terça-feira, 9 de outubro de 2007

Bicho e espoleta

Bandeira Branca e a sua simbologiaO carácter íntimo e pessoal na interpretação do tom – não o Jobim, dilecção da casa, e grafado com maiúscula, “à partida” – dos textos dos outros neste pequeno mundo, buliçoso e tendencialmente hiperbólico na vitimização, designado por blogosfera, tem sido um dos principais impulsores do azedume e de troca de alguns mimos, por vezes a roçar o nível de arrieirada, entre bloggers, que, com alguma regularidade, tem como corolário o fim desses espaços de divagação, em jeito de protesto – birra ou amuo, se se preferir – para abrir outro mesmo ali ao lado sob pseudónimo, ou então, revitalizar o morto, dando a entender que se tratou de uma mera suspensão enquanto pacatamente se iniciava uma longa peregrinação pelo mundo para alargar os horizontes e, assim, poder partilhar as experiências com os que ficaram por cá numa guerrilha sem fim.
Quando escrevi
isto, pretendia apenas apelar ao uso do recurso estilístico da ironia, e se isso não foi entendido como tal, sou o primeiro a dar cara apontando uma eventual debilidade de estilo literário, deixando para segundo plano uma possível precariedade hermenêutica do receptor.
A propósito desse texto, em que fiz alusão a Durkheim e ao seu inovador estudo sobre o suicídio publicado nos finais do século XIX, aplicando-o ao romance de 1774 Werther do escritor J. W. Goethe e àquilo a que muitos posteriormente, já no século XX, vieram chamar de “efeito Werther”, já houve
réplica e tréplica. Todavia, como já referi, a intenção “à partida” era a de preambular um texto que iria surgir com algum desfasamento temporal, daí a numeração romana a atribuir-lhe um carácter folhetinesco estrito, apodando de falaciosos e apriorísticos os argumentos invocados por alguns críticos literários nas suas recensões sobre uma determinada obra.
Falei de Durkheim precisamente para realçar a risibilidade argumentativa de dois jovens e ambiciosos críticos literários – um deles até é crítico musical – que deixavam nas entrelinhas dos seus textos a potencial periculosidade dos personagens criados pelo autor, perigo que advinha da sua capacidade de contágio, por mimese, ao leitor, com rápida disseminação pela sociedade. Assim, por outras palavras e recorrendo à auxese como figura de estilo, o autor seria visto como um genocida, ou um Karadzic ou até um Pol Pot – a proximidade geofráfica do foco mediático teve a (des)virtude de o relembrar – que usa, “à partida”, os meios literários para atingir os seus fins perversos.
O assunto resvalou para Durkheim como fulcro da questão e a possível (mea culpa) falta de entendimento da sua doutrina.
No
primeiro texto disse:

«Durkheim professava que o suicídio primitivo era, apenas, o detonador do acto do imitador, o catalisador da reacção, uma vez que a tendência de atentar contra a própria vida resultava de uma patologia preexistente, de uma predisposição, como o acordar de um gigante adormecido na nossa psique.»

Errei. Não chamei, de forma séria e científica, anomia a essa predisposição, ou, de forma menos concisa, o conflito entre (ou mesmo ausência de) regras ou princípios normativos sociais num dado momento, numa dada comunidade, que se repercute, na esfera íntima do indivíduo por uma sentida desconformidade ou inadaptação deste perante a sociedade, ou seja, um choque da esfera social com a esfera individual, íntima, psicológica.
Durkheim nega a amplitude da sugestão, ou do elevado potencial mimético de um suicídio real ou ficcional – que levaram, por exemplo, as autoridades a proibir a venda de Werther em alguns locais da Europa –, porém, não nega o efeito da sugestão como catalisador, ou precipitante, de uma acção (suicida) que ocorreria certamente num momento mais tardio, como espoleta de uma patologia, se quisermos, psicossocial preexistente.
De resto, o austero reverencia e agradece a troca de palavras, revelando que, de forma alguma, deste lado, chegou a existir o prenúncio da tal goetha que faz transbordar o copo (a pun for a pun, embora seja fraca, logo, segundo Poe, suportável ou pouco intolerável).

3 comentários:

Anónimo disse...

