irmãos uterinos, chega em Fevereiro de 1948 a Norlag, um campo de trabalhos forçados, fortemente hierarquizado, onde predominam a selvajaria e a iniquidade, um campo dividido em porcos – os funcionários e os guardas –, urcas – bestas e brutos –, cobras – os informadores, os bufos –, fascistas – todos os que houvessem por uma vez manifestado uma ideia política não comunista –, sanguessugas – os burlões e trapaceiros burgueses –, gafanhotos – os urcas sem corpo nem lei – e papa-merdas – os de mais baixo estrato, os cansados da luta interna, apenas disputavam os restos de comida.
No centro da narrativa está o amor por “a Américas”, Zoya, a judia, cujo corpo fazia lembrar os rutilantes contornos geográficos das duas Américas, cuja «cintura delgada» era o «Panamá» – que Nabokov uma vez comparou a dois artistas de circo que se seguravam em plena acção no trapézio –, e que motivou a prisão, a condenação por 10 anos e a consequente deportação de Lev quando numa fila em Moscovo, em conversa mantida com a irmã de ambos, Kitty, falava bem da Américas, havendo quem o acusasse de se referir, em termos laudatórios, ao arqui-inimigo da pátria, os Estados Unidos. Contudo, era apenas a encantadora e esguia Zoya que Lev teve a ousadia de arrebatar, enquanto o narrador, nos primeiros anos do pós-guerra, expiava os seus pecados sob o gelo do Árctico, relembrando os tempos em que esta vivia numa mansarda cónica de Moscovo, com umas escadas em ferro exteriores em caracol e ele, solícito, a agarrava pelo braço para que não escorregasse no gelo que se formara – sim, «porque em pequena nunca tinha aprendido a gatinhar…» –, para posteriormente assistir ao corrupio de homens que daquela torre entravam e saíam, e ele versejando na sombra, do outro lado da rua, numa imobilidade perturbadora, prostrado horas a fio no gelo cortante da capital russa à espera de um sinal, o fechar da persiana – a ironia, o «herói violador» apaixonado, foi encarcerado por essa paixão, pela «destruidora de poetas» que, mais tarde, encarcerou o irmão.
Tudo isto ocorre durante o reinado de terror de José Vissarionovitch, a quem Amis prefere ocultar o nome principal, onde os cidadãos são apenas números, são activos do Estado, meros objectos ao seu dispor para, por todos os meios, concretizar e assegurar a imposição e o sucesso da ideologia comunista aos olhos do corrompido mundo ocidental.
Era a época das purgas, dos delatores, da polícia política, dos campos de concentração, da apologia do terror contra a dissidência, das fortes campanhas de propaganda para o exterior de um vida e de uma sociedade sãs e sapientes através das artes e do desporto, da perversa perseguição aos judeus pós II Guerra Mundial – o início do pogrom –, da proibição de todo e qualquer tipo de actividade religiosa e de qualquer tipo de manifestação. Porém, no meio desta barbárie silenciosa estava Zoya que, para surpresa do narrador, havia casado secretamente com Lev na véspera de este ser detido.
Os anos vão passando no Gulag. José Vissarionovitch morre em 1953, mas o terror no campo não abranda. É preciso matar para sobreviver, e o narrador vê-se confrontado com a atitude de pacifista do irmão e a necessidade de o defender dos porcos e das cobras delatoras, outrora gente sem rosto do seu lado da contenda nos terríveis campos de batalha da II Grande Guerra e da chegada triunfal a Berlim em 1945, que como membro do Exército Vermelho participou no estupro colectivo de milhões de mulheres alemãs, enlouquecidas, atordoadas e martirizadas por seis anos do mais terrível dos conflitos.
Ao longo da narrativa paira um mistério materializado numa data, 31 de Julho de 1956, e num local, a casa dos encontros no Norlag.
