sexta-feira, 22 de setembro de 2006

De braço bem torcido


Apelei ao mais profundo de mim, à angústia existencial como corolário do fervilhar das minhas pulsões antinómicas, e tentei recorrer a um processo capaz e amplamente pessoal de descontaminação psíquica que a imagem, os actos e os pensamentos daquele que, “com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, de forma persistente, nos possibilita uma vez mais alcançar uma realidade ilusória”.
O esforço proveniente do tal forte desejo de abstracção e de dissociação dos escritos da figura execrável foi, na realidade, bem empregue – o uso consagrou esta forma “ser + particípio passado irregular” o que me aflige, mas, uma vez mais, deixo que me torçam o braço.
A abertura No dia seguinte ninguém morreu. foi o instrumento catalisador da acção que eu interiorizei de forma resoluta que, mais cedo ou mais tarde, se iria suceder. Isto é, apesar de há muito haver concluído pela inevitabilidade da ocorrência, foi, curiosamente, a frase inicial do romance que me despertou para a urgência da sua leitura. Em abono da verdade, o nome do prosista não se constituiu como um elemento neutro ou secundário no processo de selecção. Todavia ao atribuir-se um sinal a cada um dos atributos cujo somatório poderia determinar a resposta dicotómica “ler/não ler”, o atributo “autor” apresentar-se-ia com um sinal negativo, uma vez que o meu juízo apriorístico havia sentenciado a sua proscrição das minhas sessões literárias.

Li. Valeu a pena. Lê-lo-ei mais. Obras que se seguem: Todos os nomes e Ensaio sobre a cegueira (constam já da minha biblioteca).

Apesar de me haver deparado com aborrecidas e inelutáveis intermitências no meu estado de concentração de leitura pelas reminiscências do carácter e da imagem percebida do autor da prosa, As Intermitências da Morte é uma excelente obra. Lê-se bem e de seguida – como se costuma dizer: de um só fôlego.
A morte – assim grafada, com minúscula, porque a verdadeira, com maiúscula, surgirá nos dias do fim – a única certeza desta vida, converte-se num ser com caprichos e transforma o país num conjunto de imortais, embora subsistam os acidentes, a doença e o natural processo de envelhecimento, deixou de matar num final de ano: “Ano Novo, Vida Nova”.
É uma excelente narrativa, constituída por duas partes distintas: a fria descrição das implicações da ausência da morte pelos prismas demográfico, político, económico e social, por um lado; a efabulação do sentimento, do calor, das emoções e da sonância etérea da beleza humana que enfrentam a extrínseca transitoriedade da vida, por outro.
Se na primeira parte do romance podemos entrever as convicções político-sociais de Saramago materializadas no tom de sátira à sociedade actual do denominado mundo ocidental, na segunda o autor/narrador parece ausentar-se, deixando o texto fluir pela esteira do arrebatamento ímpar provocado pelo amor, cuja entrega, quando este se assume na sua essência mais pura, é admiravelmente incondicional, mais forte que a própria morte.

Soberbo!

3 comentários:

Anónimo disse...

Odeio ter razão. Bom, na verdade, adoro!

Anónimo disse...

É verdade!
A seguir será o que me ofereceste.
Beijinhos

Anónimo disse...

Comecei a ler, mas não acabei.
Passou-se o mesmo com "Ensaio sobre a cegueira" e "A Caverna".
Muito diferente foi a minha relação com as narrativas "Jangada de Pedra", "Levantado do Chão", "O ano da morte de Ricardo Reis", "O Evangelho segundo Jesus Cristo" ou "Memorial do Convento". Essas foram lidas e relidas, por inteiro, com renovado prazer e o mesmo sentido de descoberta.
Mas devo dizer que ainda não desisti de acabar de ler as outras.