sexta-feira, 27 de abril de 2007

Thinking Blogger

Serve o presente texto para agradecer, com sinceridade e espanto pelo imerecido destaque, ao André Benjamim e ao Paulo Kellerman por ter sido objecto das suas nomeações para o Thinking Blogger Award – uma forma de tributo em cadeia, de crescimento exponencial dado o seu formato –, que de certa forma me envaideceu, e se a isso lhe juntarmos a qualidade de ambos, escritores com obra publicada, e sendo este blogue, cada vez mais, dado o enjoo que este país me provoca no seu medíocre dia-a-dia, voltado para a explanação e a divagação em torno do meu principal hobby, a literatura, mais enlevado fico com o tributo prestado.
Obrigado
Paulo e André!

Mas como já expliquei noutras ocasiões e para tentar ser um pouco consistente na minha inconsistência, irei concretizar o que não conseguiam, de forma gritante e desesperada, os defuntos (se não estão, pelo menos parecem... felizmente!) Gene Loves Jezebel: quebrarei a corrente e não prosseguirei com as nomeações.

quinta-feira, 26 de abril de 2007

McEwan

Como diz (e faz) o outro, ele já anda por aí.

Estreia simultânea em Portugal e no Reino Unido (uma raridade!)

«Eles eram jovens, licenciados, ambos virgens naquela sua noite de núpcias, e viviam numa época em que uma conversa sobre dificuldades sexuais, que nunca é fácil, era simplesmente impossível.»

Abertura de Na Praia de Chesil (pág. 7; tradução de Ana Falcão Bastos).

BHL – 2

Rosa Parks
Por estes dias em que se comemora a liberdade, gritada na rua pelo povo amordaçado e confinado à pequenez de um império que se dizia grande, e de repente manchada pela tirania das ideologias, vou-me deleitando com BHL e a sua Vertigem Americana, seguindo os passos de Tocqueville – não, não ouvi os habituais discursos de cravo na lapela e de ódio na alma; vou empilhando, no infinitésimo lugar da minha alma que se dedica aos assuntos políticos, fragmentos de um desprezo cada vez maior por essa classe que, de forma altruísta – dizem eles –, da justiça – esse conceito amplo e enigmático – faz compadrio, corrompe, manipula, trucida os cumpridores e absolve os que dela se servem para apagar as manchas de um passado vergonhoso e lhes garantir um futuro sem perigos e afortunado para os abutres complacentes que os rodeiam: os medíocres.

Ponto de ordem (regresso a BHL): não é que nas escassas duzentas páginas que até agora traguei tenha encontrado um discurso literário exemplar, dentro do limite estético que uma obra sobre um relato verídico de uma grande viagem permite; em abono da verdade, até encontrei em algumas passagens um tipo de dissertação eivada de preconcepções e de uma visão europeísta sobranceira que, por muito esforço de despoluição que se tenha empreendido, contamina uma realidade, apesar de tudo, díspar.
Acabei de sentir um impulso irreprimível para neste espaço escrever qualquer coisa sobre um dos episódios que acabei de ler e que, fruto do tempo ou quiçá de uma instabilidade emocional – e que se fodam os presumidos coriáceos que nunca verteram uma lágrima perante o belo, na miríade de formas que este pode assumir –, me comoveu profundamente pelo exemplo de coragem, de abnegação por uma causa sem proveito próprio, pelo carácter de dois homens que, como BHL os definiu, são «duas personagens admiráveis» (pág. 193): Morris Seligman Dees, Jr. e Jim Carrier.

