sexta-feira, 30 de maio de 2008

Um esclarecimento

A propósito do meu texto anterior, o Nuno Góis do blogue com título sugestivo Nem Paz, Nem Guerra, pôs em evidência duas questões bastante pertinentes referentes à minha intenção de boicotar a compra de livros de determinadas editoras que não se dignaram a estar presentes, de forma individual – para que se entenda, já que muitas se fizeram representar por distribuidoras, com um escassíssimo número de títulos postos à disposição do público –, na 78.ª edição da Feira do Livro do Porto (FLP).
A primeira questão, resulta da impossibilidade de boicotar – ou recusar-se a adquirir – livros de uma determinada editora, quando o que, na realidade, importa é o produto em si, a obra e o seu autor. Ora, as editoras não vendem produtos indiferenciados que podem ser adquiridos com os mesmos requisitos noutras editoras, há os direitos de autor e de publicação. No caso de uma obra de meu interesse ter sido publicada por uma destas editoras, vou ter de, à socapa do meu polícia interior, infringir o boicote auto-imposto – aliás, passada a efervescência é o que irá ocorrer com frequência, tornando-se regra, derrogando assim o boicote.
A segunda, tem que ver com as enormes diferenças de recursos financeiros que podem ser observadas entre as diversas editoras nomeadas na dita lista. Muitas são pequenas editoras, que vivem com dificuldades económicas e financeiras e que lutam pela sobrevivência dia a dia no cruel mercado editorial nacional – há os David e os Golias – com sede e zona principal de actividade fora da região coberta pela FLP. Logo, os custos associados à manutenção de um stand individual, adicionando-se os necessários encargos com os recursos humanos, tornariam esse objectivo quase impraticável. Nesse grupo e olhando para a lista de 20 editores e livreiros por mim enunciada, talvez – o emprego deste advérbio deriva do desconhecimento da verdadeira situação económico-financiera de cada uma, individualmente – deva incluir editoras como: Alêtheia, Antígona, Cavalo de Ferro, Colibri, Fenda, Guerra e Paz, Nova Vega, Sextante e Tinta-da-China. Todavia, há outras de dimensão aparentemente similar que estão presentes na FLP. São critérios...
Porém, o que é mais revoltante em toda esta história de ausências importantes da FLP, advém do desinteresse dos grandes grupos editoriais, alguns com inúmeras lojas abertas ao público na região, sem que fosse dado qualquer tipo de explicação, ou então no caso de o ter sido, a justificação tem por base uma fundamentação tão irritantemente ridícula que se subsume num puro insulto à inteligência dos seus destinatários (grupo em que me incluo) – seria preferível apelidarem-nos de forma directa, sem atavios e circunlóquios, de burros e ignorantes; assim, pelo menos, a honestidade em todo este processo de aparente segregação sairia vencedora.

  • Porque é que a Bertrand (Direct Group – Bertelsmann) não está presente?
  • Porque é que a Guimarães (de Paulo Teixeira Pinto), após a sua reestruturação radical que acicatou a curiosidade dos interessados por assuntos literários, não se dignou a comparecer no Porto, onde reside um dos seus ícones, Agustina Bessa-Luís, que, durante anos, foi a verdadeira salvadora da dita editora à beira do colapso empresarial?
  • Porque é que a LeYa se fez representar por uma distribuidora, depois de tanto alarde mediático com as suas aquisições, eventos culturais e prémios literários milionários?
  • E a Fnac? Que explicações terá para dar aos seus clientes das suas lojas na região?

É este menosprezo que não se entende e que tem de ser justificado, com razões coerentes e plausíveis, a toda uma comunidade, que só na sua área metropolitana (da Póvoa a Espinho, do Porto a Arouca), alberga quase 1,7 milhões de pessoas* (a de Lisboa, por exemplo, tem uma população de quase 2,8 milhões*)

*Fonte: INE, INE/Metrex GAMP, 2008

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Lista Negra [actualizado]

Por simples exercício de comparação, que através da preciosa ajuda de uma folha de cálculo e da conhecida técnica “copy & paste” não durou mais de 10 minutos, consegue-se facilmente chegar a uma lista de Editoras e Livreiros que resolveram demarcar-se do conjunto pela ausência da 78.ª edição da Feira do Livro do Porto (FLP), que ainda permenacerá de portas abertas até ao próximo dia 10 de Junho nos calabouços nas instalações do Pavilhão Rosa Mota (sito nos jardins do Palácio de Cristal), mas que, ao invés, não deixaram de marcar a sua presença no mesmo evento realizado no afamado local na Capital do Império – afamado, pelos serviços de primeira necessidade prestados durante o ano inteiro à população. Note-se, que em alguns casos, os faltantes por razões comerciais da FLP, dispõem de uma presença assinalável, com vários stands em Lisboa, como por exemplo a Bertrand Editora, mesmo excluindo os mini-pavilhões das outras chancelas do grupo DirectGroup – Bertelsmann também presentes no evento.
Assim, facilmente se chegou a uma lista de 20 editoras ou livreiros, que aqui serão expostos a título informativo, para fins de boicote na aquisição dos livros por si publicados (vai ser difícil, vide o texto anterior sobre um livro de uma delas) ou na deslocação a esses postos de venda; e, porque não?, para memória futura (já que a idade não perdoa, e um recurso informático deste calibre não é de desprezar). Ei-las, por ordem alfabética:

Alguns comentários:

  1. À lista supra-referida poder-se-ia acrescentar outro conjunto de editoras que aumentaria de forma considerável a cifra de 20 não-presenças na FLP. A exclusão dessas editoras deveu-se, única e exclusivamente, a um critério pessoal de selecção. Excluíram-se, por exemplo, as editoras de livros escolares ou de literatura infantil. Apenas me preocupei com as produtoras de Literatura (conto, novela, romance, ensaio, poesia, teatro, não-ficção em geral).
  2. De modo inverso, isto é, das que marcaram presença no Porto e não em Lisboa, há apenas a destacar a excelente casa portuense Edições Caixotim, que, a propósito, emitiu um comunicado transcrito na íntegra no Blogtailors, onde, para além de uma abordagem pertinaz sobre o estado de degradação actual da FLP, potenciado pelos nossos queridos responsáveis pela Câmara Municipal, dá o devido destaque ao ponto de que se ocupa este texto, muito embora a Caixotim se refira em exclusivo ao grupo LeYa, que ainda “participou” indirectamente com um escasso número de títulos através da desconhecida “Inovação à Leitura”, que segundo me disseram é uma distribuidora de livros de Braga:

    «Entretanto, alargando o âmbito desta análise, ao declarar abertamente, através da comunicação social, o seu desinteresse na participação da Feira do Livro do Porto, justificando-o por uma premissa de ordem comercial, o Grupo LeYa manifestou, para com os leitores do Norte, em geral, e os portuenses, em particular, um total alheamento, senão desprezo, mitigado por uma solução de remedeio encontrada à última hora e que se traduz na presença de uma distribuidora que expõe e comercializa os livros das editoras desse Grupo.» [destaques meus]

  3. Não se entende a estratégia do grupo Bertrand, que se prepara para inaugurar mais uma mega-loja com vários pisos no coração da Boavista. Para nosso grande consolo, apenas relegaram para a provinciana FLP os-mais-chatos-que-testemunhas-de-jeová funcionários/angariadores arrebatados [eufemismo] do Círculo de Leitores. Por outro lado, os responsáveis da editora do grupo alemão nem sequer tentaram a tal "solução de remedeio" através da inclusão dos seus livros através de uma distribuidora.
  4. Não se entende a não-presença da Fnac, pela primeira vez desde que chegou à Invicta. Ter-se-ão amedrontado com o excelente stand do El Corte Inglés, com inúmeros títulos em castelhano? Fará parte de uma estratégia de retirada, e irão fechar as três lojas do Grande Porto (GaiaShopping, NorteShopping e Santa Catarina)?
  5. Quanto à estratégia da Guimarães renovada, cedo me apercebi de um certo elitismo disfarçado que pululava sobre projecto. Com um patrão multimilionário, jovem e reformado, acabado de sair da banca por um processo no mínimo heteróclito, preocupou-se em formar um conselho editorial sonoro para uma determinada estirpe de frequentadores de eventos sociais quase esotéricos, com direito a pose junto de vivendas de assinatura nas revistas cor-de-rosa – estas, veículos privilegiados de práticas exotéricas, ou plásticas [eufemismo] das suas actividades em prole do povo, essa coisa enorme. Espero, com sinceridade, estar redondamente enganado.
  6. Não podia terminar este texto sobre a configuração de uma lista negra de editoras, sem que se fizesse uma referência especial a três outras cujo respeito pelos consumidores, as práticas de negócio, a não discriminação de públicos, em suma, os modos de agir são diametralmente opostos aos dos indexados. Falo, designadamente, da minha tríade de eleição, com a Relógio D’Água à cabeça – Francisco Vale, por favor não ceda, a sua editora é, de longe, a melhor do país –, a Assírio & Alvim e a Cotovia.

