Uma derivação é, em português moderno – coloquialmente usado até à exasperação –, a passagem da causa ao efeito sempre que se tenta explicar um comportamento nefasto perversamente atribuído a uma origem invencível, elevada à condição de dogma. Por outras palavras, derivação é um eufemismo de desresponsabilização que desmonta qualquer tentativa de outrem na atribuição da culpa, afastando-se liminarmente a explanação da primitiva. É a tal visão monocular: precisas mudar de vida.
Finalmente, retornei a este mundo de derivação. Julguei-me definitivamente regressado à Terra, provindo do Tlön borgiano (de borges), onde o sonho, concretizado na expectativa de um futuro auspicioso, predomina sobre a realidade, o ideal sobre o verdadeiro; todavia fiquei agora com a sensação de a ele haver voltado: a recidiva da descrença.
Após a tal materialização das minhas esperanças, que decerto contribuiu para a agudização da ameaça da sobrepopulação mundial, vejo que, como dizia o outro, a cada dia que passa a certeza da minha lucidez se vai desvanecendo. A incredulidade agiganta-se à medida que vou percebendo que aquilo que vejo poderá não ser mais do que uma elucubração da minha mente sem o sustentáculo da realidade. O instantâneo sobrepõe-se ao passado, que a existir nada mais é do que uma pura ilusão.
Ontem vi e ouvi, com a atenção que a família me permitiu, o primeiro debate sobre a despenalização da IVG. Fiquei a perceber que o que uns defendem como direito inalienável à vida se poderá revestir na perpetuação da miséria, numa interrupção involuntária da condição humana: a destruição (ou desarranjo) de uma vontade instintiva de sobrevivência.
Não há saúde física sem sanidade psicológica. A falta desta última, agravada pela consumação do acto que esteve na sua origem – na medida em que uma lei imoral assim o impôs –, agrava as dificuldades de subsistência do próprio ser, traz infelicidade, que se desmultiplica, como uma epidemia, pela sociedade na qual se está inexoravelmente inserido.
Caberá ao Estado a imposição de limites razoáveis para a nossa felicidade? Ou a busca da felicidade, a receita, a solução, a essência da nossa existência, não se trata de um caminho eminentemente pessoal que se socorre dos instrumentos que uma determinada sociedade lhe pôs à disposição?
Depois há o argumento do princípio e do fim da nossa liberdade individual. Mas quem senão a própria mulher que decidiu abortar sofrerá o dano maior? A sociedade? Um feto com dez semanas de vida que mais não é do que uma amálgama celular sem vontade própria, dependente da saúde e do corpo da mãe? É, na realidade, um ser vivo que futuramente se transformará num ser humano plenipotenciário na estrita medida dos seus direitos e, por muito que isso possa custar a admitir, não é nada mais para além dessa condição.
Infelizmente, à laia de Pacheco Pereira, é essa a questão central. Perante inevitabilidade do dano opta-se pelo menor, e o menor desses danos é, com certeza, aquele que permite readquirir de forma mais rápida a felicidade que se perdeu. Esse recobro (espiritual) torna-se objectivamente mais difícil perante a disseminação da miséria por mais indivíduos excluindo a própria mulher.
Finalmente, retornei a este mundo de derivação. Julguei-me definitivamente regressado à Terra, provindo do Tlön borgiano (de borges), onde o sonho, concretizado na expectativa de um futuro auspicioso, predomina sobre a realidade, o ideal sobre o verdadeiro; todavia fiquei agora com a sensação de a ele haver voltado: a recidiva da descrença.
Após a tal materialização das minhas esperanças, que decerto contribuiu para a agudização da ameaça da sobrepopulação mundial, vejo que, como dizia o outro, a cada dia que passa a certeza da minha lucidez se vai desvanecendo. A incredulidade agiganta-se à medida que vou percebendo que aquilo que vejo poderá não ser mais do que uma elucubração da minha mente sem o sustentáculo da realidade. O instantâneo sobrepõe-se ao passado, que a existir nada mais é do que uma pura ilusão.
Ontem vi e ouvi, com a atenção que a família me permitiu, o primeiro debate sobre a despenalização da IVG. Fiquei a perceber que o que uns defendem como direito inalienável à vida se poderá revestir na perpetuação da miséria, numa interrupção involuntária da condição humana: a destruição (ou desarranjo) de uma vontade instintiva de sobrevivência.
Não há saúde física sem sanidade psicológica. A falta desta última, agravada pela consumação do acto que esteve na sua origem – na medida em que uma lei imoral assim o impôs –, agrava as dificuldades de subsistência do próprio ser, traz infelicidade, que se desmultiplica, como uma epidemia, pela sociedade na qual se está inexoravelmente inserido.
Caberá ao Estado a imposição de limites razoáveis para a nossa felicidade? Ou a busca da felicidade, a receita, a solução, a essência da nossa existência, não se trata de um caminho eminentemente pessoal que se socorre dos instrumentos que uma determinada sociedade lhe pôs à disposição?
Depois há o argumento do princípio e do fim da nossa liberdade individual. Mas quem senão a própria mulher que decidiu abortar sofrerá o dano maior? A sociedade? Um feto com dez semanas de vida que mais não é do que uma amálgama celular sem vontade própria, dependente da saúde e do corpo da mãe? É, na realidade, um ser vivo que futuramente se transformará num ser humano plenipotenciário na estrita medida dos seus direitos e, por muito que isso possa custar a admitir, não é nada mais para além dessa condição.
Infelizmente, à laia de Pacheco Pereira, é essa a questão central. Perante inevitabilidade do dano opta-se pelo menor, e o menor desses danos é, com certeza, aquele que permite readquirir de forma mais rápida a felicidade que se perdeu. Esse recobro (espiritual) torna-se objectivamente mais difícil perante a disseminação da miséria por mais indivíduos excluindo a própria mulher.