Não eram couves, nem tão-pouco alforrecas, o presuntivo cientista literário era outro. Tratava-se, então, do sexto romance de Palahniuk, originalmente publicado em 2003, editado em Portugal no passado mês pela Casa das Letras.
«A Voz de uma geração inquieta. O mestre das vidas marginais», garantia a capa em jeito laudatório.
Chuck Palahniuk (n. 1962), escritor norte-americano, de ascendência ucraniana, é actualmente considerado, a par de Bret Easton Ellis (n. 1964) e de Douglas Coupland (n. 1961), como uma das vozes mais inconformadas, um dos escritores de culto da denominada Geração X: a geração que se seguiu aos babyboomers do pós-guerra; seres rebeldes, livres e niilistas, nascidos nas décadas de 60 e 70, cansados, por simples tédio burguês, do american way of life, unindo-os um discurso ligeiro, coloquial e prático, entabulado pela alienação das massas, pelo consumismo, pela globalização, em suma, juntos são susceptíveis – ou, nesse caso, põem-se a jeito – de serem catalogados como epítome da frivolidade existencial contemporânea.
Palahniuk descende da nova vaga pós-modernista da ficção literária norte-americana. A sua estreia literária foi verdadeiramente prometedora. Em 1996, publicava o romance, considerado por muitos como a sua obra-prima, Fight Club (Clube de Combate, ed. port. de 1999, Editorial Notícias).
Muitas questões – ou quiçá, nenhumas… – poderiam ser levantadas se, em 1999, o realizador norte-americano David Fincher não houvesse levado à tela o dito romance – também para muitos, talvez para mim, o seu melhor filme. Magistralmente realizado, o filme contou com as interpretações irrepreensíveis, sublimes, mágicas de Edward Norton, Brad Pitt e Helena Bonham Carter – pronto, estou hiperbólico, estado que Fincher ousa impor-me. Porém, negar esse facto – o da cinematização do romance – para explicar o verdadeiro fenómeno que tornou Palahniuk como objecto de um culto literário, para além de falacioso, já que não existiria filme sem livro, sendo falso o seu inverso, seria como apreciar um carpaccio de salmão antes de, pelo menos, laminar as suas postas – que bela metáfora! Isto, por estes lados, anda cada vez melhor… [este é o meu Tyler Durden… o meu estado de espírito estival.]
Palahniuk é sobejamente conhecido por utilizar na substância das suas tramas tortuosas o tema do neoludismo: práticas de terrorismo urbano, de meios, organização e magnitude diversos que têm como alvo preferencial as grandes corporações multinacionais, de carácter globalizante, que emergiram nos mercados das economias ocidentais à custa do imparável fenómeno da globalização; alvos onde ademais se incluem as classes privilegiadas.
O prefixo “neo” deve-se, como é óbvio, ao reavivamento hodierno do ludismo, cujos primórdios remontam ao século XVIII na Inglaterra da Revolução Industrial. Os seus partidários e fundadores manifestavam-se contra o progresso tecnológico e científico e as suas implicações no factor humano, perpetrando acções terroristas organizadas, que quase sempre culminavam com a destruição de máquinas e instalações industriais. Segundo alguns, o termo “ludismo” tem na sua raiz etimológica o apelido de um operário da indústria têxtil chamado Ned Ludd, que em 1779, num ataque de fúria, entrou numa casa nos arredores de Leicester e destruiu à marretada dois teares de produção de malhas. Mais tarde os seus seguidores, os verdadeiros fundadores do Ludismo ou do Movimento Ludita, juraram fidelidade ao “Rei Ludd” – entidade abstracta – abjurando o Rei de Inglaterra, ficando para a História o dia 11 de Março de 1811 como o início das actividades luditas concertadas.
Para mais informações, porque não começar com um mestre?
Ler o fabuloso artigo de Thomas Pynchon, “Is It O.K. To Be A Luddite?”, publicado no The New York Times (Book Review) em 28 de Outubro de 1984, a propósito da comemoração dos 25 anos da dissertação, tão polémica, como revolucionária, “The Two Cultures and the Scientific Revolution” de C. P. Snow, no âmbito da ancestral e prestigiosa Rede Lecture na Universidade de Cambridge.