[Actualização às 20:02]: tal como referi no ponto 2 dos comentários relativamente às editoras do grupo Leya, há outras editoras que havendo decidindo pela não-presença na FLP enviaram uma parte dos seus títulos através de representantes ou distribuidores (figurará a vermelho à frente de cada editora).

rabiscos [quase] exemplares [pub]

A partir de oito do conjunto de microcontos reunidos em Crimes Exemplares do autor multinacional Max Aub (1903-1972), adaptados graficamente pelo desenhador Pedro Vieira, inaugura-se a exposição sob o título «rabiscos [quase] exemplares» que estará à vista a partir do dia 3 de Junho na Livraria Almedina no Atrium Saldanha.
[/pub]

Nota: só mesmo o Pedro – amigo invisível, blogosférico de longa data – para fazer derrogar a regra imposta do regionalismo na divulgação de eventos culturais neste blogue.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Pobre Antonia

Por estes dias, a recente e louvavelmente criada editora Sextante – que começou por se chamar Sudoeste e modificou o nome para evitar possíveis mal-entendidos com outras editoras existentes, optando por um novo que, de forma estranha, é igual à de outra existente no Brasil – publicou a, até hoje considerada, obra-prima da romancista, ensaísta, crítica literária e ex-professora universitária Antonia Susan Byatt (assina o seus trabalhos como A.S. Byatt), nascida em 1936 em Sheffield em Inglaterra, Possessão (Possession, 1990).
Esta obra permitiu à escritora britânica juntar o seu nome ao restrito conjunto de autores que venceram o mais prestigiado prémio literário a galardoar uma obra de ficção publicada originalmente em língua inglesa (Estados Unidos não incluídos), o célebre Booker Prize. E se acrescentarmos que, até 2007 (inclusive), dos 41 prémios distribuídos desde 1969 (tanto em 1974 como em 1992 houve dois vencedores ex aequo, Middleton e Gordimer, e Ondaatje e Unsworth, respectivamente) apenas 14 foram atribuídos a mulheres, o valor da vitória ganha outros matizes de excelência.
Por estes dias vou terminando a sua leitura, que diga-se, a talho de foice, não é nada fácil. Porém, posso desde logo confirmar de que se trata de um romance minuciosamente trabalhado, de uma excelente obra, com um arcaboiço literário invejável capaz de retirar o fôlego a mentes menos avisadas nas artes literárias. Para além da técnica narrativa recorrentemente analéptica, pejada de saltos históricos entre os séculos XIX e XX (hoje), e do percebido conhecimento aprofundado dos poetas, das suas obras e biografias, dos períodos romântico e vitoriano (Wordsworth, Arnold, Tennyson, S.T. Coleridge, Byron, Keats, etc.), de mitologia grega, do folclore nórdico e celta, e de filosofia, Byatt alterna dentro da mesma obra as formas narrativas do conto, da poesia, da prosa epistolar e diarista, do romance profusamente descritivo dos personagens, ambientes e objectos e dos diversos locais por onde se vai desenrolando a trama, a diálogos bem elaborados, com uma grande dose de humor e de ironia normalmente apontada à vida académica contemporânea, caracterizada por um estado de guerrilha latente, de invejas e de compadrios – só quem por lá anda ou andou consegue rever-se na descrição da envolvente tão bem articulada pela autora inglesa.

Bom, mas o que me levou à elaboração deste já longo texto irónico-interrogativo, nada teve que ver com a obra em si mesma, mas com a coincidência estranha da forma como a edição desta obra foi noticiada pela imprensa da especialidade1.
aqui havia referido o texto publicado a propósito de Possessão no último número da renovada revista Ler que, pelos laconismo e brevidade, apenas, na minha maneira de ver, teve como resultado um dispêndio despropositado de espaço e de caracteres: «Empreendimento no mínimo volumoso, acaba de sair Possessão […]»
Desta feita, a honras cabem ao JL, que na sua última edição (n.º 982, de 21 de Maio) refere o seguinte na página 29: «Há mistérios insondáveis na tradução portuguesa. Possessão – Uma História de Amor de A. S. Byatt é um deles. Escrito em 1990 [será?], foi distinguido com o Man Booker Prize [o grupo Man, plc só começou a patrocinar o Booker Prize desde 2003] no mesmo ano. Mas só agora foi traduzido do inglês.»
Mistério insondável? Porquê? Tratar-se-á de uma ironia, em tom de ferroada, ao editor português, que em boa hora se lembrou de colmatar esta lacuna no mercado livreiro de língua portuguesa? Ou será um puxão de orelhas a todo o meio editorial nacional pela falta de sensibilidade na escolha das obras estrangeiras a editar no nosso país?
Ora, em quase 40 anos de Booker Prize (1969-2007), foram premiadas cerca de 41 obras de ficção, das quais 26 foram editadas em português europeu e 15 não mereceram essa atenção – destas 15 há quatro obras posteriores a Possessão de A.S. Byatt: é o caso das obras vencedoras em 1991, 1992, 1994 e 1995, respectivamente, The Famished Road de Ben Okri; Sacred Hunger de Barry Unsworth; How Late It Was, How Late de James Kelman; e The Ghost Road de Pat Barker. Curiosamente, esta última foi nomeada, em conjunto com mais 5 obras de outros tantos escritores vencedores do Booker, para a eleição aberta ao público em geral para o prémio “The Best of the Booker Prize” a propósito da comemoração dos seus 40 anos de existência. Neste caso e naqueles termos, estamos perante um mistério ainda mais insondável, sabendo que a escritora inglesa (n. 1943) conta já com duas das suas onze obras de ficção editadas em português, nenhuma das quais pertence ao grupo das suas três (incluíndo The Ghost Road) que foram contempladas com prémios literários.

Mas o verdadeiro problema do mercado editorial português, se nos abstivermos do critério do potencial êxito comercial, normalmente associado a obras de qualidade duvidosa, está nos autores que jamais viram as suas respectivas obras penetrarem no mercado luso, embora sejam internacionalmente reconhecidos por diversos méritos estritamente relacionados com a questão literária; ou naqueles de reconhecidíssimo mérito cuja obra completa editada na nossa língua está muito longe de ser alcançada.
Há cerca de um mês elaborei uma listagem, que ficou no segredo dos meus ficheiros pessoais, que incluía 50 obras fundamentais de 10 autores norte-americanos2 que jamais viram a luz do dia (ou o negro tipográfico) na língua de Camões (embora algumas tenham sido editadas em português do Brasil). Após a realização daquele empreendimento e por mera coincidência, uma semana bastou para a lista passar da sua configuração de 10/50 para 10/49, uma vez que a editora portuense Civilização acabara de lançar no mercado uma das obras referenciadas na dita lista, Regressa, Coelho (Rabbit Redux, 1971) de John Updike. E até sei que, pelas mãos da editora acossada pela publicação da obra de Byatt, a cifra passará, em breve, para 10/48, já que se prevê a edição da obra-prima de um dos mestres da literatura contemporânea: Underworld (1997) de Don DeLillo. Será, da mesma forma, um empreendimento volumoso e/ou um mistério insondável?
A ver vamos.


Notas:

  1. Antes de Possessão, já se encontravam editados em Portugal um romance e um conto de A.S. Byatt: A Fábula do Biógrafo (ed. port. Temas e Debates, 2003; The Biographer’s Tale, 2000) e, curiosamente, um conto de fadas extraído do romance Possessão (ed. port. Sextante, pp. 67-77), chamado O caixão de vidro (ed. port. Tempus, 1997; The Glass Coffin incluído na colectânea de contos da autora The Djinn In The Nightingale's Eye, 1994).
  2. Autores referenciados na lista pessoal: John Barth (1930), Donald Barthelme (1931-1989), Saul Bellow (1915-2005), Don DeLillo (1936), Vladimir Nabokov (1899-1977), Thomas Pynchon (1937), Philip Roth (1933), Norman Rush (1933), John Updike (1932) e David Foster Wallace (1962).

terça-feira, 27 de maio de 2008

Eu fiz um filme sobre África...

«I had a farm in Africa at the foot of the Ngong Hills.»

Sydney Pollack

Sydney Pollack
(1 de Julho de 1934 – 26 de Maio de 2008)


Não, não preciso falar de O Nosso Amor de Ontem (The Way We Were, 1973), do soberbamente dirigido Tootsie (1982), de Os cavalos também se abatem (They Shoot Horses, Don't They?, 1969), de Os Três Dias de Condor (Three Days of the Condor, 1975) ou do excelente remake do melodrama de 1954 do gigante Billy Wilder, Sabrina (1995) com Julia Ormond e Harrison Ford (com a espinhosa tarefa de personificar papéis outrora atribuídos por Wilder a gigantes como Humphrey Bogart, Audrey Hepburn ou William Holden), basta-me-ia um, um filme apenas para o deixar para sempre no meu mui privado Olimpo cinematográfico (forte apelo do meu lado lamechas): África Minha (Out of Africa, 1985) – adaptação de três obras autobiográficas de escritora dinamarquesa Karen Blixen (então sob o pseudónimo de Isak Dinesen), com as soberbas interpretações de Meryl Streep, Robert Redford e de Klaus Maria Brandauer, vencedor de 7 Óscares da Academia, 3 Globos de Ouro e de 3 BAFTA.