Liberdade!

terça-feira, 24 de abril de 2007

BHL

Após a leitura de mais uns clássicos e de outras obras intemporais pela referencialidade literária – a minha habitual pausa entre as novidades editoriais –, receoso em retroceder a passo de caranguejo às páginas que ainda não li da colectânea de textos de Umberto Eco, editada este ano em Portugal pela Difel – gosto mais dele na pele de ficcionista, embora neste último livro concorde com a ideia de “europeísmo subconsciente” –, decidi, em definitivo, embarcar na Vertigem de BHL, seguindo, 173 anos depois, os passos de Alexis de Tocqueville pela América profunda.
BHL é a sigla por que ficou conhecido o filósofo francês contemporâneo Bernard-Henri Lévy. O prefácio da edição portuguesa de Vertigem Americana (Caderno, 2007) foi redigido pelo inefável DFA. Cansado da vida política após uma curta estadia no MNE patrocinada pelo Eng.º (?) JS, leccionará a última aula da sua longa carreira de professor universitário (entretanto jubilado) no próximo dia 22 de Maio na FDUNL, enquanto calcorreia o país em conferências, ladeado pelo seu grande neoamigo MS com todo o fervor oratório anti-imperialismo americano.
Lido o prefácio de escassas seis páginas, certamente estudado com a mais cuidadoso detalhe, dada a forte sensibilidade mediático-explosiva que o seu nome angariou na opinião pública e na dita publicada em tempos de excitação ideológica de certa forma sinuosa, destaco uma singela asserção que, vinda de quem veio, abalou o cerne das minhas (poucas) certezas:
Os EUA como o «país mais maravilhoso da História!» (pág. 15, 1.ª ed.)

Para um americanófilo empedernido como eu, no que respeita à literatura, ao cinema, à música e até à filosofia inerente ao seu sistema democrático, compreendereis decerto a magnitude do tremor que aquelas palavras me provocaram…

Adiante! Daqui a uns dias postarei a minha apreciação, sem ruído literário de outra espécie que a possa perturbar.

GbA!

segunda-feira, 23 de abril de 2007

Uma questão de género

Este é o título que a revista Máxima, acérrima promotora e apregoadora da liberdade de expressão perante o dealbar do infeliz episódio que opôs Marcelo Rebelo de Sousa a Rui Gomes da Silva e à TVI, resolveu apor à crónica de Frederico Lourenço, cujo título original, escolhido pelo próprio autor, era “O seu marido é gay?»
Lourenço, convidado pela revista feminina para escrever uma breve crónica sobre a temática dos heterossexuais casados com vida dupla, apenas teve conhecimento da mudança de título quando a revista foi publicada. Liberdade de expressão, esse conceito tão relativo…

Como já nos vem habituando, Frederico Lourenço (n. 1963) publicou mais um livro – a média rondará, certamente, os dois por ano –, desta feita um livro de crónicas – o terceiro depois de Amar não acaba (2004) e A máquina do arcanjo (2006) – previamente publicadas em jornais e outros periódicos, embora contenha alguns textos inéditos de natureza ensaística, como os define o próprio autor.
Do prefácio, Lourenço responde aos críticos com o reconhecimento da «pose propositadamente estudada de pedante» que apõe aos seus textos e que a declara como uma «traquinice» à laia de autocrítica, ou de um mero exercício da ironia de pendor vicentino sobre o meio em que se insere.
Provavelmente, Lourenço ensaia uma resposta à afirmação de Armando Silva Carvalho inserida em O Livro do Meio, em co-autoria com Maria Velho da Costa, de que «há uns dias» havia folheado «um livrinho cínico e galante, de um menino bem, um pretty boy, a falar da sua adolescência, vivida nos braços das artes e nos deleites do antes, durante e pós-coital» (pág. 306, ASC e MVC, op. cit.)
A despeito das explicações apoiadas no (meritório) exercício literário da ironia, recurso estilístico que se vislumbra com alguma facilidade em A Máquina do Arcanjo, Frederico Lourenço é pedante, não sendo, todavia, uma característica que diminua a validade do seu trabalho artístico, nem tão-pouco uma espécie de sobranceria que resulta, de alguma forma, de um sentimento de despeito perante o trabalho dos que lhe são contemporâneos nas letras lusas. Atrevo-me até a adjectivá-lo de “pavão”, na forma como essa ave, de plumagem esplendorosa, serviu de conceito a Bertrand Russell quando este explicou que, em termos metafóricos, a felicidade imanente do pavão, ou do seu sucesso na sociedade dos pavões, advém do inebriamento narcísico que a sua própria cauda, feérica, lhe provoca, jamais invejando a dos seus vizinhos e desprovendo a comunidade de uma das grandes causas da infelicidade: a inveja. Creio, de forma quase convicta e se errar não será por muito, que Lourenço não partilha desse tal indutor da miséria humana, até devido ao seu inexcedível grau de erudição.
Eu sou um leitor assíduo das obras originais do autor lisboeta...