Hoje em dia, é inegável que Palahniuk arrasta consigo uma pequena horda de seguidores fanatizados com a sua escrita, prontos a espalhar pelo mundo o putativo sortilégio que emana dos seus livros. A Palahniuk resta apenas alimentar esse culto, não só através de uma sucessão impressionante de romances publicados – quase um por ano –, como também através de um aproveitamento quase irrepreensível desse claro factor de dependência, desse filão comercial, mediante o estabelecimento de uma interactividade público/autor, quase sempre perniciosa no mundo das letras, mas que com o escritor norte-americano tem servido de instrumento de fortalecimento para o seu culto – a clara identificação dos desenraizados do novo milénio.
Por exemplo, em Diário quase todos os nomes dos personagens correspondem a nomes de leitores na vida real. Para o efeito, Palahniuk lançou um concurso, comprometendo-se a seleccionar um conjunto de nomes que, mediante autorização, seriam utilizados no romance. Outros, porém, foram criados numa espécie de charada literária: leia o livro e descubra-lhe os “ovos de Páscoa”.
[Aviso: a partir deste ponto o texto poderá conter algumas pistas para o deslindar do enredo – é a minha veia ludita manifestada através da variante desmancha-prazeres. Se é que há algum para desmanchar…]
O romance, como o próprio nome indica, está redigido sob a forma de um diário, cujas entradas se situam entre os dias 21 de Junho – o solstício de Verão – e 3 de Setembro de um determinado ano. A sua autora, Misty Marie (Kleinman) Wilmot, narra os dias que se sucedem à gorada tentativa de suicídio do seu marido, Peter Wilmot, que, em resultado do terrível e caricato falhanço, se encontra em estado de coma num hospital que se situa fora da imaginária ilha de Waytansea – triste jogo de palavras, “wait and see”, é o local onde decorre a acção – ao largo da costa norte-americana do Pacífico.
Misty e Peter conheceram-se na juventude enquanto frequentavam uma escola de artes no continente. Misty fora criada no limiar da pobreza – pertencia à denominada “escumalha branca” – num parque de caravanas junto ao (inexistente) Lago Tecumseh, no estado da Geórgia, compartilhando uma roulotte com a mãe, que supostamente tinha dois tipos de ocupação… Peter provinha da ilha de Waytansea. Era um jovem andrajoso, de cabelo comprido sujo, que envergava inúmeras jóias de imitação, e, entre elas, um broche iridescente no blusão, previamente espetado no mamilo.
Misty tem aulas de História da Arte e de Anatomia humana. Através dessas disciplinas a protagonista inscreve no seu diário um sem-número de referências do anedotário do mundo das artes: artistas que criavam as suas obras de arte com as suas próprias fezes ou que aspergiam uma tela com o próprio vómito. De igual modo, há um rol de alusões que procura demonstrar que “arte é sofrimento” ou vista como sofrimento, citam-se exemplos de artistas eminentes à trouxe-mouxe e os seus segredos, insanidades e deformidades mais escondidos, como por exemplo o envenenamento por mercúrio ou por chumbo incluídos nas tintas.
«– Se calhar, as pessoas têm de sofrer a sério antes de se arriscarem a fazer aquilo de que gostam.
Tu disseste isto tudo à Misty.
Contaste-lhe que o Miguel Ângelo era um maníaco-depressivo que se representou a si próprio como um mártir flagelado num quadro. O Henri Matisse desistiu de ser advogado por causa de uma apendicite. O Robert Schumann só começou a compor depois da mão direita ficar paralisada e acabou a sua carreira como pianista concertista.
[…]
Falaste-lhe do Nietzsche e da sua sífilis. Do Mozart e da sua uremia. Do Paul Klee e da sua esclerodermia que lhe encolheu as articulações e os músculos levando-o à morte. Da Frida Kahlo e da sua espinha bífida que lhe cobria as pernas de feridas sangrentas. Do Lord Byron e do seu pé deformado. Das irmãs Brontë e da sua tuberculose. Do Mark Rothko e do seu suicídio. Da Flannery O’Connor e do seu Lúpus. A inspiração precisa de doença, lesões, loucura.