Para além das suas aparições, quase sempre secundárias, como actor, ele dirigiu os melhores: Paul Newman, Robert Redford, de Dustin Hoffman a Harrison Ford, de Jane Fonda, Meryl Streep a Nicole Kidman, de Burt Lancaster ou Robert Mitchum a Al Pacino ou Sean Penn.


Deixo-vos com uma das cenas mais memoráveis da História do cinema, para além da fotografia, divinizada pela excepcional banda sonora de John Barry (volume de som bem alto, por favor):



«Denys will like that. I must remember to tell him.»

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Eu queria encontrar aqui ainda a terra [pub]

Estreia da nova peça do Projéc~, desta vez numa produção do TMG para a Câmara Municipal da Guarda e o Centro de Estudos Ibéricos. O quinto trabalho da estrutura de produção teatral do TMG intitula-se Eu queria encontrar aqui ainda a terra, e tem por base os textos de manuel a. domingos e António Godinho sobre os universos de Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço.

A peça, para maiores de 12 anos e com encenação, dramaturgia, cenografia e figurinos de Luciano Amarelo, estreia a 28 de Maio no TMG, ficando em cena no Pequeno Auditório até dia 30 deste mês, com sessões às 21.30 horas.

Komakino

Ian CurtisExcelente texto do Pedro Mexia sobre o “para além da melancolia” que caracterizou a (curta) vida da Ian Curtis (1956-1980).
Ian jamais foi um melancólico, a sua índole era mais complexa, e dificilmente explicável pelas suas origens, por haver sido um produto da classe média suburbana da Manchester. Embora desde cedo houvesse demonstrado a sua necessidade de libertação das amarras de uma vida rotineira reverberada pelos seus pais e amigos, para uma vida independente onde pudesse dar vida às suas pulsões: confusas, entrecruzadas. Libertadas em letras maiúsculas, sempre em maiúsculas, no seu caderno preto.
O
Pedro Mexia refere-se aos sete pecados capitais, retirados das palavras de Jon Savage apensas à reedição do primeiro álbum dos Joy Division: Uknown Pleasures, 1979. Culpa, medo, raiva, claustrofobia, repulsa, ódio de si mesmo e fatalismo. Todos eles vêm reflectidos nas letras que Ian nos deixou, a que eu juntaria um oitavo, impotência, que de alguma forma apura e explicita os restantes sete, ou talvez, rivalize com a dilacerantemente percebida auto-estima nula.
O impulso corajoso da emancipação prematura, foi-se aniquilado com a necessária obediência a um ritual para pôr uma máquina a funcionar, que se foi montando à volta dele à porta de uma sala de espectáculos fechada que acabara de receber o Camaleão*.
Ian era o fulcro, a mola impulsionadora, o vórtice aglutinador do único caminho para o sucesso, e ele sentia-o como um fardo que pesava toneladas, que o arremetia para as trevas de um poço húmido e profundo.
Dando um pequeno salto histórico. Despoletou a sua epilepsia. A vizinhança da digressão para os Estados Unidos foi o catalisador de um cadinho efervescente de circunstâncias interiores rumo à catástrofe. A impotência perante um futuro antecipado como esmagador debaixo das luzes da ribalta, a conciliação entre a vida provinciana com Deborah e Natalie (n. 1979) e o arrojo de Annik, entre o prazer de compor e de escrever, e a entendida função de pedra angular de uma entourage que, sem ele, se desfaria como um castelo de cartas – como, aliás, se veio a provar: Hook, Morris e Sumner, mas também Gretton e Wilson, e por fim a própria Annik. Os Joy Division esfumaram-se numa nuvem de cinzas – tão bem fotografada por Corbijn no teledisco de Atmosphere (1988) como em Control (2007), e com o seu fim terminou para sempre um sub-estilo que não era pré-, pós-, ex-, proto-: pop, rock, punk, gótico, new wave, electrónico, garage, e por aí fora.
Depois da digressão continental nos primeiros meses de Janeiro de 1980, veio o ritmo inexorável do estúdio. Concluiu-se o segundo e último álbum do efémero grupo: Closer. O mais arcano, inexpugnável e transcendentalmente inacessível a não iniciados pela, talvez única, corrente esotérica que nasceu de geração espontânea e cujo grão-mestre morreu no momento em que aquela se erigiu no vento de Macclesfield e se difindiu pelo mundo através das ondas etéreas de uma sonoridade irrepetível.
Entre Closer e outros dispersos surgiu “Komakino”**, talvez levando à letra após uma tradução do alemão “Cinema Coma”, que foi distribuído e de forma gratuita pelas discotecas inglesas para quem o quisesse possuir em cerca de 35 mil cópias em flexi-disc (lembram-se dos singles promocionais que se dobravam como papel), sem capa. Foi em Junho de 1980, a voz cavernosa, gravada nesses milhares circulos de plástico flexível, de Ian Kevin Curtis já se havia calado na madrugada de 18 de Maio de 1980
(no seu gira-discos tinha acabado de rodar The Idiot da Iguana*).
Este é o instante em que emergem os mistérios
Uma estranheza tão difícil de entender
Um momento tão comovente que atinge em cheio o teu coração
A visão que nunca se concretizou
A atracção que lá dentro se sustém como um fardo pesado
Algo que jamais esquecerei

O padrão está definido, a reacção vai iniciar-se
Completa mas tão cedo rejeitada
Antecipando a agonia de cada lágrima
Evoca a vida que conhecêramos
A sombra que se manteve na beira da estrada
Faz-me sempre lembrar de ti

Como poderei encontrar a maneira correcta para controlar
Todos os conflitos interiores, todos os problemas expostos
À medida que surgem as perguntas e as respostas não encaixam
Na minha forma de vida
Na minha forma de vida


Ian Curtis, Komakino, Março de 1980 [versão de AMC, 2008]

Notas:
*Curiosas as presenças do Camaleão (aka David Bowie) e da Iguana (aka Iggy Pop) nos principio e fim de carreira dos JD, respectivamente. Talvez tenha sido uma das razões subconscientes que me fizeram (e me fazem) idolatrar o filme de 1998 do realizador norte-americano Todd Haynes, Velvet Goldmine. Em boa verdade a minha paixão pelos três autores musicais não conhece uma origem distinta; essa perdeu-se pelas brumas difusas das minhas reminiscências pré-adolescentes.

**Na barra direita deste blogue, até me fartar.

sábado, 24 de maio de 2008

Reciprocidade

Dispersos

Quando entrei neste mundo – há quase dois anos e meio –, o
Insónia foi dos primeiros blogues (ou weblogs, como prefere o Henrique) que me abriu as portas à curiosidade.
Vinha referenciado neste curto espaço da literatura. E por lá me fui quedando, desfrutando das manifestações do carácter do seu criador: rebelde, descomprometido, com talento, sem mesuras de confraria literária... honesto e íntegro, acima de tudo. Parabéns, meu caro Henrique.

Obrigado
Sérgio. O “Nunca Mais”, ao contrário da certeza que ostenta, é para mim uma transitoriedade. Sou consistente na minha inconsistência. Irrito-me, amuo, choro, exulto, alegro-me, esboço um sorriso, sou acometido de uma raiva incontrolável…
O meu diletantismo é a reverberação perfeita do meu comportamento errático na blogosfera. Logo, “nunca” é um quase “sempre”. Palavras que, no meu idiolecto, se tocam no radicalismo da sua semântica. Um abraço.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Manas Deal, de volta.


The Breeders - Mountain Battles (4AD)

Elas cantam em alemão, em espanhol e... estão mais serenas e amansadas. Só me aborrece o desperdício pela teimosia da não conjugação de esforços com aquele Gordo embirrento e irascível. E com Santiago e Lovering, claro!

Destaques prematuros (1.ª audição):

We're gonna rise // It's the Love // German Studies

Em degustação...

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Feira do Livro do Porto [actualizado]

UEP


[Uma vontade indómita de boicotar, enquanto leitor: os grupos LeYa e Bertrand – sendo este último associado da APEL –, os editores da UEP e até a editora recentemente adquirida pelo jovem reformado Paulo Teixeira Pinto, a casa da colossal Agustina (autora do Porto, nascida em Vila-Meã em 1922), a Guimarães Editores. Não têm qualquer tipo de representação na 78.ª edição da FLP.]


Saúde-se a Gradiva e a Europa-América pelas suas posturas livres e independentes, pela coragem demonstrada perante o apelo do poderio económico de tendência eminentemente oligarca, em prol dos livros e da Literatura – já pareço o Carvalho da Silva a discursar.

