terça-feira, 30 de novembro de 2010

Os preços

Já aqui tenho elogiado algumas editoras que têm vindo a recuperar os grandes nomes da literatura universal, editando as suas obras até hoje inéditas em Portugal (ou caídas no olvido rumo aos alfarrabistas há dezenas de anos). Por mera preguiça, não fui verificar os meus escassamente incontáveis textos anteriores, e já não sei se a Ulisseia, agora chancela do grupo editorial Babel de Paulo Teixeira Pinto, já foi vítima dos meus elogios ou agraciada com a minha descomprometida verrina. Todavia, recorro à depauperada memória mais fresca para informar que a dita já foi objecto sacrificial por louvor aquando da publicação recente do Ham on Rye de Bukowski, com tradução do meu amigo invisível (apenas blogosférico) Manuel A. Domingos – o problema da coisa, isolamo-nos atrás destes muros cintilantes de cristais líquidos, e cremos que somos imensamente apreciados e até populares, apesar de o infalível contador não deixar a sombra de uma dúvida.
Volto à Ulisseia, trazendo-a ao pelourinho do aplauso pelas obras entretanto publicadas, com especial destaque do viciante deleite que retiro da leitura lenta e cuidada, quase como um meticuloso exercício de degustação, de Break It Down – Demolição da autora norte-americana Lydia Davis – a “ex” do Paul Auster, a sua companheira de viagem em tradução por França no início dos anos 70 do século passado (não sei se, com ele, ficou a conhecer o mestre Beckett), compartilhadora da fome que o judeu de Newark descreve nos suas memórias, e mulher entre 1974 e 1978, mãe do agora atinado (creio eu) Daniel Auster –, com uma tradução, que até chateia pela irrepreensibilidade, pelo nosso guardião do universo borgiano, José Mário Silva. [Frontispício da obra, acima reproduzido.]
De minha parte, enquanto leitor passivo – de nenhuma forma participante na elaboração da política editorial da referida editora –, espero que se continue a traduzir a obra desta autora, até há bem pouco tempo passível de ser conotada (e luso-conjecturada) com a mulher do intangível criador de vestuário desportivo, com lojas abertas ao público. E, como refere José Luís Peixoto no prefácio a este livro de histórias breves quando refere a tradução, também eu sou defensor do primeiro lado [cf. subcapítulo ‘Prefácio’ do “Prefácio”, de Break It Down – Demolição], e apugilista dessa prática (pronto a defender a ideia num ringue de boxe à laia de um Mailer a levar uns ganchos mortíferos de Vidal – e não me enganei, e até faço um apelo à Porto Editora para que na próxima revisão do seu dicionário introduza o vocábulo tão ouvido nas tertúlias erudito-futebolísticas deste país), que afinal é bem mais habitual em Portugal.
Gostaria de ter terminado o texto no parágrafo anterior, mas o título impede-me, apenas por uma questão de pudor (prefiro-o, neste caso, à honra): duzentas e cinco páginas impressas em edição brochada custam dezanove euros e cinquenta cêntimos – dezanove cêntimos a folha impressa. Considero um verdadeiro exagero e abstenho-me de enquadrar a questão na conjuntura socioeconómica do país (pois bem, acabei de o fazer). Aliás, sem ter feito uma exaustiva análise comparada, a generalidade dos livros da Babel merecem que os preços sejam sovados…
Máxima surfista modificada e aumentada: destruam os preços e não os livros (e a carteira de quem os compra).

