Quando Joseph Mitchell deu corpo ao seu famoso Joe Gould – o Professor Gaivota, licenciado em Harvard, que falava gaivotês – limitou-se, certamente, a incorporar no estranho personagem os conhecimentos advindos da sua já longa experiência pessoal e profissional, fortemente edificadas pela sua vivência nos meandros da babilónica Nova Iorque.
Mitchell conhecia como ninguém o submundo da Grande Maçã. Nascido em 1908 numa pequena aldeia da Carolina do Norte, pretendendo vir a tornar-se num jornalista de política, aventurou-se no salto até Nova Iorque no dealbar da Grande Depressão, no Outono de 1929. Antes de ingressar na revista The New Yorker em 1938 – onde se manteve até ao dia da sua morte em 1996 –, exerceu jornalismo no Herald Tribune, no The Morning World e no The World-Telegram. Durante estes nove anos Mitchell escreveu e publicou reportagens e crónicas sobre julgamentos – no qual se destaca o julgamento do raptor e assassino do bebé Lindbergh – e figuras públicas da alta finança e do mundo do espectáculo. Desencantado pela frivolidade da alta roda, dedica-se à escrita sobre gente comum, combatentes da solidão – como ele tão bem define –, sobre o submundo dos teatros de striptease, o burlesque e o vaudeville, das congregações e comunidades religiosas em multiplicação e dos feiticeiros de vudu, do desporto norte-americano, da venda e do consumo de álcool pós Lei Seca, dos bares mais esconsos, das drogas em ascensão, dos veraneantes de Rockaway Beach a Long Beach, do Battery Park City a Staten Island, e até sobre os azafamados apanhadores de ostras.
Sou Todo Ouvidos é um retrato cru e poderoso das profundezas de Nova Iorque, da cidade de todos os sonhos que consubstancia a promessa do eldorado americano; do gigantesco caldeirão de línguas, raças e culturas que, simultaneamente, se transformou no grande palco para a actuação das máfias, dos criminosos e dos impostores. Mitchell descreve tudo isto com uma simplicidade literária, através de uma narrativa escorreita, sem artifícios ou truques de linguagem. A propósito disto afirma no seu prefácio que «não pode haver maior praga para um jornal do que um jornalista que se põe a tentar escrever literatura.» (pág. 33) Mitchell falava aqui sobre o julgamento do caso Hauptmann – o assassino do filho de Charles Lindbergh –, para o qual foi destacado, referindo-se à cobertura dos casos de homicídio como uma terapia para manter a sanidade mental dos jornalistas que só se dedicam às entrevistas – «Uma vez fui salvo pelo processo Hauptmann», declara (pág. 32) –, tendo que lidar com excentricidade dos entrevistados e com as tentativas de desmentido destes após a sua publicação:
«Nenhum jornalista pode trabalhar constantemente em entrevistas sem ficar um pouco pírulas; mais tarde ou mais cedo, há-de começar a ouvir passarinhos a chilrear. Embora tenha de se ocupar de questões mais importantes, acho que a rotação de tarefas deveria ser um dos pontos a tratar pela American Newspaper Guild, o sindicato dos jornalistas, do qual sou membro e em cujo programa acredito. Quando um chefe de redacção nos apanha a ler as nossas notas com os olhos em bico e a rogar pragas à bonequinha ignorante que acabámos de entrevistar, pode dar-se o caso de ser suficientemente simpático para nos mandar para a rua por uns tempos, ou para a revisão, ou talvez apareça alguma reportagem interessante e nos salve da insanidade. Precisamente no momento em que estamos para cair vítimas de uma das doenças profissionais dos jornalistas – indigestão, alcoolismo, cinismo e Nicholas Murray Butler são algumas delas –, normalmente aparece uma grande notícia, uma caça aos vampiros, que nos leva para fora da redacção.» (pág. 32)
Nada de mais premonitório que este prefácio escrito em 1938 aquando da publicação de My Ears are Bent pela Sheridan House e só mais tarde, em 2001, republicado pela Pantheon Books. Depois de terminar O Segredo de Joe Gould em 1964 – escrito em duas partes para a New Yorker, a primeira em 1942 e a segunda em 1964, e publicados pela primeira vez juntos e na íntegra em livro pela Viking Press em 1965 – Joseph Mitchell padeceu, até à sua morte em 1996, do temível síndrome do bloqueio de escritor, e nada mais escreveu, limitando-se a frequentar as instalações da revista nova-iorquina. Note-se que a segunda parte do livro – escrita em 1964 – relata a descoberta do verdadeiro segredo do personagem Joe Gould que havia retratado 22 anos antes, então como pretenso escritor de Uma História Oral dos Nossos Tempos.