Da colecção de crónicas e ensaios, Valsas nobres e sentimentais – título inspirado no trabalho, inicialmente para piano, Valses nobles et sentimentales, de 1911, do compositor francês Maurice Ravel em jeito de tributo à obra incompreendida de Schubert (D. 774 e D. 969) – ressaltam, pela qualidade possível no exercício de escrita de uma crónica, algumas das mais intimistas, como "Norte" (pp. 28-34), "Luz cor de amora" (pp. 47-50) e "Pôr-me a nu" (pp. 150-153), e as inéditas Sete crónicas eruditas sobre Elisabeth Schwarzkopf (pp. 155-201). A segunda retrata um delicioso episódio, ocorrido nos anos 80 do século XX, entre Lourenço e Sophia; e a terceira relata a reacção de colegas e amigos à assunção desabrida da homossexualidade pelo autor a partir de 2002 mediante a publicação das suas obras, chamando a atenção para o seu profundo receio de discriminação negativa que, a partir desse momento, o da revelação, poderia ocorrer no meio académico em que o autor se insere. Para sua imensa admiração, Lourenço descreve o clima de tolerância vivenciada no período pós-confidência propiciado pelos seus pares, mesmo por aqueles que, pela idade, estatuto e respeitabilidade académica, o autor reputara de heterossexuais empedernidos.
No meu modesto entender, ao contrário do professado pelo autor, a homofobia também se manifesta, e com alguma acuidade, nos casos de discriminação positiva. Ela, a homofobia, enquanto doença reveladora de um subdesenvolvimento mental primário, só será erradicada quando num determinado momento, numa determinada sociedade, esse comportamento deixar de ser entendido como desvio ao cânone civilizacional, tanto de forma maligna como de forma benigna, ou se se preferir, tolerante, porque, e perdoem-me a asserção assaz tautológica, só se tolera o que à partida se pode constituir como intolerável.
Apesar de o livro Valsas nobres e sentimentais induzir à interiorização da ideia de uma leitura globalmente satisfatória, há, no entanto, crónicas (ou ensaios) potencialmente geradoras de enfado, principalmente aquelas que se dedicam à evocação de Sophia e da sua raiz homérica, mais consentâneas com uma prelecção de Teoria da Literatura, desfasada, portanto, do público-alvo numa publicação deste tipo.

Classificação: *** (A Ler)

Referência bibliográfica:
Frederico Lourenço, Valsas nobres e sentimentais. Lisboa: Cotovia, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 207 pp.

sábado, 21 de abril de 2007

Foste mesmo Puta?