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

“Frank Drebin”

Leslie Nielsen
(Regina, SK, Canadá, 26/02/1926 – Fort Lauderdale, FL, EUA, 28/11/2010)
Nunca fui de lágrima fácil, tanto na alegria, como na tristeza, sou um acumulador, porventura reprimido (vou-me dando conta disso à medida que envelheço), de fenómenos (emocionais) de exteriorização de sentimentos perante terceiros, mas este homem, que ontem desapareceu ao 84 anos, vítima de uma pneumonia, foi um dos principais responsáveis por algumas das fortes gargalhadas, acompanhadas de incontidos jorros de lágrimas, em muitos momentos da minha vida. Poderia não ser um Peter Sellers, um Buster Keaton, ou um Jacques Tati (e este é, sempre que o recordo, um trio arrepiantemente assombroso e hilariante), até pela sua ausente vertente de “autor”. Todavia, Nielsen, em conjunto com os fabulosos irmãos Zucker e Jim Abrahams, permanecerá para todo o sempre no meu imaginário como um dos grandes protagonistas de filmes cómicos: a sua aparência respeitável, séria, a sua ilusória formalidade e até assertividade, conjugavam de forma sublime com as suas inocência e atrapalhação nos momentos mais aflitivos, redundando nas situações mais rocambolescas. Era um histrião de smoking, o pinga-amor desajeitado, o sedutor tortuoso e irresistível, e actualmente o mais fidedigno representante do burlesco cândido. Mesmo com 84 anos, a sua aparição no grande ou no pequeno ecrã fazia rir mesmo o mais sisudo empedernido.
Em jeito de homenagem, deixo ficar uma das melhores cenas retiradas da curta (pelo fracasso nas audiências), porém extraordinária, série televisiva Police Squad (a fonte de inspiração da trilogia Naked Gun):

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

IMPAC 2011

[Por vezes criamos rotinas difíceis de quebrar, como escrever neste blogue sem o deixar a morrer de inanição, famélico por novos textos por muito deploráveis que possam ser – do subgénero maçã podre – à luz dos profissionais desta coisa pavoneante; ou de deixar cair a divulgação de alguns eventos ou factos ligados à Literatura que, estou convencido do convencimento do leitor letrado, em nada engrandecem o valor deste blogue – aliás se acreditasse na potência do seu efeito multiplicador, seria como esperar por Godot, porquanto ao que de absorção se chama o elemento da multiplicação se traduz o valor real deste pasquim na plataforma do empório Google; e se absorve, por muitos milhões de caracteres que se lhe apliquem por repetição, a sua insignificância ou o nada será sempre a sua máxima distintiva.
Face ao grave e soturnamente exposto acima, e ao contrário de anos anteriores, abandono o tradicional exercício de “cortar e colar”, até pela expiração do prazo de validade da coisa, ou seja, mais desvalorizado pelo diferimento entre o acontecimento e o auto de notícia infra-escrito.]
No passado dia 15, foi anunciada a lista dos semifinalistas do International IMPAC Dublin Literary Award. A lista deste ano é composta por 162 romances (mais 6 que em 2010) escritos por outros tantos autores.
O destaque que aqui se dá a este prémio, advém da sua característica principal que o torna único e meritório, que se poderia traduzir nas 2 etapas (3 fases) bastantes distintas no processo de selecção que consiste na intervenção de dois níveis de especialistas ligados ao mundo dos livros: (1) bibliotecários, na 1.ª fase (este ano intervieram 126 bibliotecas situadas em 43 países), e (2) autores, críticos, editores e gente das letras, que constituem o júri previamente escolhido, nas 2.ª (eleição dos finalistas) e 3.ª (eleição do vencedor) fases (cujos resultados serão anunciados a 12 de Abril e a 15 de Junho de 2011, respectivamente).
As regras para as bibliotecas seleccionadas através de candidatura previamente elaborada são bastante simples:
- O Dublin City Council, através da administração das bibliotecas públicas da cidade de Dublin recebe uma lista de obras de ficção nomeadas por responsáveis de bibliotecas situadas nas capitais e principais cidades de países espalhados pelos cinco continentes.
- Cada biblioteca pode nomear até 3 obras de ficção que apenas têm de obedecer a uma condição: a sua publicação em língua inglesa.