Do livro de crónicas publicado pela primeira vez em Portugal pela Ambar, sobressai, neste caso sim, a verdadeira História Oral de Nova Iorque na década de 1930 escrita pela pena do Mestre. De leitura indispensável.
Em jeito de conclusão, deixo aqui ficar um excerto da chegada do verrinoso, emproado, pró-estalinista e antiamericano George Bernard Shaw a Nova Iorque – dramaturgo irlandês (1856-1950), Prémio Nobel da Literatura em 1925:
«George Bernard Shaw estava sentado na sala de fumo do Empress of Britain, hoje ancorado, e manteve a sua promessa de falar livremente com os jornalistas depois de ontem ter passado horas a evitá-los.
“Façam o favor de disparar, meus senhores”, disse ele. “De vez em quando escrevem histórias mal-intencionadas sobre coisas que eu não disse. Mas disparem na mesma.”
Primeiro fizeram-lhe uma pergunta sobre o alegado insulto com que ele mimoseou Miss Helen Keller.
SHAW: O jornalista que escreveu aquilo merecia um tiro. O que eu lhe disse é que ela podia ouvir, falar e ver muito melhor do que muitos dos seus compatriotas.
Miss Keller explicou isso mesmo ao New York Times.
REPÓRTER: Estaria interessado na realização de um congresso dos grandes nomes da literatura para pôr fim à guerra?
SHAW: Porque haveriam de pôr fim à guerra? A guerra não é mais do que um método de matar pessoas. Há muitíssima gente que devia ser morta.
REPÓRTER: O senhor acha que deviam matar os Ingleses?
O Sr. Shaw recusou-se a responder, fazendo um gesto como que a dizer que considerava a pergunta idiota.
REPÓRTER: E os irlandeses?
SHAW: Acho. Quase todos os irlandeses deviam ser mortos.» (pp. 219-220)
Referência bibliográfica
Joseph Mitchell, Sou Todo Ouvidos. Porto: Ambar, 1.ª edição, Outubro de 2006, 246 pp.; tradução de José Lima; obra original: My Ears are Bent, 1938.
Mitchell conhecia como ninguém o submundo da Grande Maçã. Nascido em 1908 numa pequena aldeia da Carolina do Norte, pretendendo vir a tornar-se num jornalista de política, aventurou-se no salto até Nova Iorque no dealbar da Grande Depressão, no Outono de 1929. Antes de ingressar na revista The New Yorker em 1938 – onde se manteve até ao dia da sua morte em 1996 –, exerceu jornalismo no Herald Tribune, no The Morning World e no The World-Telegram. Durante estes nove anos Mitchell escreveu e publicou reportagens e crónicas sobre julgamentos – no qual se destaca o julgamento do raptor e assassino do bebé Lindbergh – e figuras públicas da alta finança e do mundo do espectáculo. Desencantado pela frivolidade da alta roda, dedica-se à escrita sobre gente comum, combatentes da solidão – como ele tão bem define –, sobre o submundo dos teatros de striptease, o burlesque e o vaudeville, das congregações e comunidades religiosas em multiplicação e dos feiticeiros de vudu, do desporto norte-americano, da venda e do consumo de álcool pós Lei Seca, dos bares mais esconsos, das drogas em ascensão, dos veraneantes de Rockaway Beach a Long Beach, do Battery Park City a Staten Island, e até sobre os azafamados apanhadores de ostras.