A interrogação enunciada desta forma por Harry “Coelho” Angstrom é uma das inúmeras chaves que voluteiam pelo texto e, talvez, aquela que de uma forma cabal permite descodificar parte da aura de cruel ingenuidade do protagonista da obra literária Corre, Coelho (Rabbit, Run; 1960) do escritor norte-americano John Updike (n. 1932), este mês publicada pela Civilização Editora.
Corre, Coelho foi o segundo romance publicado por John Updike, tinha apenas 28 anos e já alguns contos e poemas publicados. A crítica foi quase unânime, este romance veio abalar os supostamente sólidos cânones da sociedade americana que lhe foi contemporânea, não só pelos recursos literários que empregou, mas sobretudo pela fidelidade do retrato de uma sociedade empenhada na prossecução do Sonho Americano, perdida no emaranhado de caminhos que conduzem à alienação do indivíduo em nome de valores sociais, morais e religiosos, cujo choque inter-relacional contribui, de forma quase inevitável, para a criação dos tais muros que o apartam da sociedade, promovendo o individualismo profundamente egocêntrico e a excruciante solidão.
Considerado pela revista Time como um dos 100 melhores romances publicados originalmente em língua inglesa entre 1923 e 2005, e eleito pelo
The New York Times – em conjunto com os restantes livros da tetralogia do Coelho, reunidos num só volume – como uma das melhores obras de ficção americana do último quartel do século XX – a par de obras de Roth, DeLillo, McCarthy e Toni Morrison –, Corre, Coelho consegue ser simultaneamente arrebatador e perturbador, com passagens de texto dilacerantes, onde se ergue o tal anel de corda interior que nos sufoca pelas suas secura e aspereza.

«Decide dar a volta ao quarteirão para aclarar as ideias e escolher o caminho que deve seguir. É curioso que aquele que nos faz ir seja tão simples e aquele por onde devemos ir esteja tão cheio de gente.» (pág. 300)

Harry Angstrom, o Coelho, é um jovem de 26 anos, casado com Janice Springer, de quem tem um filho de dois anos, Nelson. Vive em Mount Judge, no Estado da Pensilvânia. Ex-estrela de basquetebol do liceu local, trabalha como anódino vendedor de descascadores de legumes e tubérculos MagiPeel, fazendo demonstrações das façanhas do utensílio ao domicílio.
Um dia perante o reiterado cenário onde figura a mulher prostrada em frente do televisor, completamente ébria, grávida de 7 meses e com um filho para cuidar – nesse dia ao cuidado da mãe, Mrs. Angstrom –, Coelho sai para comprar cigarros e desaparece de carro, abandonando mulher e filho.
Após uma curta deambulação de carro – durou um dia – com o objectivo de se afastar tanto quanto possível de Mount Judge, Coelho inverte a marcha e detém-se em Brewer – terra vizinha de Mount Judge –, procura o seu antigo treinador, o decadente Tothero, e envolve-se com uma prostituta, Ruth, com a qual passará a viver durante dois meses. À medida que se vai envolvendo na sua segunda vida, Coelho conhece o jovem Reverendo Eccles – que o procura –, pastor da Igreja Episcopaliana, à qual pertencem os seus sogros. Eccles será o elo de ligação de Harry com Janice, os Springers e os Angstroms, aconselhando-o a voltar para refazer o lar que acabara de destruir.
Ao fim de dois meses recebe de Eccles a notícia que a sua mulher se encontra no hospital local em trabalho de parto… Harry corre. Corre, Coelho!

Esta é a história de um rapaz que não cresceu apesar de já haver dobrado a segunda metade da sua terceira década de existência.
A culpa, tão humana, a mácula do mundo que se materializa no pesado fardo da vivência quotidiana, volatiliza-se em Coelho, tendo por reagente a marca indelével e distintiva do seu profundo egoísmo, a carapaça protectora que lhe foram construindo e que o aparta dos outros, tornando impossível o estabelecimento de uma relação humana e afectiva duradoura, porque esse é Coelho, o eterno insatisfeito, irascível, pronto a conceder a indulgência do perdão – a culpa acaba sempre por ser dos outros – e a transforma mais tarde num ódio incontrolável, denegando a importância dos sentimentos dos que lhe são próximos por justaposição com o seu imensamente superior sofrimento.

Classificação: ***** (Muito Bom)

Referência bibliográfica:
John Updike, Corre, Coelho. Porto: Civilização, 1.ª edição, Abril de 2007, 301 pp. (tradução de Carmo Romão; obra original: Rabbit, Run, 1960).

sexta-feira, 20 de abril de 2007

Como?

