Quando há doze anos comecei a dar aulas – hoje, a despeito da eventual mutabilidade opinativa provocada pela envolvente, intuo haver-se tratado do maior erro da minha vida – tudo aquilo que não pretendia ser, em razão até de um resultado longamente depurado da minha observação desde a franja exterior mais próxima do mundo académico, era tornar-me num reles assistente pedante e obsequioso, radicado num lamaçal até à cintura, movendo-me, num rigoroso tropismo, pela luz cintilante de tão eruditas cabeças pensantes, que mais não faziam que descarregar o seu recalcamento bilioso por, outrora, haverem sido reles assistentes. Porquanto, visto de fora, existia todo um processo de sucessão dinástica – profundamente endogâmica, mas essa é outra história – e que se me afigurava como uma transmissão em cadeia de sadismos, cuja origem não descortino, mas que se distingue pela marca lusa do pequeno e medíocre autocrata que habita o nosso corpo – daí a imparável reprodução de sósias de Margarida Moreira, Rui Rio e Correia de Campos, para apenas nomear os casos mais recentes e à vista do insuperável poder mediático.
Apesar da ufana certeza de esplendor intelectual que geralmente se imbui do espírito de um jovem adulto que vai entrar na vida activa, estulto e ignaro da necessária e permanente interacção social e comunicacional como forma de aprendizagem, tentei, desde o início, combater esse apetite de pavoneamento que, bem medidas as consequências, mais tarde ou mais cedo, nos cobrirá de vergonha pela encenação eminentemente burlesca de antanho. Tentei, e deixei passar sobre mim o rolo compressor... era o ruivo em terra de corruptos das mais variegadas magnitudes.
Por tudo isso e por acreditar na desmemória lacunar da generalidade das pessoas que connosco se envolvem, creio que a sinceridade humilde que tento apor nos meus actos quotidianos revela-se de um masoquismo atroz, são actos manifestamente suicidários. E o que se torna mais grave é que, assumida essa condição, só vos peço que nunca exijais de mim as virtudes da arrogância, da sobranceria e da histrionia, boas – são virtudes! – para sobreviver nesta selva, porém absolutamente discrepantes dos meus carácter e feitio.
E isto a propósito da Experiência de Martin Amis – um livro de memórias absolutamente notável –, quando aquele fala de uma conferência sobre Saul Bellow em Haifa, em Israel, realizada no princípio do ano de 1987, onde interveio, e que contou com a presença do próprio escritor americano, Nobel da Literatura em 1976:
«Sem comer e mal vestido, viajei para um edifício universitário que parecia um abrigo anti-bomba com muitos andares e ouvi uma série de académicos americanos perorar sobre coisas como “A Caixa Registadora Engaiolada: Tensões entre Existencialismo e Materialismo em Dangling Man”. Saul estava presente. Ouviram-no dizer que, se tivesse que aturar muito mais daquilo, morreria, não de mágoa*, mas de inanição. Depois não se encontrou muitas vezes Saul Bellow no Centro de Conferências Saul Bellow.» (pág. 229)
Apesar da ufana certeza de esplendor intelectual que geralmente se imbui do espírito de um jovem adulto que vai entrar na vida activa, estulto e ignaro da necessária e permanente interacção social e comunicacional como forma de aprendizagem, tentei, desde o início, combater esse apetite de pavoneamento que, bem medidas as consequências, mais tarde ou mais cedo, nos cobrirá de vergonha pela encenação eminentemente burlesca de antanho. Tentei, e deixei passar sobre mim o rolo compressor... era o ruivo em terra de corruptos das mais variegadas magnitudes.
Por tudo isso e por acreditar na desmemória lacunar da generalidade das pessoas que connosco se envolvem, creio que a sinceridade humilde que tento apor nos meus actos quotidianos revela-se de um masoquismo atroz, são actos manifestamente suicidários. E o que se torna mais grave é que, assumida essa condição, só vos peço que nunca exijais de mim as virtudes da arrogância, da sobranceria e da histrionia, boas – são virtudes! – para sobreviver nesta selva, porém absolutamente discrepantes dos meus carácter e feitio.
E isto a propósito da Experiência de Martin Amis – um livro de memórias absolutamente notável –, quando aquele fala de uma conferência sobre Saul Bellow em Haifa, em Israel, realizada no princípio do ano de 1987, onde interveio, e que contou com a presença do próprio escritor americano, Nobel da Literatura em 1976:
«Sem comer e mal vestido, viajei para um edifício universitário que parecia um abrigo anti-bomba com muitos andares e ouvi uma série de académicos americanos perorar sobre coisas como “A Caixa Registadora Engaiolada: Tensões entre Existencialismo e Materialismo em Dangling Man”. Saul estava presente. Ouviram-no dizer que, se tivesse que aturar muito mais daquilo, morreria, não de mágoa*, mas de inanição. Depois não se encontrou muitas vezes Saul Bellow no Centro de Conferências Saul Bellow.» (pág. 229)
*Referência ao seu próprio romance, publicado nesse ano, Morrem Mais de Mágoa (ed. port. Livros do Brasil, 1990; ed. original More Die of Heartbreak, 1987) [Nota minha]
Na nota de rodapé que Amis apôs a esta passagem, pode ler-se:
«Na altura pensei que ele estava apenas envergonhado (e, claro, entediado). Mas a sua dor não era somente pessoal “As universidades”, como observa num texto de 1975 (“Uma questão de Alma”, publicado em It All Adds Up) “falharam dolorosamente. Privam a literatura de toda a agitação e entusiasmo, produzindo o bacharel [licenciado (nota minha)] capaz de dizer, ou que se pensa capaz, o que simboliza o arpão de Ahab ou que símbolos cristãos há em uma Luz em Agosto.” Melville e Faulkner sentir-se-iam atormentados com tais observações, tal como Bellow se sentiu, naquela manhã em Haifa» (pág. 229)
Martin Amis, Experiência. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Outubro de 2002, 444 pp. (tradução de Telma Costa; obra original: Experience, 2000).
Na nota de rodapé que Amis apôs a esta passagem, pode ler-se:
«Na altura pensei que ele estava apenas envergonhado (e, claro, entediado). Mas a sua dor não era somente pessoal “As universidades”, como observa num texto de 1975 (“Uma questão de Alma”, publicado em It All Adds Up) “falharam dolorosamente. Privam a literatura de toda a agitação e entusiasmo, produzindo o bacharel [licenciado (nota minha)] capaz de dizer, ou que se pensa capaz, o que simboliza o arpão de Ahab ou que símbolos cristãos há em uma Luz em Agosto.” Melville e Faulkner sentir-se-iam atormentados com tais observações, tal como Bellow se sentiu, naquela manhã em Haifa» (pág. 229)
Martin Amis, Experiência. Lisboa: Teorema, 1.ª edição, Outubro de 2002, 444 pp. (tradução de Telma Costa; obra original: Experience, 2000).
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