segunda-feira, 2 de julho de 2007

Experiência

Saul BellowQuando há doze anos comecei a dar aulas – hoje, a despeito da eventual mutabilidade opinativa provocada pela envolvente, intuo haver-se tratado do maior erro da minha vida – tudo aquilo que não pretendia ser, em razão até de um resultado longamente depurado da minha observação desde a franja exterior mais próxima do mundo académico, era tornar-me num reles assistente pedante e obsequioso, radicado num lamaçal até à cintura, movendo-me, num rigoroso tropismo, pela luz cintilante de tão eruditas cabeças pensantes, que mais não faziam que descarregar o seu recalcamento bilioso por, outrora, haverem sido reles assistentes. Porquanto, visto de fora, existia todo um processo de sucessão dinástica – profundamente endogâmica, mas essa é outra história – e que se me afigurava como uma transmissão em cadeia de sadismos, cuja origem não descortino, mas que se distingue pela marca lusa do pequeno e medíocre autocrata que habita o nosso corpo – daí a imparável reprodução de sósias de Margarida Moreira, Rui Rio e Correia de Campos, para apenas nomear os casos mais recentes e à vista do insuperável poder mediático.
Apesar da ufana certeza de esplendor intelectual que geralmente se imbui do espírito de um jovem adulto que vai entrar na vida activa, estulto e ignaro da necessária e permanente interacção social e comunicacional como forma de aprendizagem, tentei, desde o início, combater esse apetite de pavoneamento que, bem medidas as consequências, mais tarde ou mais cedo, nos cobrirá de vergonha pela encenação eminentemente burlesca de antanho. Tentei, e deixei passar sobre mim o rolo compressor... era o ruivo em terra de corruptos das mais variegadas magnitudes.
Por tudo isso e por acreditar na desmemória lacunar da generalidade das pessoas que connosco se envolvem, creio que a sinceridade humilde que tento apor nos meus actos quotidianos revela-se de um masoquismo atroz, são actos manifestamente suicidários. E o que se torna mais grave é que, assumida essa condição, só vos peço que nunca exijais de mim as virtudes da arrogância, da sobranceria e da histrionia, boas – são virtudes! – para sobreviver nesta selva, porém absolutamente discrepantes dos meus carácter e feitio.

E isto a propósito da Experiência de Martin Amis – um livro de memórias absolutamente notável –, quando aquele fala de uma conferência sobre Saul Bellow em Haifa, em Israel, realizada no princípio do ano de 1987, onde interveio, e que contou com a presença do próprio escritor americano, Nobel da Literatura em 1976:

«Sem comer e mal vestido, viajei para um edifício universitário que parecia um abrigo anti-bomba com muitos andares e ouvi uma série de académicos americanos perorar sobre coisas como “A Caixa Registadora Engaiolada: Tensões entre Existencialismo e Materialismo em Dangling Man”. Saul estava presente. Ouviram-no dizer que, se tivesse que aturar muito mais daquilo, morreria, não de mágoa*, mas de inanição. Depois não se encontrou muitas vezes Saul Bellow no Centro de Conferências Saul Bellow.» (pág. 229)
*Referência ao seu próprio romance, publicado nesse ano, Morrem Mais de Mágoa (ed. port. Livros do Brasil, 1990; ed. original More Die of Heartbreak, 1987) [Nota minha]

Na nota de rodapé que Amis apôs a esta passagem, pode ler-se:
«Na altura pensei que ele estava apenas envergonhado (e, claro, entediado). Mas a sua dor não era somente pessoal “As universidades”, como observa num texto de 1975 (“Uma questão de Alma”, publicado em It All Adds Up) “falharam dolorosamente. Privam a literatura de toda a agitação e entusiasmo, produzindo o bacharel [licenciado (nota minha)] capaz de dizer, ou que se pensa capaz, o que simboliza o arpão de Ahab ou que símbolos cristãos há em uma Luz em Agosto.” Melville e Faulkner sentir-se-iam atormentados com tais observações, tal como Bellow se sentiu, naquela manhã em Haifa» (pág. 229)

Martin Amis, Experiência. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Outubro de 2002, 444 pp. (tradução de Telma Costa; obra original: Experience, 2000).

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