No centro da narrativa está o amor por “a Américas”, Zoya, a judia, cujo corpo fazia lembrar os rutilantes contornos geográficos das duas Américas, cuja «cintura delgada» era o «Panamá» – que Nabokov uma vez comparou a dois artistas de circo que se seguravam em plena acção no trapézio –, e que motivou a prisão, a condenação por 10 anos e a consequente deportação de Lev quando numa fila em Moscovo, em conversa mantida com a irmã de ambos, Kitty, falava bem da Américas, havendo quem o acusasse de se referir, em termos laudatórios, ao arqui-inimigo da pátria, os Estados Unidos. Contudo, era apenas a encantadora e esguia Zoya que Lev teve a ousadia de arrebatar, enquanto o narrador, nos primeiros anos do pós-guerra, expiava os seus pecados sob o gelo do Árctico, relembrando os tempos em que esta vivia numa mansarda cónica de Moscovo, com umas escadas em ferro exteriores em caracol e ele, solícito, a agarrava pelo braço para que não escorregasse no gelo que se formara – sim, «porque em pequena nunca tinha aprendido a gatinhar…» –, para posteriormente assistir ao corrupio de homens que daquela torre entravam e saíam, e ele versejando na sombra, do outro lado da rua, numa imobilidade perturbadora, prostrado horas a fio no gelo cortante da capital russa à espera de um sinal, o fechar da persiana – a ironia, o «herói violador» apaixonado, foi encarcerado por essa paixão, pela «destruidora de poetas» que, mais tarde, encarcerou o irmão.
Tudo isto ocorre durante o reinado de terror de José Vissarionovitch, a quem Amis prefere ocultar o nome principal, onde os cidadãos são apenas números, são activos do Estado, meros objectos ao seu dispor para, por todos os meios, concretizar e assegurar a imposição e o sucesso da ideologia comunista aos olhos do corrompido mundo ocidental.
Era a época das purgas, dos delatores, da polícia política, dos campos de concentração, da apologia do terror contra a dissidência, das fortes campanhas de propaganda para o exterior de um vida e de uma sociedade sãs e sapientes através das artes e do desporto, da perversa perseguição aos judeus pós II Guerra Mundial – o início do pogrom –, da proibição de todo e qualquer tipo de actividade religiosa e de qualquer tipo de manifestação. Porém, no meio desta barbárie silenciosa estava Zoya que, para surpresa do narrador, havia casado secretamente com Lev na véspera de este ser detido.
Os anos vão passando no Gulag. José Vissarionovitch morre em 1953, mas o terror no campo não abranda. É preciso matar para sobreviver, e o narrador vê-se confrontado com a atitude de pacifista do irmão e a necessidade de o defender dos porcos e das cobras delatoras, outrora gente sem rosto do seu lado da contenda nos terríveis campos de batalha da II Grande Guerra e da chegada triunfal a Berlim em 1945, que como membro do Exército Vermelho participou no estupro colectivo de milhões de mulheres alemãs, enlouquecidas, atordoadas e martirizadas por seis anos do mais terrível dos conflitos.
Ao longo da narrativa paira um mistério materializado numa data, 31 de Julho de 1956, e num local, a casa dos encontros no Norlag.
Após 9 anos de reclusão do marido, Zoya desloca-se ao campo de trabalhos para se encontrar com este, mediante uma política de abertura do regime que concedia o privilégio aos condenados casados de, numa noite, desfrutarem da companhia dos cônjuges. O narrador assiste aos preparativos do irmão e à chegada da sua cunhada, objecto da sua obsessão. A partir dessa data, aquela noite que reuniu Lev e Zoya na casa dos encontros, algo muda… Seguem-se os anos de liberdade, metaforizada na inevitável cruz russa, condicionada a uma pátria sufocante e omnipresente, que superintende cada gesto, atitude ou acção de cada cidadão.
Inspiriado no soberbo tratado de Anne Applebaum (n. 1964), Gulag: Uma História (vencedor do Pulitzer em 2004 na categoria de Não-Ficção) e na obra-prima Arquipélago de Gulag do Prémio Nobel da Literatura em 1970 Aleksandr Solzhenitsyn (n. 1918), A Casa dos Encontros é um romance sobre a turbulenta forma de amar (n)a Rússia, sobre a brutalidade quotidiana que se manteve ao longo dos tempos, apenas entendida aos olhos dos que lá vivem, formando a sua cruz, a constante subida da curva da morte acompanhada pela descida da curva que representa o número de nascimentos, que se intersectaram algures, por volta de 1992, a cruz russa: parece surgir da «tentativa de uma criança de três anos de desenhar a metade inferior de uma baleia ou tubarão: o torso largo estreita-se até desaparecer e depois tende para a barbatana caudal.» (pág. 194).
A Rússia «não é como Zoya. A Rússia aprendeu a gatinhar, e ela aprendeu a correr. O que não aprendeu foi a caminhar.» (pág. 204).
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Martin Amis, A Casa dos Encontros. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Abril de 2007, 229 pp. (tradução de Telma Costa; obra original: The House of Meetings, 2006).