Sou Todo Ouvidos é um retrato cru e poderoso das profundezas de Nova Iorque, da cidade de todos os sonhos que consubstancia a promessa do eldorado americano; do gigantesco caldeirão de línguas, raças e culturas que, simultaneamente, se transformou no grande palco para a actuação das máfias, dos criminosos e dos impostores. Mitchell descreve tudo isto com uma simplicidade literária, através de uma narrativa escorreita, sem artifícios ou truques de linguagem. A propósito disto afirma no seu prefácio que «não pode haver maior praga para um jornal do que um jornalista que se põe a tentar escrever literatura.» (pág. 33) Mitchell falava aqui sobre o julgamento do caso Hauptmann – o assassino do filho de Charles Lindbergh –, para o qual foi destacado, referindo-se à cobertura dos casos de homicídio como uma terapia para manter a sanidade mental dos jornalistas que só se dedicam às entrevistas – «Uma vez fui salvo pelo processo Hauptmann», declara (pág. 32) –, tendo que lidar com excentricidade dos entrevistados e com as tentativas de desmentido destes após a sua publicação:
«Nenhum jornalista pode trabalhar constantemente em entrevistas sem ficar um pouco pírulas; mais tarde ou mais cedo, há-de começar a ouvir passarinhos a chilrear. Embora tenha de se ocupar de questões mais importantes, acho que a rotação de tarefas deveria ser um dos pontos a tratar pela American Newspaper Guild, o sindicato dos jornalistas, do qual sou membro e em cujo programa acredito. Quando um chefe de redacção nos apanha a ler as nossas notas com os olhos em bico e a rogar pragas à bonequinha ignorante que acabámos de entrevistar, pode dar-se o caso de ser suficientemente simpático para nos mandar para a rua por uns tempos, ou para a revisão, ou talvez apareça alguma reportagem interessante e nos salve da insanidade. Precisamente no momento em que estamos para cair vítimas de uma das doenças profissionais dos jornalistas – indigestão, alcoolismo, cinismo e Nicholas Murray Butler são algumas delas –, normalmente aparece uma grande notícia, uma caça aos vampiros, que nos leva para fora da redacção.» (pág. 32)
Nada de mais premonitório que este prefácio escrito em 1938 aquando da publicação de My Ears are Bent pela Sheridan House e só mais tarde, em 2001, republicado pela Pantheon Books. Depois de terminar O Segredo de Joe Gould em 1964 – escrito em duas partes para a New Yorker, a primeira em 1942 e a segunda em 1964, e publicados pela primeira vez juntos e na íntegra em livro pela Viking Press em 1965 – Joseph Mitchell padeceu, até à sua morte em 1996, do temível síndrome do bloqueio de escritor, e nada mais escreveu, limitando-se a frequentar as instalações da revista nova-iorquina. Note-se que a segunda parte do livro – escrita em 1964 – relata a descoberta do verdadeiro segredo do personagem Joe Gould que havia retratado 22 anos antes, então como pretenso escritor de Uma História Oral dos Nossos Tempos.
Do livro de crónicas publicado pela primeira vez em Portugal pela Ambar, sobressai, neste caso sim, a verdadeira História Oral de Nova Iorque na década de 1930 escrita pela pena do Mestre. De leitura indispensável.
Em jeito de conclusão, deixo aqui ficar um excerto da chegada do verrinoso, emproado, pró-estalinista e antiamericano George Bernard Shaw a Nova Iorque – dramaturgo irlandês (1856-1950), Prémio Nobel da Literatura em 1925:
«George Bernard Shaw estava sentado na sala de fumo do Empress of Britain, hoje ancorado, e manteve a sua promessa de falar livremente com os jornalistas depois de ontem ter passado horas a evitá-los.
“Façam o favor de disparar, meus senhores”, disse ele. “De vez em quando escrevem histórias mal-intencionadas sobre coisas que eu não disse. Mas disparem na mesma.”
Primeiro fizeram-lhe uma pergunta sobre o alegado insulto com que ele mimoseou Miss Helen Keller.
SHAW: O jornalista que escreveu aquilo merecia um tiro. O que eu lhe disse é que ela podia ouvir, falar e ver muito melhor do que muitos dos seus compatriotas.
Miss Keller explicou isso mesmo ao New York Times.
REPÓRTER: Estaria interessado na realização de um congresso dos grandes nomes da literatura para pôr fim à guerra?
SHAW: Porque haveriam de pôr fim à guerra? A guerra não é mais do que um método de matar pessoas. Há muitíssima gente que devia ser morta.
REPÓRTER: O senhor acha que deviam matar os Ingleses?
O Sr. Shaw recusou-se a responder, fazendo um gesto como que a dizer que considerava a pergunta idiota.
REPÓRTER: E os irlandeses?
SHAW: Acho. Quase todos os irlandeses deviam ser mortos.» (pp. 219-220)
Referência bibliográfica
Joseph Mitchell, Sou Todo Ouvidos. Porto: Ambar, 1.ª edição, Outubro de 2006, 246 pp.; tradução de José Lima; obra original: My Ears are Bent, 1938.
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