Caramba, e eu que só trouxe uma adendazita indolente...
Ora, deixo agora aqui uma notinha a ver se a percepção esconsa do espaço de comentário me coarcta a divagação, menos apresentável em casa alheia.
Folgo obviamente em ver sublinhado o no harm done da correspondência, coisa que não estaria na minha mente provocar ou sequer antecpar, embora o intróito deste post, empregue como bom literary device, deixasse cair provocatoriamente como um lenço debruado a sugestão contrária.
Assinale-se só que não diria que a presumível discussão tenha resvalado para Durkheim, a despeito da intenção irónica do texto inicial, dado que não me pretendia dirigir para a completude retórica do mesmo, mas apenas para o emprego nele do leitmotif durkheimiano, pelas razões neste post resgatadas (e ainda se me poupa trabalho!), o qual, como recurso retórico para cumprir a(s) ironia(s), mas não objecto das mesmas, podia facilmente ser destacado at face value, para um entendimento isolado do argumento durkheimiano, onde encimavam possíveis ambiguidades, mais uma vez, aqui escalpelizadas. E embora, como sói ser, no fundo, isso me tenha servido essencialmente também como espoleta para fruir do remanescente gozo de ser bicho verborreico, tendo-se no processo oferecido inclusivamente interpelar ou hiperbolizar alguma das ironias (goethas - eu cá gosto... - noutro copo) (portando, em certo sentido, revertendo o meu desconsiderar da motivação irónica inicial, para uma motivação irónica renovada), creio que durkheimianamente, com o que a sua descendência intelectual acarreta, a coisa também se justificava pela concebível fatalidade das minudências (a despeito da irrepreensibilidade do todo, na sua concepção) para o leitor desavisado, para mais acolhido em casa de cultura: não se trataria, só por exemplo conveniente, de designar uma predisposição (suicida) por anomia, mas pelo contrário evitar que a anomia (ou a proposição que se lhe apusesse, descartando judiciosamente o jargão), como fenómeno social, ficasse sugerida como subsumível à (ou substituível pela) ideia de predisposição (como, não obstante - lá está a desmesura da minudência - este texto desenvolve), enquanto designação essencialmente associada, neste contexto, a um entendimento psicológico do fenómeno.
Todas (quase) as outras cadeias causais (particularmente remetendo, em seguida, explicitamente para a obra do Auster e sua recepção crítica) de um construto irónico in progress (and an enjoyable one at it) estavam, referindo-me ao primeiro texto, ausentes da minha janela interventiva (sempre mais fixa no seu umbiguismo em prosa), para not getting started on my legendary precaridade hermenêutica (o que eu vou plagiar esta - sabia que havia uma razão maior para insistir no bicho...).
Contudo, permita-se-me o devaneio, não deixa de ser produtivo para a minha precaridade (ainda que não se sabendo dos planos estratégicos de seguimento natural do folhetim irónico sem o meu estorvo), que dessa precaridade tenham saído espoletas para a explicitação de algumas das motivações concretas de alguns dos remoques irónicos do folhetim, de alguma forma, fazendo emergir as fundações do edifício retórico, e de alguma forma, nesse processo, porventura redesenhando-se-lhe(?!) uns acabamentos. Como se uma precaridade hermenêutica pudesse servir a causa de um superavit expositivo de camadas interpretativas. Mesmo um degustador precário da arte narrativa poderia apreciaria a presumível final ironia.
Grato por mais uns minutos de auto-obliteração não anómica (I think...), subscrevo-me (é assim a fórmula?)
Até próxima (e prazeirosa) oportunidade

Anónimo disse...

"Jorge",
Este texto foi de paz... o início refere-se a generalidades que caem bem (como uma luva) na exaltada blogosfera lusa.

Anónimo disse...

Não o interpretei (nem com ele - o texto, that is - me relacionei) de outro modo.
O comentário a esse início decorria de mero desfrute hermenêutico (enfim...), não de um juízo de intenções, cuja bondade dei há muito por estabelecida - daí a liberdade nesse desfrute (uma feature inalienável do meu engajamento epistolar, temo). Aliás, que nessas condições o espectro da belicosidade não se desvaneça plenamente, apenas reforça o cautionary tale desse intróito.
As minhas desculpas se a deselegância do meu excesso rebarbativo (again, uma feature inalienável...), daquela fruição derivado, deixou passar uma imagem contrária.