Notas:
  1. Ver aqui a lista possível dos editores e livreiros com expositores na Feira do Livro do Porto, que se inicia hoje, 21 de Maio, às 15:30 no Pavilhão Rosa Mota.

  2. António Lobo Antunes irá estar presente no próximo dia 24, pelas 19:30, no Café Literário para uma sessão de autógrafos, ao arrepio da atitude inqualificável dos responsáveis da editora que publica os seus livros. Oxalá José Luís Peixoto e Gonçalo M. Tavares se conseguissem demarcar, de igual modo, das suas editoras, Bertrand e Caminho (LeYa), respectivamente.

Elo, Entrelinhas & Alucinações [pub]

No próximo dia 23 de Maio, sexta-feira às 21:30, na Livraria Gato Vadio, no Porto, será apresentando o livro Elo, Entrelinhas & Alucinações, do autor mineiro Daniel Ricardo Barbosa.

A apresentação estará a cargo dos responsáveis pela edição transatlântica, Vítor Vicente (
Editora Canto Escuro) e Cristiane Pasquini (Editora O Clássico), e Jorge Velhote.

Livraria Gato Vadio
Rua do rosário, 281
Porto

terça-feira, 20 de maio de 2008

Entre leituras

Talvez o tenha assumido de uma forma implícita, quando no final do mês passado decidi dar a estocada final no blogue que vinha mantendo havia mais de um ano e meio; mas a irregularidade de actualização que me impus com a criação deste libertou-me de uma tarefa que, apesar de estar longe de um imposição exógena emanada de uma autoridade palpável ou de uma endógena, desdobrável e infame entidade subconsciente, que comandasse a minha vida fora dos momentos de lazer – ou na oportunidade de obtenção desses mesmos momentos –, me consumia uma parte considerável do recurso tempo.
Falo, é claro, das notas de prova dos livros publicados durante o ano corrente que iam passando pelos meus olhos, e com isso, acreditem, sem o pretensiosismo de dirigir a leitura dos poucos que me liam – e há, felizmente, instrumentos metabloguísticos que permitem aferir dessa regularidade leitora –, mas mais como uma necessidade de libertar as minhas pulsões literárias através das leituras que ia fazendo: o critério “ano de edição” apenas restringia a incomensurável área sobre que poderia estabelecer as minhas divagações – nunca recensões ou pequenas exegeses de carácter quase científico, a minha formação é outra, bastante diversa da literatura, strictu sensu, e, acima de tudo, as minhas notas poderiam ser entendidas como usurpação do trabalho alheio, aliás bem remunerado, apesar do incondicional amor decretado, quase que excluindo o vil metal da razão de ser da actividade exercida.
Aqui – entenda-se todo espaço físico que, com o meu único objectivo de válvula de escape, ocupo ou ocupei na blogosfera – apenas procurei emitir as minhas notas de leitura: simples opiniões, acopladas de um qualificativo (quantitativo ou numérico-estelar, coadjuvado por uma escala discreta qualitativa: do mau à obra-prima). Curiosamente, valeram-me alguns deslincamentos, a forma mais ignóbil de tratamento do outro na blogosfera, porque mesquinha, pela calada e sem qualquer justificação ou intenção de, pelo menos, prestar uma curta explicação, pública ou privada.
Em suma, toda a verborreia acima materializada, para dizer que com o “Nunca Mais”, acabou a secção classificativa dos livros editados durante o ano, em permanente actualização. Falarei apenas sobre aqueles que me apetecer, obedecendo, única e exclusivamente, e uma vez mais, ao ano de edição, que no presente é o de 2008. No final do ano – se ainda por cá gravitar – divulgarei a lista de preferências.

Dada a extensão do texto anterior, insignificante e estéril, já não me sobra muito espaço – aqui definido paradoxalmente pelo tempo disponível para a escrita – para falar de oito livros editados em 2008 que me acompanharam nos meses de Abril e Maio (por ordem de leitura, sempre entremeados com livros editados em anos anteriores – trata-se de uma regra basilar que imponho à actualização das novidade editoriais):

  • John Updike, Regressa, Coelho (Civilização; Rabbit Redux, 1971);
  • W.G. Sebald, Campo Santo (Teorema; Campo Santo, 2003);
  • Mircea Eliade, Uma Segunda Juventude (Bico de Pena; Le temps d’un centenaire, 1981);
  • Enrique Vila-Matas, Exploradores do Abismo (Teorema; Exploradores del abismo, 2007);
  • Adolfo Caminha, Bom Crioulo (Palimpsesto; 1895);
  • Robert Musil, O homem sem qualidades, Vol’s I e II (Dom Quixote; Der Mann ohne Eigenschaften, 1930-1942);
  • Eduardo Halfon, O anjo literário (Cavalo de Ferro; El ángel literario, 2004);
  • Albert Sánchez Piñol, Pandora no Congo (Teorema; Pandora al Congo, 2005).

O último da lista foi terminado ontem (hoje), às 2:30 da madrugada, e depois de à meia-noite ter ficado estabelecido que apenas o terminaria hoje. Albert Sánchez Piñol escreveu, uma vez mais – depois do soberbo A Pele Fria (ed. port. Teorema, 2006; La pell freda, 2002) – um livro (o seu segundo) excepcional. Este antropólogo barcelonês de 43 anos é um caso de sucesso e de eminência literárias em Espanha – qualificativos que ultimamente costumam ser mutuamente exclusivos. A sua prosa, mesmo para quem – como eu – não é especial adepto de livros de aventuras, é enleante, segura, audaz e arrebatadora (ler as curtas linhas que escrevi no extinto Porque sobre um dos melhores romances, senão mesmo o melhor, editados em Portugal no ano de 2006, A Pele Fria).

Mas sobre Pandora no Congo, O homem sem qualidades, Uma segunda juventude, O Anjo literário e talvez Os Exploradores do Abismo, tentarei falar em conjunto ou em separado nos próximos textos deste blogue.

Tempo e pachorra.

Por agora, enquanto leio Hölderlin e Michaux, ando a esquadrinhar Possessão, obra-prima da autora inglesa A.S. Byatt (n. 1936) – felizmente, sem haver sofrido a possível contaminação do filme de 2002 de Neil LaBute, com Gwyneth Paltrow e Aaron Eckhart –, editado pela primeira vez entre nós pela ainda púbere, porém já de uma qualidade superior ao lixo dos conglomerados, editora Sextante, que mereceu estas linhas lacónicas na última edição da revista Ler: «Empreendimento no mínimo volumoso, acaba de sair Possessão. Uma História de Amor, Booker Prize de 1990 (edição Sextante) – com tradução de António Pescada.» (pág. 15)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Homoerotismo atrasado

No passado dia 17 de Maio (sábado), celebrou-se o Dia Internacional contra a Homofobia.
Confesso que sofro de alguma fobia por dias internacionais, mundiais, nacionais ou regionais, embora ela resulte da vertente carnavalesca ou pedinchona dos eventos. Compreendo, no entanto, a necessidade da sua calendarização e posterior celebração, como um grito de alerta perante a passividade de um quotidiano de luta pela sobrevivência, que não deixa espaço à reflexão. Para problemas bastam os nossos, mas será que muitos desses, que são nossos, não resultam directa ou indirectamente do motivo que levou à criação desse determinado dia da memória?
A homofobia é um acto de violência puro e simples contra o direito à diferença, muitas vezes silenciosamente perverso, cobarde e mesquinho, cujos mais celerados propagadores e partidários da coarctação dessa liberdade se fundamenta em critérios tão intelectualmente medíocres como o da simples poluição visual, e esse costuma ser o grotesco, ignóbil, grande salto para a defesa da segregação, que outrora levou ao extermínio de milhões de inocentes.
Em suma, o penoso egoísmo ocidental não nos permite identificar como nosso o sofrimento dos outros; porém ele difunde-se inexoravelmente pelo globalizado canal social à comunidade em que nos inserimos. Infecta-a, com diferentes cargas de virulência, corrompe-a, distorce a escala de valores, onde o efeito é entendido como causa, onde o manso cordeirirnho digere o lobo até ao tutano em tranquilo repasto. E é essa a inversão – uso propositado da palavra: o motor de todos os conflitos.
Assim, porque não um pouco de homoerotismo literário para excitar, em sentido lato, a comunidade blogosférica?
Trata-se da primeira parte de um conto publicado na Granta n.º 100 pelo escritor inglês (sósia, insisto, do nosso
FJV), vencedor do Booker Prize em 2004 por A Linha da Beleza (The Line of Beauty, 2004), Alan Hollinghurst (n.1954) – os homofóbicos encapotados ficarão, decerto, com água na boca.