– Segundo Thomas Mann – disse o Peter – Os grandes artistas são grandes inválidos.
[…]
E a Misty começou a pintar.» (pp. 78-79)
Como já referi, a acção inicia-se no momento em que Peter se encontra em estado de coma no hospital. Chega o Verão, o ferryboat traz os primeiros veraneantes para a ilha. Os proprietários regressam às casas de férias, arejando-as do ar bafiento pelo encerramento de uma temporada. Começam os problemas…
Entrada no diário: «21 de Junho. A Lua a Três Quartos.» Abertura do romance: «Hoje telefonou um homem de Long Beach. Deixou uma mensagem muito longa no atendedor de chamadas, balbuciando e gritando, falando depressa e devagar, praguejando e ameaçando chamar a polícia, para te mandar prender.» (pág. 9)
Angel Delaporte – mais um jogo de palavras, desta feita em francês, para o “anjo da porta” – queixa-se que a sua cozinha desapareceu. Peter que cuidava das casas abandonadas pelos proprietários durante o Inverno fechou a cozinha de Delaporte: «Um homem telefona do continente, de Ocean Park, a queixar-se que a cozinha desapareceu.» (pág. 23)
Aí está o recorrente neoludismo de Palahniuk. Peter antes de ter tentado o suicídio vandalizou as casas de Verão. Delaporte fez um furo na parede que tapava a cozinha e descobriu um conjunto de frases pintadas na parede: «…ponham o pé na ilha e morrem…» ou «…fujam o mais depressa que puderem deste sítio. Eles matarão todos os filhos de Deus se isso significar salvar os seus próprios…» (pág. 25)
Estão reunidos os ingredientes para mais uma narrativa tortuosa palahniukiana. Porém, a base residirá numa harmonia filosófica entre Platão e Carl Gustav Jung, o Síndrome de Stendhal e um Angel Delaporte estudioso e sintetizador das teorias e métodos de Stanislavski, Pavlov, Sechenov e Poe:
«A análise da caligrafia e a escola do Método, o Angel diz que ambas se tornaram populares ao mesmo tempo. Stanislavski estudou a obra de Pavlov e o seu cão salivante e a obra do neurofisiologista I. M. Sechenov. Antes disso, Edgar Allen Poe estudou grafologia. Toda a gente estava a tentar ligar o físico e o emocional. O corpo e o espírito. O mundo e a imaginação. Este mundo e o seguinte.
[...]
[Angel profere a seguinte asserção, depois de haver passado o dedo indicador de Misty sobre as letras pintadas na parede pelo comatoso Peter]:
– Se a emoção consegue criar acção física, então, o duplicar da acção física consegue recriar a emoção.» (pág. 66)
Classificação: ** (Medíocre)
Referência bibliográfica:
Chuck Palahniuk, Diário. Cruz Quebrada: Casa das Letras, 1.ª edição, Junho de 2007, 299 pp. (tradução de Maria Dulce Guimarães da Costa, Vasco Teles de Menezes; obra original: Diary, 2003).
Nota: Havendo derrogado este ano, por duas ocasiões, o critério de avaliação das obras objecto da minha leitura – não revelar as obras classificadas abaixo das 3 estrelas –, passarei a incluir na coluna da direita, com a respectiva ligação, algumas – e não todas – destas obras. O contador “Livros de 2007” continuará a reflectir, por diferença, o número de obras não incluídas: à data, a diferença é de 1 obra (28 lidas – 27 classificadas).
2 comentários:
Num país onde prolifera uma "espécie em vias de extensão" que desenvolve alergia perante tudo o que pareça arte e cultura, e que acha os livros "chatos, porque têm muitas letras", é bom passar por aqui.
Obrigado, meu caro personagem.
O que é realmente bom (como já referi várias vezes) é passar pelo vosso excelente blogue.
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