segunda-feira, 9 de julho de 2007

Hofmannsthal

Se fosse alemão, austríaco, suíço de cantão alemão ou até brasileiro gaúcho de origem alemã, ter tamanho apelido seria certamente uma privilégio, cujo sufixo gutural ganha especial proeminência.

Hugo Laurenz August Hofmann (1874-1929), Hugo von Hofmannsthal, poeta, dramaturgo, libretista e ensaísta austríaco, ficou conhecido pela sua poesia e peças de forte pendor lírico, e ficará indelevelmente ligado ao Festival de Salzburgo, que reabilitou após a I Guerra Mundial conjuntamente com outras eminências da época, como o director do Teatro de Salzburgo Max Reinhardt, o cenógrafo Alfred Roller, o maestro Franz Schalk e o compositor Richard Strauss, de quem se tornou grande amigo, havendo escrito seis libretos para óperas do compositor alemão:
  • Electra (Elektra, 1903 [estreia em ópera: 1909]);
  • O Cavaleiro da Rosa (Der Rosenkavalier, 1911);
  • Ariana em Naxos (Ariadne auf Naxos, 1912 [versão revista em 1916]);
  • A Mulher sem Sombra (Die Frau ohne Schatten, 1913 [estreia em ópera: 1919]);
  • A Helena Egípcia (Die Ägyptische Helena, 1928);
  • Arabella (1929, [estreia em ópera:1933]).

Das restantes obras destacam-se, entre outras, as suas primeiras deambulações pela poesia lírica, como por exemplo a peça dramática em verso A Morte de Ticiano (1892), passando, mais tarde, a dedicar-se numa quase exclusividade à dramaturgia, área onde se sentia mais apto para desenvolver as suas pulsões estéticas, manifestando no seu famoso ensaio ficcional Carta de Lord Chandos (Ein Brief, 1902), redigida a 22 de Agosto de 1603 pelo distinto Philip (Lord Chandos), filho mais novo do Conde de Bath, ao filósofo e político Francis Bacon (1561-1626), em tom de elegia pelo abandono prematuro das artes literárias, pela sentida insuficiência da linguagem como meio de expressão do mundo. Destacam-se, ademais, obras como a adaptação para teatro da obra moral inglesa Everyman do século XV, Todo-o-Mundo (Jedermann, 1911)*, peça que iria marcar durante anos consecutivos o Festival de Salzburgo, apresentada pela primeira vez em 1920; e, por exemplo, A Torre (1925).

Andreas é uma obra ficcional em prosa que, segundo a contracapa da edição da Relógio D’Água, começou por ser imaginada pelo próprio autor em 1905, conforme uma entrada no seu diário, com o objectivo de este estabelecer uma reconciliação com a sua infância – o título original completo na nossa língua seria Andreas ou a Reconciliação. Todavia, por ironia do destino, Andreas é uma obra inacabada e apenas foi publicada postumamente, em 1932, dada a morte inopinada e fulminante do seu autor a 15 de Julho de 1929 – contava 55 anos –, vítima de um ataque cardíaco, ao que se supõe motivado pelo terrível desgosto que o ensombrou quando, dois dias antes, o seu filho mais novo, Franz, se suicidou.
A novela inacabada de Hofmannsthal narra um curto período da vida de Andreas von Ferschengelder, um mancebo austríaco de 22 anos pertencente à baixa nobreza vienense, que deixa, em Setembro de 1778, a sua terra natal rumo a Veneza, numa viagem financiada pelos pais, para que aquele, imbuído do seu inebriamento diletante, pudesse conhecer o mundo através do contacto com outros povos e culturas, e realidades distintas.
«O seu pai ficaria muito satisfeito por saber isso, estava sempre muito interessado em tomar conhecimento das particularidades e curiosidades de outros países e de outros costumes.» (pp. 14-15)
No entanto, a sua estadia em Veneza é desde logo marcada pela inquietação, quando o barqueiro que o trouxe deixa as suas malas estendidas numa escada de pedra no cais de desembarque e o jovem Andreas se vê completamente isolado, à seis da madrugada e sem alguém a quem recorrer:
«Lindo serviço! (…) Isto está a ficar bonito… deixar-me aqui sem mais nem menos. Carruagem, em Veneza não há, que eu bem sei. Moço de fretes? Que poderia ele andar a fazer por estas bandas, num recanto ermo como este, um verdadeiro cu de judas? (…) Entretanto, rasgando o silêncio da manhã ouviram-se passos apressados que ressoavam nítidos nas lajes da rua (…) de uma ruela surgiu, por fim, um vulto mascarado (…)» (pág. 7)
Andreas aborda o homem mascarado e, de súbito, percebe que, debaixo da capa de dominó, este apenas envergava uma camisa para além de uns sapatos sem fivela e umas meias enroladas que deixavam entrever a barriga das pernas.
Na abertura da novela prenuncia-se a mundanização de uma alma até então pura, a perda da inocência, o desmoronar de toda a credulidade que cegava o bom selvagem, a conquista da experiência de vida que, inevitavelmente, se faz por tentativas e erros, pela dor ou pelo sofrimento infundidos por actos malsucedidos ou fracassados.

Sem as profundidade e capacidade encantatória de romances ou novelas similares de autores seus contemporâneos de língua alemã, lembrando-me de, também seu compatriota, Robert Musil (1880-1942) e o seu Törless, Robert Walser (1878-1956) e o seu Jakob von Gunten, ou mesmo de Thomas Mann (1875-1955) e o seu Tonio Kröger, Andreas, apesar de na versão portuguesa se estender por apenas noventa páginas, não é uma obra de leitura fácil, dado o emaranhado de pormenores, porquanto uma leitura desatenta obrigará certamente a um generoso retrocesso nas páginas, e até pelo forte teor simbólico que Hofmannsthal lhe quis atribuir.

Apenas uma última nota para a tradução: sofrível. Para além da utilização abusiva, por todo o livro, do pleonasmo, normalmente decorrente do seu uso abundante na oralidade, “ anos atrás”, fica um erro, bastante comum nos tempos que correm, mas que me irrita particularmente: «Ia desfolhando o livro vagarosamente…» (pág. 31) Só a imagem que sobrevém à minha mente de um livro a ser despojado das suas folhas, já é motivo de irritação. No meu entender e apesar do seu uso frequente como palavras sinónimas, “folhear” é assaz diferente de “desfolhar”, mas deixo isso aos linguistas.

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Hugo von Hofmannsthal, Andreas. Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Abril de 2007, 90 pp. (tradução de Leopoldina Almeida; obra original: Andreas oder die Vereinigten, 1932).


*A propósito do último romance do escritor norte-americano Philip Roth, Everyman, editado este ano entre nós pelas Publicações Dom Quixote, de realçar que Jedermann de Hugo von Hofmannsthal já se encontrava editado em Portugal, pelo menos no ano de 1986, sob a chancela da Estante, com tradução de João Barrento.

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