Inspiriado no soberbo tratado de Anne Applebaum (n. 1964), Gulag: Uma História (vencedor do Pulitzer em 2004 na categoria de Não-Ficção) e na obra-prima Arquipélago de Gulag do Prémio Nobel da Literatura em 1970 Aleksandr Solzhenitsyn (n. 1918), A Casa dos Encontros é um romance sobre a turbulenta forma de amar (n)a Rússia, sobre a brutalidade quotidiana que se manteve ao longo dos tempos, apenas entendida aos olhos dos que lá vivem, formando a sua cruz, a constante subida da curva da morte acompanhada pela descida da curva que representa o número de nascimentos, que se intersectaram algures, por volta de 1992, a cruz russa: parece surgir da «tentativa de uma criança de três anos de desenhar a metade inferior de uma baleia ou tubarão: o torso largo estreita-se até desaparecer e depois tende para a barbatana caudal.» (pág. 194).
A Rússia «não é como Zoya. A Rússia aprendeu a gatinhar, e ela aprendeu a correr. O que não aprendeu foi a caminhar.» (pág. 204).
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Martin Amis, A Casa dos Encontros. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Abril de 2007, 229 pp. (tradução de Telma Costa; obra original: The House of Meetings, 2006).
6 comentários:
Excelente
Desculpe - não costumo dizer mal da decoração da casa de quem me convida para jantar -, o senhor não faz crítica (na verdade, nem sei se prentende fazer), faz resumos.
Deixo-lhe, caso queira fazer crítica, três sugestões: "Coligação de Avulsos" de Abel Barros Baptista; "Artigos Portugueses" de Miguel Tamen; e, se estiver mesmo decidido, compre a obra completa de Samuel Johnson.
Cumprimentos,
M.C. Ayres Matias
Obrigado, meu caro Pedro. E já agora, parabéns pela taça.
M. C. Ayres Matias,
Não faço nem quero fazer. Se estivesse atento à génese deste e do anterior blogue e aos escritos que por lá e por aqui postei e vou postando – coisa que, de todo, não tenho sequer a ousadia de lhe pedir – reparará que sou um mero opinador sobre livros de ficção de autores que me agradam, sem formação académica sobre qualquer vertente da filologia, apesar de ser um académico com obra publicada numa área completamente distinta, as ciências empresariais.
Apenas deambulo como amador pelos livros e pretendo dar a conhecer alguns dos encantamentos que deles retirei. Se são resumos, se são críticas, pouco me interessa, não lhes conheço os formalismos, os requisitos. E se estiver atento este, de todos os textos que aqui publiquei sobre a minha experiência de leitura de um livro em particular, foi, decerto, o que mais se centrou sobre a narrativa em detrimento do estilo e do aspecto formal da obra, por uma razão: apesar de já haver lido 2 ou 3 obras de Amis, conheço-o mal. Óbice que espero que não dure muito, até em virtude das aquisições que já fiz do autor e que repousam na estante, a ganhar pó.
E ao fazer cair a minha máscara, lá se foi o contrato de reputado crítico literário com uma revista do coração. Tinha-os enganado tão bem...
Apareça.
Cumprimentos,
André
PS – Quanto aos títulos sugeridos, agradeço-lhe a simpatia, contudo ainda tenho uma biblioteca, com cerca de 300 obras de autores que admiro, por desbastar, quando for a Abrunheira pedi-los-ei emprestado. Obrigado uma vez mais.
Desculpe incomodar mais uma vez (sou um conviva chato): é bom que pense assim, uma vez que parece-me que faltam leitores (no sentido inocente do termo), e, como diz Borges, parece que todo o leitor é actualmente um crítico em potência, o que me parece deletério.
Aquilo que escrevi é apenas um arrogante exercício de estilo (é-me difícil não ser arrogante); o tom, aliás, é de um filósofo português: Aires Matias - nome que utilizei, invertendo a ordem, numa tentativa pouco feliz de ironia.
Cumprimentos,
M.C. de Assis
Errata:
O nome do filósofo é Matias Aires, pois, se assim não fosse, não haveria a referida inversão irónica.
Cumprimentos,
M.C. de Assis
Sim, é verdade, essa escapou-me.
E de facto soberba e vaidade por aqui não abundam... mas houve quem dissesse que a humildade era o pior dos orgulhos...
Quanto aos livros, e como diz o povo, esse abrigo da sapiência da vida, deletério é roubar... ou era feio!
Cumprimentos,
André
Enviar um comentário