Dito de outra forma, os meses de Janeiro e Fevereiro – e, até há alguns anos, parte do mês de Março, ou seja, até à decisão definitiva da
Academia que designou como data-limite o último domingo do mês de Fevereiro para a realização da sessão anual de entrega dos Óscares – sempre foram marcados por alguma azáfama cinéfila de minha parte. Desconhecendo até há bem pouco tempo o curioso Movie Fan Act de 1972 – em tradução livre poderia ser referido por “Código do Fã de Cinema” ou “Código do Cinéfilo”, que obriga qualquer bom cinéfilo americano a assistir aos cinco filmes nomeados para a categoria de “Melhor Filme” antes da realização da gala dos Óscares –, seguia-o de forma involuntária, calcorreando os corredores dos multiplex num corrupio fora do normal.
Dos cinco filmes nomeados ainda não vi, por falta de estreia nacional
O Leitor (
The Reader) de
Stephen Daldry e, por alguma falta de vontade
Frost/Nixon de
Ron Howard – que presumivelmente hoje mesmo passará para o lado dos “vistos”.
Todavia,
O Estranho Caso de Benjamin Button de
David Fincher,
Milk de
Gus Van Sant e, esta semana,
Quem quer ser bilionário? de
Danny Boyle já passaram pelos meus olhos atentos, que fatalmente redundaram, mais tarde, em opiniões fortes eminentemente pessoais, sem qualquer vontade
dirigista – aliás, dado o número de pessoas que me visita seria de uma estultícia e de um primarismo quase burlescos ter tal pretensão.
Fincher e Van Sant convenceram-me, e geraram em mim um sentimento de divisão de preferências para os Óscares deste ano. Ambos os filmes são brilhantes, mas assaz diferentes sob todos os aspectos que poderiam enformar o ensaio de uma qualquer tese de comparabilidade: as épocas, a veracidade
versus fantasia do argumento de base, os meios técnicos, a fotografia, o grau de liberdade das formas de interpretação dos próprios actores, os efeitos especiais, a banda sonora, etc.
Se reparto as minhas preferências para
melhor filme entre
Milk e
Benjamin Button, o mesmo não se sucede com a minha opinião pessoal para
melhor realizador:
Fincher, sem dúvida. Já no que respeita ao
melhor actor, considero inevitável a atribuição da primazia a
Penn relativamente a
Pitt. O primeiro tem o condão de me inebriar, quer à frente, quer atrás das câmaras, quando na sua brilhante função de realizador. Não arriscaria muito se o sentenciasse à
detenção do título de melhor actor contemporâneo, a par do meu mui estimado
Daniel Day-Lewis.
Quanto ao filme de
Danny Boyle, é uma verdadeira amálgama de estridência, de imagens torrenciais, de pseudo-arte escatológica.
Quem quer ser bilionário?, assemelha-se a um
videoclip de duas horas sobre o amor num bairro de lata infecto, que substitui a janela de
Tornatore pela participação de um semi-analfabeto num concurso televisivo universalmente formatado.
Depois, há os clichés que se repetem nos filmes do realizador – já não bastava serem clichés pseudo-artísticos … –, a sanita de
McGregor é a insalubre cloaca pública dos bairros de lata da antiga Bombaim, onde o jovem sonhador mergulha para obter um autógrafo de um actor famoso de
Bollywood e que, numa reminiscente prolepse, o ajudará a responder a uma pergunta do concurso televisivo.
Boyle nunca dispôs de talento, como nos querem fazer crer recorrendo à falácia do
argumentum ad nauseam. Por exemplo, abandalhou por completo um já fraco romance de culto de
Alex Garland, num filme,
A Praia (
The Beach, 2000) que nem o idílio das ilhas tailandesas foi suficientemente aproveitado. Posteriormente, imbuído do sentimento de sucesso, Garland escreveu os argumentos para os horrendos
28 Dias Depois (
28 Days Later…, 2002) e
Missão Solar (
Sunshine, 2007). Filmes escabrosos,
série B.
O seu pretenso
toque de Midas facilmente se converte num “t
oque de Skatos” (a existir tal personagem) ou “
toque de Merdas”. A sanita de McGregor só é suavizada pela excelente e relaxante música de fundo de
Brian Eno, “Deep Blue Sea”. Aliás, como todo o filme,
Trainspotting (1996), que muito deve à sua banda sonora: Joy Division, Underwold (especialmente), Iggy Pop, David Bowie, Elastica, Lou Reed, Leftfield (já bem presentes no suportável
Shallow Grave, filme de 1995), New Order, entre outros.
Tudo termina com uma dança
bollywoodesca numa das estações de comboios de Mumbai, onde o pateta milionário e a sua “scarface” – convenhamos a lindíssima actriz indiana
Freida Pinto – encabeçam um grupo de garridos bailarinos à laia das práticas proselitistas dos f
renéticos com Cristo Up with People, que também se arrogam desse messianismo globalizante, menos explícito, concedo, que nos do putativo pai fílmico das agruras do 3.º Mundo,
Alejandro Iñárritu e o seu amigo
Guillermo Arriaga.
Respeito, mas não consigo entender o encantamento quase toxicómano de milhões de pessoas (espectadores, críticos, associações profissionais da 7.ª arte e gente do cinema) por um subproduto da chamada 7.ª arte. (Raios viciantes emanados dos antigos ecrãs parabólicos
Torus?…) Está nomeado para
10 Óscares 10.
*Designação ligeira e compreensivelmente alterada. Reflecte bem o meu estado de espírito depois de o ver... os milhões entregues de mão beijada na fossa séptica multimilionária de Mr. Boyle.