Para o prémio de 2011 só poderiam ser nomeadas:
- Obras originalmente publicadas em inglês durante o ano de 2009;
ou,
- Obras originalmente publicadas noutra língua no quinquénio 2005/2009, e que hajam sido publicadas em inglês durante o ano de 2009.

Neste primeira fase do IMPAC de 2011, destacaram-se dez obras que obtiveram mais de quatro votos (cinco já foram publicadas em Portugal, curiosamente as quatro mais votadas e uma das três obras colocadas na quinta posição), num total dos 310 votos exercidos (para um máximo de 378 votos) pelas 126 bibliotecas (1 biblioteca – 3 obras diferentes; 1 obra – 1 voto).
Lidera a lista das dez mais votadas, a obra vencedora do National Book Award de 2009:
14 votos – Colum McCann, Deixa o Grande Mundo Girar (ed. port. Civilização, Let the Great World Spin);
13 votos – Colm Tóibín, Brooklyn (ed. port. Bertrand);
11 votos – Kathryn Stockett, As Serviçais (ed. port. Saída de Emergência, The Help);
10 votos – Hilary Mantel, Wolf Hall (ed. port. Civilização).
7 votos (3 obras)
- Julia Franck, The Blind Side of the Heart;
- Barbara Kingsolver, The Lacuna;
- Lorrie Moore, Uma Porta nas Escadas (ed. port. Relógio D’Água, A Gate at the Stairs);
5 votos (3 obras)
- A.S. Byatt, The Children’s Book;
- Linden MacIntyre, The Bishop’s Man;
- Dimitri Verhulst, Madame Verona Comes Down the Hill.

Apesar do encurtamento do texto habitual, jamais poderia deixar de revelar as obras eleitas pelas duas únicas bibliotecas portuguesas participantes no processo. Por norma, a sua participação reputa-se de bastante valiosa (nunca votaram num vencedor), isenta e, por isso, reveste-se do carácter de imprescindível; em regra, desprovida de qualquer vestígio de pró-lusofonia ou de amiguismo literário, resultando sempre de um enorme esforço de abstracção inteiramente dirigido para a qualidade das obras elegíveis. Eis, então, as escolhas para o IMPAC de 2011 enviadas (dentro do prazo) pelas nossas queridas instituições:
Biblioteca Municipal Central de Lisboa
- Carlos Ruiz Zafón – O Jogo do Anjo (ed. port. Dom Quixote) – 4 nomeações (+ Birmingham, Cork e Gateshead)
- Claudia Piñeiro – As Viúvas das Quintas-Feiras (ed. port. QuidNovi) – 2 nomeações (+ Brasília)
- Patrícia Melo – Mundo Perdido (ed. port. Campo das Letras) – 3 nomeações (+ Porto e Brasília)
Biblioteca Pública Municipal do Porto
- Daniel Silva – O Desertor (ed. port. Bertrand) – 1 nomeação
- Luiz Alfredo Garcia-Roza – Na Multidão (ed. brasileira Companhia das Letras) – 2 nomeações (+ Brasília)
- Patrícia Melo – Mundo Perdido (ed. port. Campo das Letras) – 3 nomeações (+ Lisboa e Brasília)

É tudo.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

80 Anos

Nasceu a 23 de Novembro de 1930 no Funchal, o maior (não o medi pela fita métrica cortada em centímetros, senão pela minha mui pessoal escala estética) poeta português vivo. A matemática dos dias marcou hoje oito dezenas em grupos de trezentos e sessenta e cinco – terminado às vezes na meia dúzia para acertos astronómicos –, oitenta órbitas deste rochedo vicioso à volta do fogo; anéis, por ele gravados, na memória de um povo, apenas ao alcance dos sublimes. Poetas da nossa terra. Obrigado por estes momentos densos pelo mais sincero, calmo e etéreo inebriamento: «O incêndio atrás das noites corta / pelo meio / o abraço da nossa morte.»

Parabéns Herberto.

«Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde
se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e da espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se. O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.»
Herberto Helder, A faca não corta o fogo, pp. 74-76.
[Lisboa: Assírio & Alvim, Setembro de 2008, 208 pp.]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A Caminho

o livro do ano. Novecentas e vinte páginas de poesia de Sophia, com selecção e organização pela sua filha Maria Andresen de Sousa Tavares.

sábado, 20 de novembro de 2010

O Armário e o Paquiderme*

Por vezes sou paquidérmico em relação a determinadas opiniões, que mais não são que pré-conceitos em estado latente prontos a serem arremessados para a arena de “olha que contra a corrente que eu sou”.
Não gosto mesmo nada de me citar, nem de fazer das minhas opiniões sentenças, até por razão de manter algum contacto com a realidade: ninguém lê este blogue – ou melhor, pedindo desculpa aos que me lêem, cerca de meia dúzia, tenho a consciência de que qualquer opinião que aqui emita jamais será considerada em qualquer microtertúlia em que se discuta cinema, literatura, ou qualquer outro tema que aqui desenvolvi. Não é falsa modéstia, é apenas a constatação da realidade: não distribuo empregos, nem abraço políticos, não sou dono de uma editora, não escrevo em jornais ou revistas, vivo (e espero continuar a viver) no Porto, sou apartidário, embora a minha condição de blogger dispensável se agrave por uma certa dextralidade política (o que é isso?), sou agnóstico, sempre dubitativo (e não dúbio), estou-me perfeitamente nas tintas para líderes e pseudo-líderes, para os tipos que se dizem éticos (esta é das melhores lidas ultimamente), chefes, autoridades (sobre qualquer matéria); nisso sou um anarca (não estender muito o conceito, por favor), libertário, anticonservador, cultor do meu pensamento livre (jamais constrangido), sem o fim último de insultar a diferença, embora por vezes uma boa provocação à laia de insulto sirva para aliviar um pouco desta minha idiossincrática carga emocional fortemente compressora.
Não preciso de sair do armário (pronto, já arrumei com o título), nem sinto a necessidade de me revelar, muito menos de encetar qualquer manobra de diversão que permita deixar-me mais confortável perante alguém.
A 2 de Outubro passado disse aqui:

«A primeira e, pelos vistos, frutuosa união Fincher & Sorkin chega cá no próximo dia 4 de Novembro, e tenho uma forte suspeita de que, por terras do primeiro-ministro filósofo (…), onde predominam as mentes preclaras, levará no mínimo com uma bola preta… Há quem culpe o realizador de Denver por haver realizado alguns telediscos, uma mácula jamais expurgável na carreira de um cineasta.»
E a bola preta veio de onde mais esperava: o algoz do realizador de videoclipes para Madonna, Paula Abdul, George Michael, Sting, entre outros, dificilmente reconhecerá qualquer mérito ao realizador de Denver, só se, por uma análise da crítica intracomparada, conseguir vencer um reaccionarismo, que o próprio julgará tratar-se de criatividade e de ambição cinematográfica, tal como proferia o polémico Ben Marcus nas artes literárias. Adaptando o texto à sétima arte, vem: aqueles que procuram assegurar que a cultura se afaste do progresso cinematográfico, aqueles que insistem que os sucessos fílmicos do passado devem ser solidificados, polidos e praticados pelas gerações mais jovens. Qualquer adaptação à realidade vigente é um sacrilégio. Logo, mais vale filmar de câmara ao ombro um bairro degradado de Manila e contratar uma dúzia de actores não profissionais e com uma fotografia deslavada, sem artifícios, contar uma história banal, para não se cair na malfeitoria do truque fácil de câmara, jogos de luz, filtros e montagem, e demais maquinaria associada – a profanação do cinema.
A concretização da profecia (mesmo antes de ter visto o filme, que, suponho, vi no dia a seguir à estreia – 5 de Novembro), levou-me, como já aqui disse, a suspender e arremessar para o arquivo de ficheiros “ponto doc” mortos a minha opinião mais elaborada sobre a última obra de Fincher**. Mas estarei sempre disponível para exteriorizar uma boa irritação, como se não bastasse, para não danificar ainda mais as paredes desta panela de pressão, já de si bastante combalida e com cicatrizes de repressões de antanho. O outing é a minha forma de vida. E já agora a de exibir algumas opiniões de quem muito respeito nesta matéria, apesar de discordâncias viscerais noutras ocasiões, o fio condutor no exercício da crítica jamais se cristalizou num conservadorismo bafiento:
«O filme de David Fincher possui não só a rara qualidade de ser tão inteligente como o seu brilhante herói, mas é-o da mesma forma. É arrogante, impaciente, frio, excitante e instintivamente arguto.
(…)
“A Rede Social” é um grande filme, não só devido ao seu estilo deslumbrante ou ao seu engenho visual, mas porque é admiravelmente bem-feito. Apesar das desconcertantes complicações da programação informática, da estratégia da Internet e da grande finança, o argumento de Aaron Sorkin torna tudo compreensível, e não seguimos com tanta força a história como somos puxados para detrás dela. Eu assisti ao filme rodeado por uma audiência que parecia absorta de uma forma invulgar: encontrava-se amplamente fascinada.»
Roger Ebert, “The Social Network”, Chicago Sun-Times, 29/09/2010.
Para terminar, e para um bom momento de descompressão, como seria A Rede Social se filmada por Wes Anderson, Michael Bay, Christopher Guest, Quentin Tarantino, Guillermo del Toro ou Frank Capra?

Notas: *este título não se inspirou em qualquer obra do realizador, tão cauterizado pela crítica em Portugal, Julian Schnabel.
**A minha indefectibilidade fincheriana será posta à prova no passo que o realizador do Colorado está prestes a dar. Trata-se de um remake de um filme sueco estreado no ano passado sobre o primeiro livro da trilogia-dos-títulos-em-comboio do escritor já desaparecido Stieg Larsson. Entretanto, continuo em aulas de mentalização para considerar uma obra-prima o terceiro filme da série Alien. Depois do 8.º Passageiro de Scott (o Ridley, o menos apimbalhado dos manos) e do Recontro Final de Cameron, e antes da Ressurreição do Jeunet, suponho que não necessitarei de uma sala fechada com grampos nas pálpebras para a Desforra de Fincher.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Patti Smith, como se esperava

Foram anunciados ontem os National Book Awards de 2010, e Patti Smith venceu com o seu Just Kids a categoria de “Melhor Livro – Não-Ficção”. A obra trata das memórias de uma parte importante da sua vida frenética, quando esta foi consumida nos 60 e 70 do século passado ao lado do fotógrafo, irreverente e controverso, Robert Mapplethorpe (1946-1989).
Haverá, num futuro próximo, uma versão portuguesa deste livro?

Na categoria de “Ficção” venceu um romance sobre outro género de cavalo (embora no caso anterior fosse moderado), Lord of Misrule, da escritora equina Jaimy Gordon. Carey voltou a perder a corrida. Oh, que situação tão triste.
O mais conhecido fabricante de calhamaços vivo, Tom Wolfe (n. 1931), sucede a Gore Vidal vencendo a Medalha de Distinção pelo seu contributo para letras norte-americanas (eu diria para os caracteres norte-americanos, dado o gasto…)
Mais pormenores, em português, aqui.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Biopic

«-noun
(informal) a film based on the life of a famous person, especially one giving a popular treatment
[from bio (graphical) + pic (ture)]»
Collins English Dictionary – Complete and Unabridged, 10th Edition.
Seguido de:
«You’re not an asshole, Mark. You just want to be.»
[Do argumento de Aaron Sorkin, The Social network, pág. 160 – última fala do filme, proferida pela assistente do advogado ("Sy") de Zuckerberg, "Marylin".]
q.e.d.
Sugestão de temas a desenvolver:

  • Facebook e o mundo.
  • A privacidade e o Facebook.
  • Facebook e a dependência afectiva.
  • O Facebook e a alienação da identidade.
  • Manuel Alegre: "Cavaco Silva serve-se do Facebook enquanto PR" – A instrumentalização capitalista de Cavaco patrão / Cavaco costureiro.
  • Beijei a fotografia do perfil do Facebook de Rui Santos (o tal do cabelo encaracolado), será que estou grávida?
  • O Facebook e a modernidade: a impossibilidade de dissociar estes conceitos, ou o emparelhamento inextinguível – estudo de críticas cinematográficas.
  • Fincher começa por F… acebook, o que faltou incluir no F… ilme para o transformar numa obra rivettiana, F… oda-se.

sábado, 13 de novembro de 2010

Desisto

Após esta leitura:

«Depois de “Se7en”, David Fincher nunca mais atingiu as mesmas alturas, talvez porque se tenha deixado deslumbrar pelo seu virtuosismo, mais interessado em explorar jogos de imagem e surpresas de peripécias em reviravoltas constantes.»
Breve crítica de Mário Jorge Torres, Público, CineCartaz e Ípsilon.
Desisto de postar aqui o texto que há uma semana vinha a congeminar nos intervalos da minha esgotante e, ultimamente, tumultuosa e angustiante actividade. Não sou crítico de nada, sou apenas, nestes domínios, um cinéfilo. Agarro nesta arte da projecção de ideias na grande tela com a paixão de um amante persistente não só da estética, mas também da técnica que a apurou. Preocupo-me menos com o corolário ético do «interrogar as manobras de poder e tocar nas contradições da modernidade», porque esse nunca foi o objectivo – faz-se a luz sobre um homem só, que aos dezanove anos começou do nada a erigir um império.
Não pretendo fazer a crítica da crítica ou dos críticos, embora esteja convicto de que todos nós, os que laboram nas mais diversas actividades cujo objectivo final é a exposição das nossas formas de pensar, sentir e/ou agir perante o mundo, jamais seremos possuidores do direito divino de proibir o seu escrutínio – negar esse exercício equivale a escrever entradas pueris num diário que se aferrolha ao fim de um dia de exaltações, tristezas, êxitos e frustrações, para mais tarde deitar fora a chave –, what lies beneath
Desisto, mas deixo ficar uma sugestão: o excelente texto escrito pelo Sérgio Lavos a propósito do último trabalho de Fincher, A Rede Social (The Social Network, 2010). O tal que agora terminava, iniciava-se com uma rememoração (regressão), porventura fetal, e partia da técnica para estética: a fabulosa cena inicial num bar de Harvard e a viagem ao som do mestre Reznor, “Hand Covers Bruise”, até à consumação do pecado original na construção do personagem (que é real), e que acompanha os créditos iniciais até à sua entrada na Kirkland House: «Universidade de Harvard Outono 2003» (Fincher pretendia filmá-la num só take com a, segundo dizem, intrincada RED One®, que pediu de empréstimo ao seu amigo Steve [Soderbergh]).
Desisto, mas não resisto em deixar aqui, para memória futura, o começo do que estava escrito (excerto de um texto bastante mais longo – até poupei tempo ao leitor e meio que teimosamente me visita):


Um silêncio invadiu a sala durante os primeiros dez minutos após o último anúncio. A memória, por vezes traiçoeira, porém associativa num movimento perpétuo de sinapses, conduziu-me à infância. A estância – a última antes da reprise – concebida por uma trupe londrina de quatro (por justaposição à de Liverpool que sublima o final), quando ainda o calor líquido do ventre materno me afagava e abafava os sons psicadélicos que se lhe uniram numa perfeição eloquente, de vibração, tremor, oscilação – Respira:

