«Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar.»
De Antonio Machado, Campos de Castilla (1912-1917): Proverbios y Cantares [XXIX]
Eis a obra «O Mar de Madrid», de João de Melo, Publicações Dom Quixote, 1.ª edição de Janeiro de 2006.
Eis Francisco Bravo Mamede, poeta português de muitos caminhos, poeta andarilho em busca da «dimensão do ser e das coisas, muito para além de si mesmo. Até certo ponto, considerava-se um profeta da evidência, um visionário do oculto, um anunciador das verdades que mentem, das mentiras que às vezes dizem verdade.» (p. 28)
E Dolors Claret, escritora catalã, vive em Barcelona com o seu marido galego – rico e adulador dos poderosos, despótico e boémio – e dois filhos gémeos, é autora de novelas negras, porém a sua vida atravessa uma dolorosa encruzilhada, sente-se inquieta e angustiada, «desmoralizada, perdida na confluência de todos os rumos possíveis, mas sem saber por qual deles tomar, nem que rumo escolher» (pp. 50-51), onde os filhos e o «apelo das palavras» (p. 51) são a força motriz da sua vida.
Mas o mar que a Madrid não chega, lá existe na consciência colectiva daquela massa de espíritos que nela se cruzam. O “Marco Zero” da Puerta del Sol, de onde todas as estradas partem em direcção ao mar, como eflúvios de alcatrão em brasa que disseminam a fúria do império, como veios linfáticos que conferem ao corpo a prerrogativa de uma identidade que não é artificial apesar das autonomias, da babilónia de idiomas e da aparente manta de retalhos que é, todavia, cerzida a fios de aço enleados por um código que ninguém, no íntimo do seu ser, pretende desencriptar.
É a Ibéria do eterno romance de partes desavindas; onde perdura o desconhecimento, a inusitada ignorância e a simples indiferença – mais do que o desdém, porque este implica conhecimento e sentimento.
Só quem conhece Madrid pode descortinar esta realidade comum atávica, porém denegada pela mais feroz consciência. O dueto que ostensivamente se separa e se enfraquece, sem a mínima percepção do valor acrescentado da, quase quimérica, união de esforços, que resultaria num todo indiscutivelmente maior do que o somatório das partes.
Portugal poeta. O sonho dos feitos há muito passados e repisados até à exaustão, o devaneio, a saudade; a resignação da espera, prostração, fatalismo, desencanto e abastardamento: é a frequente e fúnebre expectativa, incubada numa passividade recalcitrante, pela intervenção da Divina Providência que nos salve da aflição.
Espanha prosadora. A inventividade, a fúria, o desassossego que lhes corre nas veias, é fúria, enfileiramento de caracteres perfeitamente incrustados na alma de eterna insatisfação; sempre a fúria, a raiva, a incandescência, a luminosidade, a ideia, a alegria contagiante, as vogais altissonantes que nos entram na alma soletradas com paixão, o sorriso aberto e enérgico – até coriáceo – que nos parece afrontar; ó que grande equívoco! É um convite que corporiza um forte e sentido amplexo para partilha da sua vivência, da sua cultura e da sua furiosa idiossincrasia.
Mais do que vizinhos desavindos, são irmãos de costas voltadas. Enquanto um observa num torpor debilitante o mar agreste como expiação de um medo espectral, o outro remira-se ao espelho não perdendo a jactanciosa Europa de vista. Parece um destino há muito marcado, idealizado, fatalista: o fado – mas, paradoxalmente… o livre arbítrio, a apologia de Machado, caminante no hay camino, e o teu caminho é a senda que tu próprio crias e não avanças suspirando o passado.
João de Melo compôs um poema em forma de prosa. Uma alegoria de tons feéricos, grácil e reflexiva.
«O Mar de Madrid» torna-se de leitura obrigatória para quem partilha, como eu, um amor desmedido pela Ibéria, pelas suas raízes, cumplicidades e equívocos. Contudo, a sua leitura é deveras fundamental para os hispanófobos. Sim, para esses mesmos, os do vento e do casamento!