quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Produção estrangeira versus língua estrangeira

A propósito da polémica aberta pelo processo de selecção dos filmes que integram a categoria de Melhor Filme (de língua) Estrangeiro(a) para a atribuição de prémios cinematográficos nas cerimónias realizadas na Meca do Cinema – este ano agravada pela integração de filmes como Apocalypto de Mel Gibson e de Cartas de Iwo Jima de Clint Eastwood no concurso aos Globos de Ouro organizado pela Associação de Imprensa Estrangeira em Hollywood, no qual o último acabou por arrecadar o respectivo galardão –, tenho a dizer que considero o critério estritamente linguístico como verdadeiramente falacioso, na medida em que o espírito que esteve na génese dessa categoria em Hollywood teve que ver com o reconhecimento do mérito a obras produzidas na íntegra fora do círculo restrito do financiamento cinematográfico de Hollywood, dado o reconhecimento da quase imposição e até de aniquilação cultural provocada pelos filmes, produzidos em barda, nesse meio privilegiado.
A nomeação dos dois filmes atrás mencionados pode encontrar-se no nosso quotidiano no excesso de zelo regulamentador, assaz cerceador dos direitos, liberdades e garantias, de que a liberdade artística é um dos seus exemplos. Este episódio assemelha-se ao meticuloso trabalho de sapa exercido pelos advogados mais astutos que, pela letra do preceito normativo, buscam um atalho que lhes permita o vencimento das suas teses, mesmo que ao arrepio do espírito, mais ou menos declarado, de que o legislador se imbuiu no momento em que os decidiu criar. Assim esta putativa legalidade, ou se se preferir, esta não ilegalidade só pode ser entendida pelos destinatários, imediatos ou mediatos, como uma manobra típica de chico-espertismo e eminentemente falaciosa, prejudicando, neste caso, até pela silenciosa aceitação dos seus autores, as emanações de bom cunho artístico que potencialmente a obra poderá transmitir.

Esta verborreia toda serviu apenas para, à laia de antecipação não astrológica, referir que a Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas de Hollywood abrirá amanhã uma exposição cujos objectos patenteados ao público serão precisamente os posters dos filmes premiados na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, cuja criação remonta a 1956, celebrando-se, assim, os seus 50 anos de existência. Todavia, esta exposição soa a um encapotado pedido de clemência pelas eventuais aberrações que irão ser cometidas contra o espírito subjacente ao prémio, quando no próximo dia 23 forem anunciados os nomeados, com sequela garantida na noite de 25 de Fevereiro.

Em jeito de conclusão, fica a curiosidade de que Federico Fellini foi o primeiro realizador – apesar do prémio ser atribuído aos produtores – a ser galardoado com o Oscar para melhor filme estrangeiro; venceu com o maravilhoso A Estrada em 1956, produzido por Dino De Laurentiis e Carlo Ponti, este último falecido a semana passada (com a provecta idade de 95 anos). Façanha que se repetiu no ano seguinte, com As Noites de Cabíria, o que só serve para atestar, acaso necessitasse, a sua genialidade criativa.
Fellini é, aliás, o campeão nesta categoria, havendo vencido o Oscar correspondente por mais 2 ocasiões: com 8 ½ em 1963 e com Amarcord em 1974.
Sobre este último deixo ficar um curioso excerto de uma entrevista, no qual se exibe a resposta dada por Fellini à questão sobre a natureza autobiográfica do terno e hilariante Amarcord. Mais felliniano seria impossível (o seu a seu dono):

«
Não é a memória que domina os meus filmes. Dizer que os meus filmes são autobiográficos é uma completa imbecilidade. Eu é que inventei toda a minha vida. Inventei-a de propósito para o ecrã. Antes de rodar o meu primeiro filme não fiz outra coisa que não fosse preparar-me para me transformar em alguém grande e forte o suficiente e carregar toda a energia necessária para chegar um dia a gritar “acção!” Eu vivi para descobrir e criar um realizador: nada mais. E de nada mais tenho memória, apesar de passar por alguém que vive a sua vida expressiva nas grandes divisões da memória.
Nada disso é verdadeiro. Em jeito de anedota, de autobiográfico nos meus filmes não existe nada. Há, ao contrário, o meu testemunho de uma certa época na qual realmente vivi. Nesse sentido, agora sim, os meus filmes são autobiográficos: mas da mesma forma em que cada livro, cada verso de um poeta, cada cor colocada numa tela, é autobiográfico.
»
Entrevista a Federico Fellini, in Il film “Amarcord” di Federico Fellini, por Gianfranco Angelucci e Liliana Betti, 1974 [tradução livre: AMC]

Amarcord – tradução fonética de “recordo-me” no dialecto de Emilia-Romagna, região em que nasceu Fellini e onde decorre a acção do filme (fonte: IMDB).

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