Fiscalistas, economistas, advogados parafiscalistas e
multi-usos, politólogos, comentadores da estirpe pau-para-toda-a-colher, e só ficaram
a faltar os obstetras para ajudar a dar à luz, ou melhor, para explicar o
bê-á-bá do mercado livre e da livre circulação dos capitais nesta entidade
amorfa e fragmentária que se chama União Europeia. De todos se ouviu: não é
irregular; não vai contra a lei; pois, está claro, com esta carga fiscal as
empresas, sem contrariar a lei, note-se ou que fique bem claro, procuram outros sítios fiscalmente mais (argumentário adjectival):
- estáveis,
- favoráveis,
- leves,
- sólidos,
- benéficos,
- ligeiros,
- firmes,
- vantajosos,
- suaves,
- todas as anteriores, porque as hipóteses 1, 4 e 7 significam o mesmo, tal como as 2, 5 e 8, e as 3, 6 e 9; e cada conjunto forma os vértices do triângulo do éden fiscal para onde se expulsam os plutocratas cujas taxas efectivas de imposto sobre o rendimento, devido a determinadas benesses e ao chamado planeamento fiscal, é muitíssimo inferior àquela que recai sobre os lucros das PME.
Curvas de Laffer, votar com os pés… E, já agora (não vá o diabo tecê-las), que tal um pouco de Canesten? Deixemo-nos de teorias e vamos à vidinha.
Será que aqueles liberais de pacotilha, de colarinho branco e
dentes branqueados, cujas televisões deram a imperdível oportunidade de mostrar
os quadros dos seus escritórios sumptuosos, pretendiam fazer coincidir
legalidade com legitimidade?
Mas eu assevero: o negócio Zoete Druppel é simultaneamente
legal e ilegítimo. Acrescento, à laia de explicação, é soez, bárbaro e indecoroso, de uma boçalidade prototípica
de um cacique de sertão do século XIX, que respeita mais o gado que alimenta,
que a família que sustenta ou os “colaboradores” que fustiga com salários de
miséria.
Neste momento, nesta conjuntura, neste cenário de sacrifício
nacional, é imoral. Desde quando se pode legitimar ou concordar com uma
imoralidade apoiando-se na lei?
É antinómica a coabitação dos vocábulos “justo” e “imoral”
para qualificar um mesmo nome, uma lei imoral destrói os princípios basilares
da decência formulados pela sociedade: os seus valores, as suas crenças.
Sou um liberal, com uma forte vocação libertária, sou até um fervoroso
partidário da revolução capitalista há tantas décadas professada por Louis Kelso
– o que hoje temos não pode ser chamado de capitalismo, mas de ganância e cobiça
congenitamente necrófagas dos mais débeis –, mas sei que, tal como alguém
propunha para a democracia, há momentos em que esse fulgor libertário – fundado
num liberalismo cego – tem de ser suspenso em nome de uma causa maior, sob pena
da sua autoderrogação ao tornar-se iníquo. Esta cedência não é significado de capitulação, é
sobretudo um sinal de inteligência, quando entendemos que aquela, por haver ocorrido, actuará pelo
bem comum, pelas paz e coesão sociais, pela solidariedade, pela justiça, em suma, pela tão apregoada, como não praticada,
responsabilidade social. Lavem-me essa boca!
Termino com uma frase de alguém que, embora distante da
minha ideologia, perfilha, através das suas arte e intervenção cultural, a ideia comum e basilar de jamais transigir com a
injustiça: Jean-Luc Godard. E como ele quis no seu filme mais recente, «No
Comment»:
«Quand la loi n’est pas juste, la justice passe avant la loi.»