Corre, coelho corre
Cava esse buraco e esquece-te do sol
E quando enfim o trabalho terminar
Não descanses é tempo de voltares a cavar
Por muito que vivas e por mais alto que voes
A menos que sigas com a maré
E te equilibres na maior das ondas
Lanças-te rumo a uma morte prematura.
Pink Floyd, Breathe” (The Dark Side of the Moon, 1973; tradução livre: AMC, 2010)
Retomo ao silêncio embasbacado. Palavras proferidas em torno de uma mesa. Um diálogo frenético em tons pardacentos à mesa de um bar de Harvard. O fim, como revelação para a teia apocalíptica que se seguiria, envolvendo tudo e todos sem dó ou recuos perante a constatação do que se foi estilhaçando pelo caminho. Nove páginas do argumento de Sorkin equilibradas por um jogo de palavras que se entrecruzam sem se tangerem, que se esgotam com o murro no estômago:

«Ouve-me. Tu vais ser rico e ter imenso sucesso. Mas irás passar toda a tua vida a pensar que as raparigas não gostam de ti porque tu és um maníaco dos computadores. E eu só quero que saibas, do fundo do meu coração, que não irá ser esse o verdadeiro motivo. Será porque tu és uma besta.» [Do argumento de Aaron Sorkin, pág. 8; tradução livre: AMC]
[Textus interruptus]
Fincher 8 (obras-primas destacadas):
  • Alien 3 – A Desforra (Alien3, 1992)
  • Se7en – Sete Pecados Mortais (Se7en, 1995)
  • O Jogo (The Game, 1997)
  • Clube de Combate (Fight Club, 1999)
  • Sala de Pânico (Panic Room, 2002)
  • Zodiac (2007)
  • O Estranho Caso de Benjamin Button (The Curious Case of Benjamin Button, 2008)
  • A Rede Social (The Social Network, 2010)

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Houellebecq, finalmente

Michel Houellebecq (n. 1956)
Pelo seu romance La Carte et le territoire, num resultado de 7 votos contra 2 [Cinco à maior? Parece-me familiar…] Eis um excerto do romance galardoado, antes que me dê vontade de aqui expor e destapar a verve asinina (e até criminosa, pelas calúnia, difamação e infâmia) daqueles cuja inquestionável meia dezena no bucho não consegue fazer calar (carregar aqui para mais informações sobre a atribuição do prémio):
«Jeff Koons tinha acabado de se levantar do seu assento, os braços projectados para diante num impulso de entusiasmo. Sentado à sua frente numa otomana de couro branco parcialmente coberta de sedas, de certa forma absorto nos seus próprios pensamentos, Damien Hirst parecia encontrar-se prestes a proferir uma objecção – a sua cara estava corada, soturna. Ambos vestiam um fato preto – o de Koons, de riscas finas –, uma camisa branca e uma gravata preta. Entre os dois, na mesa de centro, permanecia um cestinho de frutas cristalizadas que nem um, nem outro, prestou qualquer atenção – Hirst bebia uma Budweiser Light.
»Atrás deles, uma pequena varanda envidraçada abria-se para uma paisagem de prédios altos que formavam uma desordem babilónica de polígonos gigantescos até aos confins do horizonte. A noite estava luminosa, o ar de uma limpidez absoluta. Podiam encontra-se no Catar ou no Dubai. Na realidade, a decoração do quarto tinha-se inspirado numa fotografia publicitária, retirada de uma publicação de luxo alemã, do hotel Emirates em Abu Dhabi.
»A testa de Jeff Koons estava ligeiramente brilhante. Com o pincel, Jed esbateu-a e recuou três passos. Decididamente, havia um problema com Koons. Hirst, no fundo, foi fácil de captar: podemos fazê-lo brutal, cínico, do tipo “eu cago sobre todos vós do alto da minha riqueza”; também se poderia fazer dele um artista revoltado (mesmo continuando rico) porfiando num trabalho angustiante sobre a morte. O seu rosto possuía algo de sanguíneo e grosseiro, tipicamente inglês, que o aproximava de um membro da claque do Arsenal. Em suma, existiam diferentes aspectos, mas que poderiam ser combinados num retrato coerente, representável, de um artista britânico típico da sua geração. Enquanto Koons parecia transmitir qualquer coisa de ambíguo, como uma combinação intransponível entre a manha ordinária de um vendedor e o entusiasmo de um asceta. Com aquela já fazia três semanas que Jed retocava a expressão de Koons a levantar-se do seu assento de braços projectados para diante num impulso de entusiasmo, como se tentasse persuadir Hirst – foi tão difícil como pintar um pornógrafo mórmon.»
Michel Houellebecq, La Carte et le territoire [parágrafos de abertura; tradução livre: AMC, 2010]
Patrocínio

