«Talvez se esconda em mim um homem muito, muito vulgar. Ou talvez tenha sangue azul. Não sei. Mas uma coisa sei com certeza: serei no futuro um zero à esquerda, um zero muito redondo e encantador.»
Robert Walser, Jakob von Gunten (Relógio D’Água, 2005, pág. 10).
«Que eu seja o mais inteligente de todos não é talvez motivo para grande satisfação. De que servem pensamentos e inspirações quando não sabemos que fim lhes dar, como é o meu caso? Pois bem. Não, não, quero tentar ver claramente, mas não me agrada a altivez, não quero nunca, nunca sentir-me superior aos que me rodeiam.»
Robert Walser, Jakob von Gunten (Relógio D’Água, 2005, pág. 26).
Desses tempos apenas sobreviveram as conversas que manteve com o seu amigo Carl Seelig nos dias em que este o visitava no sanatório e alguns manuscritos, a que Walser chamou de microgramas, redigidos a lápis – a perecibilidade e a transitoriedade do grafite –, e que, ainda hoje, são objecto de investigação.
De Vila-Matas já conhecíamos o seu fascínio pelos “escritores do não” desde a publicação do seu famoso romance-ensaio Bartleby & Companhia, dando destaque a figuras como Walser, Hölderlin, Salinger ou Pynchon. Desta feita, Vila-Matas aprofunda o tema, trabalha a componente romanesca dos escritores do não e estabelece uma narrativa na primeira pessoa: Andrés, ou Doutor Pasavento, ou Doutor Ingravallo, ou Doutor Pynchon (& Pinchon).
Esta é a história de Andrés, escritor catalão, que a partir de um sonho sobre um estranho desaparecimento da torre do castelo de Montaigne – considerado o pai do ensaio literário –, protagonizado por um imaginário Doutor Pasavento, fisionomicamente parecido com o seu amigo e escritor basco Bernardo Atxaga, parte em busca da verdade, isto é, de uma identidade que parece haver-se perdido num mundo de fama e de êxitos com realidades e linguagens distintas.
Sevilha será o ponto de partida. O sonho envolve Atxaga e a sua reclusão de quatro anos para escrever o romance El hijo del acordeonista (obra de 2004, publicada originalmente em basco em 2003), através do qual o autor basco evoca, em definitivo, o desaparecimento da sua mítica terra imaginária Obaba.
Decorridas duas semanas Andrés é convidado para intervir numa conferência que se irá realizar no Mosteiro da Cartuxa em Sevilha, subordinada ao tema “a fronteira entre a realidade e a ficção” onde estará presente Atxaga. Andrés, perante a gritante vulgaridade do tema, ironiza, dizendo que irá vestido de mordomo.
O sonho materializou-se numa realidade concreta, palpável e assustadora, facto que Andrés assume, com um grau crescente de preocupação, como o momento decisivo, a oportunidade para intentar a, há muito esperada, viragem radical na sua vida. Enquanto discorre sobre o assunto a dissertar na dita conferência, Andrés vê em Atxaga a sua redenção. Então, decidiu que se este último não se dignasse a comparecer ao encontro literário – hipótese que o narrador considerou de ocorrência muito provável –, iria apresentar um ensaio sobre o desaparecimento, recordando as palavras de Maurice Blanchot quando lhe perguntaram para onde caminhava a literatura: «Dirige-se para si mesma, para a sua essência, que é o desaparecimento» (pág. 18).
As páginas que se seguem falam da luta interior do escritor com a sua consciência, da busca do seu eu belo e infeliz, da difícil jornada que necessariamente se terá de iniciar para fugir à solidão do reconhecimento, da fama e da penosa tarefa de gestão das expectativas dos outros perante o autor e a sua obra, para finalmente se chegar à solidão purificadora do anonimato, a bela infelicidade, a escolha de Walser, o acto de nobreza quando este se apercebeu de que ouvia vozes e lhe foi diagnosticada esquizofrenia.
É nesta encruzilhada que se encontra o Doutor Pasavento, confrontado com a desmultiplicação de personalidades ou até com o tema do doppelgänger literário, dos opostos que parecem digladiar-se sobre a ténue linha que separa o abismo – a morte, o desaparecimento – da realidade, que nesta obra assenta, de forma mais visível, na ânsia do autor em saber como o mundo literário vem tratando o seu desaparecimento e, simultaneamente, no desejo irreprimível de cair definitivamente no esquecimento.
Eis como se define Pasavento num bilhete deixado à sua editora francesa no Hotel Suède, situado na inquietante, e crucial para a trama, rue Vaneau em Paris:
«É possível que ninguém, a partir de hoje mesmo, volte a ter notícias minhas. Que ninguém julgue que tenha sido abduzido por alguma alimária de um planeta longínquo. Sou o meu próprio sequestrador. As fadigas, os grosseiros esforços necessários para alcançar honras e famas neste mundo, não foram feitos para mim. Quero esconder-me de tudo e de todos, não ter de aparecer mais em público, não ter de viver no meio das desesperantes intrigas do mundo literário. Quero levar a vida de um Salinger, por exemplo, ou a de um Thomas Pynchon. Ou a de um Miquel Bauçà […]
«Continuarei a escrever, mas, ao contrário de Salinger, Pynchon e Bauçà, não o farei para publicar, porque também vou deixar de publicar. Procurarei voltar a ser aquele jovem que escrevia sem sequer pensar em publicar e que todos deixavam em paz […] E aos que se cruzarem no meu caminho dir-lhes-ei que procuro a verdade. Di-lo-ei como que ausentando-me, como quem se ausenta para saudar a beleza.» (pp. 282-283).
O último trabalho de Enrique Vila-Matas, sem ser um excelente romance, é certamente virtuoso e, acima de tudo, uma obra de difícil concepção; porém não é, ao contrário do que se diz pelo mundo da crítica, o melhor que o literato catalão escreveu até aos dias de hoje. Reconhecidamente, a obra dispõe de momentos de puro brilhantismo e de mestria no domínio da técnica literária – como é apanágio de Vila-Matas –, contudo existem outros de um entediante e exasperante solilóquio, perdendo-se o fio condutor no manancial de citações que se confundem com as ideias do próprio autor… ou melhor, do Doutor Pasavento – ou será Pynchon? –, apesar de considerar que parte dessa revelada fragilidade, a de estabelecer uma teoria com um recurso excessivo a fontes secundárias, é puramente intencional, cumprindo, assim, um dos objectivos principais ao conceder o tom ensaístico pretendido para a obra.
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Janeiro de 2007, 405 pp. (tradução de Jorge Fallorca; obra original: Doctor Pasavento, 2005).
E a terminar, para de uma mancheia de frases se poder construir uma exegese à laia de posfácio moralista:
«os êxitos têm apenas por companhia inseperável a confusão e um punhado de ideias baratas sobre o mundo. Notamos de imediato aqueles que têm êxito e gozam a consideração alheia, ficam gordos de uma autocomplacência contente, e a força da vaidade infla-os como balões e quase deixamos de os reconhecer. Deus proteja um bom homem da consideração de terceiros.»
Robert Walser, Jakob von Gunten [esse pequeno sábio] (Relógio D’Água, 2005, pp. 81-82).
2 comentários:
Na verdade este Doutor Passavento arrasta-se penosamente para cumprir a s suas quatrocentos e tal páginas e torna-se apartir de certo momento puro jogo gratuito ou inflacionário. O melhor Villa-Matas está nos livros mais concisos tipo Bartleby ou Literatura Portátil e em Mal de Montano.
É exactamente essa a minha opinião.
Enviar um comentário