Atracções Turísticas
1. Eles estavam em Gatwick, Colin e Archie, à espera do check-in, enquanto Colin se ia recusando a reflectir se isto teria sido uma boa ideia. Archie já estava conversar com o jovem italiano que se encontrava à sua frente na fila, que tinha o novo modelo de iPod que ele pretendia. Colin ajoelhou-se para tirar da sua mala o seu exemplar de I promessi sposi, de que continuava a servir-se para expandir os seus domínios no italiano. Ele não estava nada satisfeito por haver descoberto que Archie também sabia falar italiano, embora o fizesse apenas no presente verbal; ele não o queria ver a escapulir-se por Roma toda a falar italiano. Naquele momento, Archie enviava o seu número de telefone ao rapaz italiano, perguntando-lhe algo sobre uma discoteca. Oh, meu Deus, pensou Colin. Certamente não vamos a Roma pelas discotecas. Embora, uma pequena parte dele próprio pensasse que até poderia ser algo excitante regressar tendo ido, pelo menos, a uma.

Colin Cardew tinha cinquenta e dois anos e trabalhou para a Latimer, os editores dos famosos guias culturais. Ele vivia sozinho e bebia um pouco de mais, e as pessoas que o ficavam a conhecer nos encontros literários julgavam-no mais velho e entediante do que o era na realidade. Ele tinha estado em Roma há vinte anos, com um amigo que mais tarde viria a morrer, e desde então, um sentimento de desânimo e de perda afastaram-no do lugar. Ao Archie nada foi contado sobre isto e, de certa forma, a sua ignorância era a beleza do plano. Ele pedira-lhe para lá ir, para que lhe pudesse ser mostrada alguma coisa de diferente. Colin fitou discretamente a sua pequena, bem moldada, os, bem na moda, centímetros de roupa interior branca acima dos seus jeans de cintura descaída. Desde Maio passado, deixara de haver sexo, ou qualquer coisa que se lhe pudesse aproximar. Archie esquivar-se-ia ou diria, “Deus do céu, estou cheio de fome!” e depois teriam ido à trattoria mais próxima. Ele fizera dele próprio, de uma forma tocante porém ao mesmo tempo frustrante, apenas um amigo: Colin pagou na mesma, mas pelo jantar e não por cinquenta minutos na cama. Pois bem, ele sabia que estas coisas não se dão por adquiridas, mas sentiu com alguma certeza que com um fim-de-semana livre em Roma o seu companheiro aceitara qualquer coisa mais.

No avião, Archie insistiu em ficar junto à coxia, garantindo possuir uma tendência para a claustrofobia. Assim que todos haviam apertado os cintos de segurança e as portas se encontravam fechadas, o primeiro comissário anunciou um atraso de oito minutos. Archie demonstrou uma grande tolerância durante o primeiro minuto e meio, mas depois disse, “Eu sabia que deveríamos ter viajado na BA.”

Colin releu várias vezes o mesmo parágrafo de I promessi sposi, picado pela crítica às suas providências de viagem, e incapaz de vislumbrar porque é que aquela estaria menos sujeita a atrasos na pista que a Alitalia. Bom, era um lembrete útil: aquele Archie, apesar de gostar de ser pago para, não gostava de ser planeado para. Ele podia ficar abespinhado se não estivesse ao comando na elaboração dos planos, e os agrados e as surpresas nem sempre corriam bem com ele. Por vezes, se ele não estivesse a par de um determinado plano, ele tomava-o para si e mudava-o, para que, ao invés, se transformasse numa surpresa para Colin.

Colin disse, “Bem, pelo menos podes começar a habituar-te ao espírito italiano”, e entregou-lhe o Latimer Cultural Guide to Rome. Archie disse, “O.K.…” com o cenho franzido, e depois riu-se e encostou a sua cabeça ao ombro de Colin num gesto de confiança e de afecto, que tinha tanto de acriançado como de enamorado. “Eu só quero chegar a Itália,” disse ele.

“Eu sei”, disse Colin, subitamente animado. “Também eu.”

“Tenho muita sorte em te ter para ma mostrares.”

“Sim, tens”, disse Colin; e depois, pensado que seria a melhor altura para a sua primeira lição, “Então, quem são os dois grandes arquitectos da Roma barroca?”

Archie afastou-se e inclinou-se para espreitar para a coxia para um comissário de bordo que se afastava.

“Não respondeste à minha pergunta”, disse Colin

“Hum…” Archie riu ligeiramente e mexeu os olhos de um lado para o outro imitando reflexão. “Sim… agora… quem são eles?” disse ele.

“Bom, eles são muito fáceis de memorizar. Há o Bernini e há o Borromini: os dois B’s.”

“Oh!... claro. Então é Bernini – e… qual era ao outro?”

“Borromini.”

Bernini”, disse Archie. “E Borromini.”

“E há ainda um terceiro, chamado Pietro da Cortona, mas eu não vou chatear-te com ele até lá chegarmos e podermos visitar uma igreja dele.”

Não era claro que Archie houvesse imaginado que na realidade iriam visitar igrejas. “O.K…” disse ele; e depois, “Não, os dois B’s são provavelmente suficientes para o meu pequeno cérebro.”

“Eu imaginei”, disse Colin.

“Olha para os bíceps deste tipo”, disse Archie, enquanto o comissário de bordo, colossal com a sua camisa de manga curta, deambulava pela coxia.
À sua passagem Archie sorriu-lhe, e recebeu em troca um dissimulado franzir de sobrancelha.

“Irás ver melhores exemplos disso em Roma”, disse Colin de forma entusiástica, reabrindo I promessi sposi, lendo o parágrafo que lhe era vagamente familiar pela quarta vez.
[...]

Alan Hollinghurst, “Highlights”, Granta, n. 100, Winter 2007 [trafução do inglês: AMC, 2008]

sábado, 17 de maio de 2008

Não podem consentir

Por Hélder Pacheco

[Nota prévia: por razões de comodidade de leitura num blogue, procedeu-se a algumas alterações na forma de apresentação deste texto do eminente escritor, cronista e ensaísta português, licenciado em Belas-Artes. Todos os destaques são de minha autoria.]

No Grande Auditório do Soviete Supremo do Nacional-Centralismo, reuniu a respectiva assembleia-geral para análise, discussão e propostas relativas aos pontos únicos da agenda «Pode o Império Centralista continuar a consentir que o F. C. Porto ganhe campeonatos? Pode o Império consentir que uma equipa da província, sem representatividade nacional, mantenha a supremacia sobre as glórias do centralismo?»

A tais questões, pronunciaram-se os seguintes representantes dos Organismos Tutelares do Centralismo:
– da Confraria dos Centralistas Devoristas, que advertiu;
– da Confraria Centralista dos Gestores 7+ (acima dos 7 empregos), que berrou;
– da Confraria Centralista dos Gestores 7/5 (entre 7 e 5 empregos), que uivou;
– da Confraria Intelectual Centralista, que bolsou;
– da Confraria dos Assessores Centralistas, que gritou;
– da Confraria de Legisladores Centralistas, que decretou;
– da Confraria dos Grandes Incompetentes Centralistas, que dejectou;
– da Confraria dos Médios Incompetentes Centralistas, que arengou;
– da Confraria dos Provincianos Convertidos ao Centralismo, que grunhiu;
– da Confraria dos Centralistas subvencionados pelo Estado, que cuspiu;
– da Confraria dos Centralistas nomeados por proximidade do sistema, que ganiu;
– da Confraria dos Centralistas infiltrados nos Meios de Comunicação, que ladrou;
– da Corporação dos Centralistas Avençados, que exortou;
– da Corporação dos Centralistas Disfarçados, que invectivou;
– da Confraria Centralista da vista grossa à Insegurança no país, que programou;
– da Confraria dos Consultores Centralistas, que bradou;
– da Corporação Centralista de Comentadores de TV, que expeliu;
– da Corporação Centralista dos Acumuladores de Subsídios, que ejaculou;
– da Corporação Centralista promotora do abastardamento da Língua Portuguesa, que perdigotou;
– da Corporação Centralista do Cosmopolitismo Importado, que mesurou;
– da Corporação do Proteccionismo Centralista, que rezingou;
– da Corporação Centralista dos Exterminadores de Serviços Regionais, que peidorreou;
– da Corporação dos Yes-Men and Job for the Boys Centralization System, que arrotou;
– da Corporação dos reality-shows Centralistas, que discorreu;
– da Corporação dos Esbanjadores Centralistas, que vituperou;
– da Corporação Centralista dos Saudosos da Censura Prévia, que baliu;
– da Corporação Centralista dos Grupos de Trabalho, que praguejou;
e todos em uníssono votaram: «Não podemos consentir!» e «É ultrajante!».

Face à unanimidade, a Assembleia aprovou as seguintes conclusões:
1.º - Uma cidade a que o centralismo retirou quase tudo: emprego qualificado, sedes de empresas, serviços, investimento público, etc., não pode manter um clube que ganha campeonatos consecutivamente;
2.º -A única coisa que o centralismo ainda não conseguiu extorquir ao Porto são os campeonatos;
3.º - Como os clubes centralistas não ganham no campo, é preciso fazê-los ganhar em jogos fora do campo.