sábado, 6 de novembro de 2010

Um Passo

Por muito lixo traduzido que continue a proliferar pelos escaparates das livrarias portuguesas, é inegável, sem necessidade de recorrer a métodos econométricos para confirmar a hipótese, que o mercado editorial português tem melhorado significativamente no que se refere à publicação de títulos de autores estrangeiros há muito consagrados na literatura universal. Não associo, contudo, este fenómeno de melhoria à concentração de inúmeras editoras em grandes grupos económicos – aliás, seguir por esse caminho, como justificativa, poderia redundar na mais acerba das minhas críticas em forma de texto, apresentando alguns exemplos de casas editoriais, outrora respeitadas, que de momento pouco produzem e que, ao invés de expandir a sua carteira de obras literárias, têm deixado cair ao nível extremo da indigência os direitos de publicação que possuem dos seus mais eminentes autores e limitam-se a republicar, com um restyling, as obras que já, por vezes há décadas, dispunham no seus stocks livreiros.
Por diversas vezes salientei aqui o fantástico trabalho da neófita Ahab, do trabalho da Quetzal em trazer as obras de ficção nunca antes publicadas no nosso país de figuras de topo da literatura mundial, do exercício da liberdade editorial como política de excelência da Antígona, mas há mais. Já temos neste país imediatista, e citando apenas alguns nomes que agora vêem a luz do dia em português de Portugal: Bukowski, Pynchon, Fante, Gaddis, Denis Johnson ou Cheever. Foram editadas algumas (ainda não todas) das obras mais marcantes de Hamsun, DeLillo, Bellow ou Updike. Faltam muitos outros, mas porventura não convém ralhar nesta casa de pobre (talvez não consiga evitar) – as migalhas já são substanciais, estão, por isso, em vias de mudar de denotação.
O pouco do muito que falta – «não está traduzido em português. Este artigo é uma ternurenta forma de pressão (de que estão à espera, miseráveis?)», Rui Catalão na Ípsilon referindo-se à não edição em Portugal do glorificado segundo e último romance (completo) escrito pelo tristemente desaparecido David Foster Wallace – já poderá ser objecto de comemoração, mas sem excessos para que não prolifere a tradução asinina, traidora e mesmo até assassina da arte literária, potenciados pela pressa da corrida ao escaparate. E não é só DFW, autores como Norman Rush, Malamud, Vollmann, Matthiessen ou Barthelme continuam sem ver a luz do dia na literata Lusitânia, e o que dizer então de Henry James, Thomas Hardy, de Willa Cather ou de George Eliot?
Bom, mas uma excelente notícia surgiu esta semana, materializada no livro publicado pela Ulisseia que é representado pela imagem que adorna este texto. Mais um magnífico pequeno passo que vai engrandecendo aos poucos a nossa parca bibliografia em português de obras consagradas de autores estrangeiros – com a tradução a cargo de um bukowskiano indefectível que muito aprecio e que atesta a qualidade do trabalho realizado: Manuel A. Domingos.