Para isso, serão adoptadas medidas imediatas:
a) lançar uma OPA sobre o F.C. Porto, transferindo-o para a capital;
b) aumentar o IVA do F. C. P., em 80% e os impostos em 90%, para o fazer ir à falência;
c) depois do dourado, lançar apitos prateados, verdes, laranjas, vermelhos e até PINK - cor favorita dos centralistas - para descredibilizar o F. C. P.;
d) formar um consórcio editorial para publicar exclusivamente livros de autores de nomeada - designadamente mortos ou moribundos - contra o F. C. P.;
e) classificando-o como local altamente perigoso para o centralismo, expropriar o Estádio do Dragão por razões de Estado;
f) fazer aumentar a taxa de desemprego da Área Metropolitana do Porto para níveis que obriguem à emigração dos adeptos do F. C. P. para trabalhar na Galiza;
g) legislar no sentido de impedir os menores de 90 anos de assistirem aos jogos do F. C. P.;
h) em caso de insucesso destas medidas, determinar que, no início dos campeonatos, os clubes do centralismo partam com 20 pontos de avanço.

Mal esta notícia chegou à cidade, na Vitória, na Sé, em Campanhã, em Lordelo, no Aleixo, no Cerco do Porto, no Monte Crasto, no Monte da Virgem, nas Cachinas, em Rio Tinto, na Feira, em Avintes, Custóias, Valongo e por aí fora, em toda a parte onde há dragões, milhares de bandeiras azuis se agitaram. E, enquanto os mais velhos cantavam a Maria da Fonte «Pela santa liberdade / Triunfar ou perecer», todos faziam o gesto do zé-povinho na direcção do antigo Sul (agora mudado pelos centralistas para West Coast) e os jovens portistas cantavam: «Esta vida de dragão / Só dá campeão! Tra-lará-lará - lará, lará-lará.»

In Jornal de Notícias, 1 de Maio de 2008.

Portugal Traduzido [pub]

As Edições Cosmos apresentam livro de John Wolf, Portugal Traduzido, com duas sessões de apresentação, ambas em Lisboa:
- dia 26 de Maio pelas 18:30 na FNAC do Chiado, com apresentação da obra pelo Prof. Aurélio Lopes;
- dia 27 de Maio, pelas 18:30 na FNAC do Colombo, com apresentação da obra por Fernanda de Freitas (RTP2, apresentadora do programa Sociedade Civil).

«Portugal Traduzido é uma radiografia económica, sociológica, psicológica e política do País. John Wolf, alia à sua visão fria de estrangeiro residente há mais de duas décadas uma percepção fina da estrutura e funcionamento da sociedade Portuguesa. Este livro torna-se assim uma leitura obrigatória para aqueles que querem contribuir para mudar Portugal.»
António Câmara, Fundador da Ydreams

[fim de pub.]

Nota editorial:
Para quando uma apresentação no Porto, ou noutro local fora da macro-região LVT?
A linha editorial – oh, que pomposo – definida para os meus blogues, inclui um espaço reservado à divulgação de obras literárias e aos eventos a ela associados, extrapolando para a difusão de todo e qualquer produto ou forma de expressão artística: “se a divulgação for apenas realizada na Capital do Império, sorvedouro de todos os recursos deste mísero país, até dos culturais – estes, por definição, para sua própria saúde ou independência, deverão incluir um certo grau de desobediência intelectual relativamente às fontes de poder (político e económico) como forma de expressão plena da liberdade artística do autor –, não serão objecto de divulgação neste blogue.
Serve a presente divulgação para estabelecer, de novo, o ponto de ordem para publicitações futuras.
Finalmente, resta-me desejar os maiores sucessos para os editor e autor da obra supramencionada.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Chamada de atenção

O texto publicado no passado dia 12 neste blogue, intitulado “Desgraça”, foi actualizado e devidamente corrigido de um erro de substância.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Ol' Blue Eyes (Tributo II)

Frank Sinatra - "My Funny Valentine"
(Richard Rodgers & Lorenz Hart)


(Capitol Records: Songs for Young Lovers, 1954)



My funny valentine, sweet comic valentine
You make me smile with my heart
Your looks are laughable, unphotographable
Yet you're my favourite work of art

Is your figure less than greek?
Is your mouth a little weak?
When you open it to speak
Are you smart?

But don't change a hair for me
Not if you care for me
Stay little valentine, stay!
Each day is valentines day.

Is your figure less than greek?
Is your mouth a little weak?
When you open it to speak
Are you smart?

But don't change a hair for me
Not if you care for me
Stay little valentine, stay!
Each day is valentines day

10 Anos (Ol' Blue Eyes)

A 14 de Maio de 1998, morria em Hollywood, Califórnia, o rapaz proveniente da comunidade italiana da "outra margem do Hudson", a modesta e trabalhadora cidade de Hoboken, Nova Jérsia. Eis o melhor de sempre, The Chairman of the Board:

Francis Albert Sinatra
(1915-1998)




Aqui com Ol' Man River (Kern/Hammerstein/Robeson), onde A Voz revela toda a sua etérea plenitude, com arranjo e direcção de orquestra de Nelson Riddle.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Desgraça [actualização e correcção]

Tristeza. Desgraça. (Para quem tem filhos pequenos, ou já netos, ou acabou há pouco tempo de sair da mirabolante fase da pubescência, sabe a que me refiro).
O grupo Cofina (que se auto-elogiam por XL), sempre generoso com os seus leitores, especialmente na antecipação noticiosa às partes dos processos nas decisões disciplinares emanadas pelo Conselho de Disciplina da Liga de Clubes – o novo pavão, talvez XL, das lides jurídicas assim o vai permitindo com a sua voz de falsete – ou nos despachos de determinados magistrados do Ministério Público – aliás, apenas materializam as incasáveis palavras de Sócrates e dos seus pares, quando se referem à necessidade do estabelecimento de parcerias público-privadas –, desta feita renovou o oferecimento de livros (numa série de oito, por apenas mais 1 euro) todas a quintas-feiras, numa parceria (ao analisar os títulos, chega-se facilmente aos detentores dos direitos de publicação) com as editoras LeYa (7 obras) e Bertrand (1 obra) [ver nota 2 da adenda], curiosamente unidas por comunicados lacónicos onde confirmam a sua ausência da Feira do Livro do Porto. E que tal um boicote aos seus produtos...
No encarte que acompanhou o primeiro livro – que não comprei, e sim, este sim seria oferecido, apesar do pagamento de quase 3 euros por uma revista sem conteúdo aproveitável, e se juntarmos a esta eminência das revistas semanais a autora do livro ofertado, Laura Esquivel, a Ana, Mais Atrevida aproximou-se a passos largos, sem o querer, da qualidade da revista britânica The Economist ou similares –, que uma amável funcionária de uma tabacaria me deixou trazer, vem o alinhamento datado das obras a acompanhar a dita revista: Esquivel, Colleen McCullough, Philip Roth, Gabriel García Márquez, Nadine Gordimer, Paul Auster, Joseph Coetzee e Mário [sic] Vargas Llosa.
Joseph Coetzee? Quem é? Será aparentado com o John Maxwell, o escritor sul-africano, Nobel da Literatura em 2003? Pai, irmão, filho? Avô, bisavô, neto ou bisneto? Mas John Maxwell nasceu em Fevereiro de 1940, tem 68 anos…

Pois claro, foi erro tipográfico. Onde se lê “Joseph” deveria figurar “J.M.”. Aliás, pela similitude, constata-se facilmente que se tratou de um pequeno lapso. Ignorância? Falta de zelo? Jamais (na acepção liniana). Já agora poderiam acrescentar a estas oito obras, uma de J.M. Conrad (ora, para aí... o excepcional Nostromo, porque foi em tempos publicado por uma empresa da LeYa).

Desgraça (Disgrace, 1999), é o título de John Maxwell que sairá a 19 de Junho próximo na dita cuja revista – segunda obra do autor a ser galardoada com o Booker Prize e que neste momento se encontra na lista final, à disposição dos internautas, para a eleição do Booker dos Bookers, na celebração dos 40 anos de existência do mais famoso prémio a galardoar uma obra de ficção original, escrita em língua inglesa, proveniente do Reino Unido, da Irlanda ou dos restantes países da Commonwealth.

Eis a listagem completa:

  • Pat Barker, The Ghost Road, 1995;
  • Peter Carey, Oscar e Lucinda (Oscar and Lucinda, 1988);
  • J.M. Coetzee, Desgraça (Disgrace, 1999);
  • J.G. Farrell, The Siege of Krishnapur, 1973;
  • Nadine Gordimer, O Conservador (The Conservationist, 1974);
  • Salman Rushdie, Os Filhos da Meia-Noite (Midnight's Children, 1981)*.

*Vencedor do Booker dos Bookers na comemoração dos 25 anos de entrega do prémio.

Adenda [18:43, 15/05/2008]

  1. Actualização – na edição desta semana da revista do grupo Cofina, a Sábado, o “Joseph Coetzee” deu lugar a “John Coetzee”. Digamos que se tratou de uma tentativa de emendar a mão sem dar o braço a torcer, transmitindo de novo a ideia de que se tratou de um erro tipográfico. Mal, muito mal. Quando se erra e se adquire a plena consciência desse erro a melhor forma de o emendar é a assunção sem subterfúgios do seu cometimento. Ora, que eu saiba, o Nobel da Literatura sul-africano assina sempre os seus trabalhos como J.M. Coetzee, onde se inclui o romance publicitado, Desgraça (Disgrace, 1999), correspondendo as primeiras iniciais aos seus dois primeiros nomes John Maxwell.
  2. Correcção – Ao contrário do que aqui havia referido, as 8 obras “ofertadas” pela benemérita Cofina, pertencem todas ao grupo editorial LeYa. Assim, no caso da obra da escritora australiana Colleen McCullough, Pássaros Feridos (The Thorn Birds, 1977), apesar de circular uma versão da mesma obra sob a chancela da Difel com direitos de publicação partilhados com a Bertrand, neste momento é a Asa II (pertencente ao grupo LeYa) a detentora dos direitos. Corrigido o erro, não invalida o considerando posterior sobre o virar de costas de ambos os grupos editoriais (LeYa e Bertrand) para a cidade do Porto, pelas anunciadas ausências da edição deste ano da Feira do Livro, que irá decorrer entre 21 de Maio e 10 de Junho no Pavilhão Rosa Mota.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Prova de Vida

Kazuo IshiguroAfinal o prodigioso criador de Despojos do Dia (The Remains of the Day, 1989; Booker Prize), Quando Éramos Órfãos (When We Were Orphans, 2000; finalista do Booker Prize) e de Nunca Me Deixes (Never Let Me Go, 2005; finalista do Booker Prize) e de mais três romances anteriores aos mencionados, nascido em 1954 em Nagasáqui no Japão, residente em Inglaterra desde 1960, de seu nome Kazuo Ishiguro deu sinais de vida, ao ser o protagonista número 196 das célebres entrevistas The Art of Fiction publicadas na revista literária The Paris Review* (n.º 184, Spring 2008).
De qualquer modo, apesar deste ligeiro protesto em tom de exultação na qualidade de admirador da obra, é bom que se diga em prol do rigor, que Ishiguro nunca foi um escritor prolífico. Desde 1982 com a publicação do seu primeiro romance As Colinas de Nagasáqui (A Pale View of Hills) apenas se lhe sucederam mais cinco até ao ano de 2005 (o último, Nunca Me Deixes), o que perfaz um período médio “entre publicações” de 4 anos, 7 meses e 6 dias. Assim, fazendo fé nos dados obtidos pela estatística descritiva, haverá novo romance lá para o final de 2009, início de 2010 – e isto, se as derivas de argumentista para o grande ecrã não atrasarem ainda mais a publicação de nova obra de ficção…
Da entrevista, a edição da Paris Review dá destaque a um excerto:

«Nunca senti que dispusesse de um talento particular para escrever uma prosa apelativa. Eu escrevo prosa quase mundana. Julgo que sou bom entre os rascunhos. Posso olhar para um rascunho e dispor de um sem-número de boas ideias para o que irei fazer com o próximo.» [tradução livre: AMC]


Há quem diga que a humildade é a pior forma de manifestação de orgulho. Sinceramente, não creio ser esse o caso, embora essa quase certeza não se baseie num conhecimento rigoroso, no espaço e no tempo, do grau de auto-estima do escritor anglo-nipónico, que até pode dar a ler os seus manuscritos ao canalizador Fortunato (peço desculpa, pela transição abrupta para outra dimensão da divagação literária; ou cinematográfica?) antes de os entregar ao seu editor. Admiro a simplicidade da sua prosa: Ishiguro tem o dom raro de expor as grandes ideias da sua obra através de um estilo de narrativa não artificioso, cuja desafectação linguística é a sua principal característica (entenda-se, por exemplo, em nada circunloquial, contemplativa, devaneante e exageradamente descritiva), sem jamais abdicar de algum esteticismo ou cair num minimalismo grosseiro, ou até numa leveza de linguagem de romance de venda directa, com promoção, em supermercado – convém recordar que Ishiguro teve em Angela Carter (1940-1992) a sua mentora e principal guia literária, assim como em Malcolm Bradbury (1932-2000) o mestre de iniciação aos estudos pós-graduados em Literatura na Universidade de East Anglia.

Notas:
* A série de entrevistas The Art of Fiction (adiante, por mera comodidade, designada pela sigla taof) iniciou-se com a fundação da revista em 1953, cabendo o privilégio inaugural, na qualidade de entrevistado a E.M. Forster (taof n.º 1), seguindo-se o autor francês, Nobel da Literatura em 1952, François Mauriac (taof n.º 2, Summer 1953) e o britânico Graham Greene (taof n.º 3, Autumn 1953). José Saramago foi o único português que teve honras de entrevista no referido periódico (taof n.º 155, n.º 149, Winter 1998), no ano em que venceu o Nobel da Literatura.
** Se houver uma alma caridosa que, na sua qualidade de assinante da dita revista, possua a versão integral digitalizada da entrevista… o meu endereço de e-mail está mesmo ali ao lado, no meu perfil – as bases de dados não a dispõem em texto completo desde o ano 2000.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

As Últimas

Samuel BeckettA American Book Review, tal como havia procedido há cerca de dois anos com a publicação das 100 melhores frases de abertura de romances, resolveu lançar mais um desafio, que, desta feita, culminou com a publicação no seu volume 29, n.º 2 do primeiro bimestre de 2008, após idêntico processo de escrutínio, The 100 Best Last Lines from Novels[ficheiro PDF, 225 Kb], ou seja, as 100 melhores frases de encerramento em romances.
Na altura da primeira listagem – a das frases de abertura – lancei aqui na blogosfera, utilizando para o efeito o meu antigo blogue residual Data, o desafio aos restantes companheiros de diferentes blogues que revelassem as frases de abertura – alargando o espectro para o formato conto ou novela, e até ensaio – que lhes havia ficado na retina para, desta forma, construirmos uma lista paralela em que o domínio anglo-saxónico da listagem original se esbatesse.
O desafio teve tanto de agradável como de trabalhoso, cuja recompensa maior esteve na colaboração de cerca de 22 bloggers que com as frases por mim seleccionadas se chegou a um
total de 47 (número primo)… porém, o filme, ou melhor o enredo repetiu-se, deixei a blogosfera, e o empreendimento ficou a meio – neste momento dado por definitivamente encerrado. Surgiram frases de obras de Machado de Assis, Juan Rulfo, Eduardo Mendonza, Thomas Bernhard, Eça de Queiroz, Sandor Márai, Francisco José Viegas, Guillermo Cabrera Infante, Peter Handke, Mário de Carvalho, e por aí fora.
Por outro lado, a colaboração blogosférica estendeu-se à própria lista da ABR, que esforçadamente se materializou em encontrar a tradução oficial portuguesa para as 100 frases originais em língua inglesa. Até nesse campo a reciprocidade foi proveitosa. Muitos foram os que recorrendo às suas bibliotecas, arriscaram a própria vida ao abrir os livros que, decerto, há muito já se encontravam sós perante a força da deterioração dos elementos, a apelar ao surgimento de algumas alergias fora de época: mais de metade das frases da lista inicial encontrou a devida correspondência com a nossa língua, e a grande parte delas que ficou por traduzir nada teve que ver com uma eventual falta de diligência, ficou, isso sim, a dever-se à sua não publicação no nosso inqualificável mercado editorial, decidindo-se não enveredar por uma tradução livre das mesmas. Assim, das dez primeiras apenas ficaram de fora as frases de abertura de Gravity’s Rainbow de Thomas Pynchon (frase 3.ª classificada) – obra que incompreensivelmente subsiste sem uma única edição portuguesa em 35 anos, apesar de existir a versão em português do Brasil da Cia. das Letras (O Arco-Íris da Gravidade, ed. 1998) – e James Joyce com a sua xaropada intraduzível em Finnegans Wake (7.ª classificada) – que me perdoem os joycianos ou aqueles que vislumbram nesta obra o apogeu do experimentalismo linguístico-literário.

Pela experiência do fatigante empreendimento metablogoliterário anterior, desta vez apenas irei deixar ficar a ligação para a lista completa e, porque não?, as três primeiras “últimas frases” (ou frases de encerramento) classificadas e devidamente traduzidas (tradução oficial).
Ao invés da listagem das 100 frases de abertura, a 1.ª classificada das melhores 100 frases de encerramento é daquelas que tenho a certeza de que quem leu a obra jamais deixou fugir da memória. Trata-se do remate do labiríntico O Inominável (L’Innomable, 1953), o terceiro livro da trilogia francesa do autor irlandês – pertencente ao meu Olimpo literário – Samuel Beckett, que se iniciou com Molloy (1951) e Malone está a morrer (Malone meurt, 1951). A 3.ª classificada pertence ao final angustiante de um dos livros da minha vida, cujo autor também convive, a empanturrar-se de ambrósia, no mesmo local com o atrás mencionado, Francis Scott Fitzgerald:

1. …you must go on, I can’t go on, I’ll go on.
«…tenho de continuar, não posso continuar, vou continuar.»
Samuel Beckett, O Inominável

(Lisboa: Assírio & Alvim, Março de 2002, pág. 189; tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo; obra original: L’Innomable, 1953; obra traduzida citada em inglês: The Unnamable; trans. Samuel Beckett).


2. Who knows but that, on the lower frequencies, I speak for you?
«Quem sabe se, nas frequências mais baixas, não falo também por vós?»
Ralph Ellison, Homem Invisível

(Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Fevereiro de 2006, pág. 466; tradução de Salvato Telles de Menezes e Rui Andrade; obra original: Invisible Man, 1952).


3. So we beat on, boats against the current, borne back ceaselessly into the past.
«Assim vamos teimando, proas contra a corrente, incessantemente cortando as águas, a caminho do passado.»
F. Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby

(Lisboa: Presença, 5.ª edição, Julho de 1997, pág. 202; tradução de José Rodrigues Miguéis; obra original: The Great Gatsby, 1925).


Antevisão do entretenimento que se segue e com hipótese imediata de aplicação: dentro de dois anos a American Book Review irá lançar a terceira iniciativa paraliterária do género, sob o título “100 Best Mid-Book Lines from Novels”. Neste caso, os autores e críticos literários convidados terão de proceder a um pequeno cálculo matemático antes de estabelecer o arrolamento de frases potencialmente candidatas às 100 melhores.

Um pequeno exemplo, com recurso ao único livro que neste momento estou a ler (e quase a acabar, anda Agathe pela montanha...):

  • Obra: O homem sem qualidades;
  • Autor: Robert Musil;
  • N.º de páginas: 843 (volume I) + 451 (volume II) – total de páginas (T): 1294;
  • Meio do livro (M): página 647 – encontrar a primeira frase inteira e transcrevê-la:
    «O rapaz levantou-se com cuidado e retirou com dificuldade uma grande flor de dentro do casaco.» (Dom Quixote, 1.ª edição, Mar/2008; trad. João Barrento).

Óbices (eventuais):

  • Se o número total de páginas for ímpar, ignorar as casas decimais do quociente (arredondar à unidade por defeito, ou seja, se T=1295; M=647,5; logo M1=647, seria a mesma frase neste caso);
  • Se a página encontrada estiver em branco, saltar para a primeira página que se segue com texto, claro;
  • Se se tratar de um livro de Sebald, Saramago ou, por exemplo, uma obra do escritor austríaco Thomas Bernhard, aconselha-se o uso do bom senso na escolha da frase que figurará entre vírgulas…

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Cleo Birdwell*

Se me pedissem, em tom de desafio, para descobrir a que revista internacional o bilingue Rogério Casanova* pertence ou pertenceu – nem que tivesse sido apenas por uma semana (claro está, na de 20 de Abril deste ano) – ao respectivo conselho editorial, a minha resposta seria óbvia, A Cebola:



*pseudónimos.

sábado, 3 de maio de 2008

Quac

No dia 23 de Abril do mesmo ano (embora por calendários diferentes, separados por 10 dias), 1616, morriam William Shakespeare e Miguel de Cervantes, em Stratford-upon-Avon e Madrid, respectivamente, data aproveitada pela UNESCO em 1995 para dar início à celebração do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor.
Este ano, por terras lusas, saía para as bancas o primeiro número da renovada revista Ler (edição n.º 69 desde a sua inauguração), de novo dirigida por Francisco José Viegas e agora com periodicidade mensal.
Na capa, para além do principal destaque dado a uma entrevista dada por António Lobo Antunes a Carlos Vaz Marques – este último, é, no meu entender, de longe e desde há muito, o melhor entrevistador português da actualidade sobre assuntos da ciência e da cultura –, dá-se especial relevo a um artigo, em jeito de lista, que no meu caso, um listómano assumido, sobressalta da mesma forma como a heroína sobressaltava W.S. Burroughs – oferecesse a Ler uns gramas… –, sob o título de “Os 50 autores mais influentes no século XX” [pp. 48-59]. Na página 48 surge o subtítulo “e o que aprendemos ou devíamos ter aprendido com eles”, assinado pelo jornalista José Mário Silva. Sobre a dita lista e sem um texto introdutório de elucidação sobre os critérios (artísticos, estéticos, técnicos, comerciais e/ou sociológicos) que conferiam a elegibilidade dos autores como um bloco, muito poderia ter sido dito – as anotações apensas a cada nome, por mais extensas ou desenvolvidas que sejam, enfermam sempre dessa necessária visão global. E, neste caso, a posição mais cómoda é a do crítico, que desde logo poderia destacar um conjunto de nomes que foram esquecidos e outros que incompreensivelmente figuram no referido arrolamento.
Mesmo o critério temporal, o único verdadeiramente explícito, parece haver sido derrogado quando se inclui o questionabilíssimo Emilio Salgari (1862-1911) e se deixa de fora o Mestre Henry James (1943-1916), com um bom punhado de romances, novelas e contos escritos e publicados já no século XX; situação que se agrava com a não inclusão de um dos melhores poetas de todos os tempos, Nobel da Literatura em 1923, W.B. Yeats (1865-1939). Dos vivos a inclusão de Rushdie (n. 1947) e principalmente de Salinger (n. 1919) – que para além de À Espera no Centeio (ou Agulha no Palheiro; The Catcher in the Rye, 1951), andou apenas à volta dos hinduísmos e dos jovens místicos e assaz aborrecedores Glass e depois desapareceu – é mais do que discutível, quando se deixa de fora Pynchon (n. 1937), Roth (n. 1933), DeLillo (n. 1936), McCarthy (n. 1933) ou Updike (n. 1932), conjuntamente com o mais imperdoável esquecimento (ou não, desconheço o critério), o do inigualável Saul Bellow (1915-2005), Nobel da Literatura em 1976; ou até de Capote (1924-1984) ou Mailer (1923-2007), que, em estilos diametralmente opostos, revolucionaram as letras norte-americanas com os habituais efeitos de contagio para o universo das diferentes literaturas.

Muito poderia ser ainda dito sobre a referida listagem, como a inclusão de Barbara Cartland e de J.K. Rowling, e a não inclusão de nomes como Chesterton, Gide, Malraux ou Blanchot. Todavia, arriscando-me a proferir um lugar-comum, tudo isso é discutível e de sobremaneira relativo. Jamais se poderá fazer uma lista desta estirpe com alguma objectividade, entenda-se com o toque de mágica de agradar a todos. Gosto de lá ver Umberto Eco – como gostaria de ver incluído pelo menos um dos beatniks, porque não Kerouac? –, mas intuo que uma esmagadora maioria dos leitores acha a sua inclusão mais do que discutível.

Finalmente, a propósito deste artigo, li
um texto divertidíssimo do Alexandre Andrade, em que confessa que, ainda nesta Primavera, irá tatuar na sua omoplata direita a labiríntica e claustrofóbica inscrição perecquiana “11, rue Simon-Crubellier”José Luís Peixoto tem tatuado num dos braços “Yoknapatawpha” o condado imaginário que aparece na maioria dos romances (rústicos ou de folclore regional como lhes chamava Nabokov) de William Faulkner. Pois, eu, meu caro Alexandre ponho-me a nu, e revelo aqui e agora, com prova documental, que a pele que cobre este arcaboiço, que se foi agigantando, desde o escultural até levemente (que ironia) aceitável para a vista, desde o fatídico dia para qualquer homem... (adiante) dispõe de 3 (três) tatuagens Por amor a Borgespor Borges (nas costas), Por amor a Nabokovpor Nabokov (no braço esquerdo e que enorme heresia para um quase quase russo branco, mas o direito já tinha o indispensável “amor de mãe”) e uma terceira num local inconfessável, tal como a daquele bombeiro voluntário bem abonado dos chistes ordinários, residente na freguesia de Valbom, concelho de Gondomar, distrito do Porto, que aparente e molemente havia mandado tatuar a palavra “Bombom”…
Um dos romances da minha vida, foi escrito por um autor inglês chamado Malcolm Lowry, que conta a história fatídica, ocorrida num só dia, o dia dos mortos, de um cônsul inglês, de seu nome Geoffrey Firmin, numa terra ficcionada (que chegou a existir durante o domínio do Império Azteca), onde hoje existe Cuernavaca no México.
Trata-se de um lânguido Quac

Pergunta ao estilo Yorn: Que mais lugares imaginários saídos da literatura tens tu tatuados no teu corpo?