«Eu gosto de ser amada mesmo que barrada de excremento.»

Este epigrama, que se insere na muito em voga corrente poético-escatlógica lusa, foi engenhosamente obrado por Rita Ferro, autora de Sexo na Desportiva, em entrevista concedida à SIC, a propósito da sessão de lançamento do livro de Helena Sacadura Cabral, Porque é que as mulheres gostam dos homens.

Eis um belo exemplo da literatura peristáltica, cada movimentação expulsiva de criatividade vai-nos mentalmente atolando nesta imensa cloaca chamada Portugal.

quinta-feira, 19 de abril de 2007

Nos Escaparates

Vencedor, na segunda-feira passada, do Pulitzer 2007 na categoria de obra literária de ficção, A Estrada (The Road, 2006) do escritor norte-americano Cormac McCarthy já se encontra à venda em Portugal, editado pela Relógio D’Água, com tradução de Paulo Faria.

Nota: McCarthy também figura na lista de finalistas para o IMPAC Award 2007, com o seu romance de 2005 No Country for Old Men, ainda sem edição em Portugal.





Obras de McCarthy editadas em Portugal, para além de A Estrada:
  • O Guarda do Pomar – Relógio D’Água, 1996 (The Orchard Keeper, 1965);
  • Filho de Deus – Relógio D’Água, 1994 (Child of God, 1974);
  • Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste – Relógio D’Água, 2004 (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985);
  • Belos Cavalos – Teorema, 1994 (All the Pretty Horses, 1992)*.

*Obra que, conjuntamente com The Crossing (1994) e Cities of the Plain (1998), integra a denominada Trilogia da Fronteira do autor norte-americano.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

Velvel*

«Sete por cento deste país está a suicidar-se através do álcool. Outros três por cento com narcóticos. Uns sessenta apenas se deixam andar, sucumbindo ao tédio. Vinte por cento venderam a alma ao diabo. E depois há a pequena percentagem que quer viver. Essa é a única coisa significativa no mundo de hoje. São as únicas duas classes que realmente existem. Uns querem viver, mas a maioria não. (…) Não querem. Se assim não fosse, para quê tanta guerra? E digo-lhe mais. O amor dos mortos só quer dizer uma coisa. Querem que morramos com eles. Porque nos amam.» (pág. 107)

Estas são as palavras do estranho psicólogo – um génio ou um manipulador, um simples charlatão? – Dr. Tamkin, que conduz o protagonista, Tommy Wilhelm, ou Wilky Adler, ou simplesmente… (*), na sua peregrinação interior na véspera do Dia da Expiação, ou do perdão, um dos dias mais importantes da fé judaica: o Yom Kippur.

Saul Bellow (1915-2005), galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1976, publicou vinte anos antes (1956) a sua quarta obra de ficção, a novela Aproveita o Dia (Seize the Day), agora publicada em Portugal pela Texto Editores, que, ditosamente, tem vindo a publicar ou a republicar as grandes obras dos grandes autores da literatura do século XX, especialmente os galardoados com o Nobel – para além de Bellow, de quem a editora já publicou as obras A Vítima (The Victim, 1947) e Henderson, O Rei da Chuva (Henderson the Rain King, 1959), constam da colecção os nomes de Pearl Buck (Nobel em 1938), William Golding (Nobel em 1983) e Nadine Gordimer (Nobel em 1991).

Wilhelm é um nova-iorquino quarentão a atravessar uma profunda crise de autoconfiança, acelerada pela dura realidade dos sérios problemas financeiros por que vem passando. Filho de um rico e, outrora, proeminente médico – agora reformado –, divorciado, com ex-mulher e dois filhos para sustentar, a sua carreira profissional cedo foi manchada pelo logro, quando decidiu abandonar os estudos universitários na Penn State University, ao arrepio da firme vontade de seu pai, para abraçar uma carreira de actor em Hollywood. Derrotado no seu devaneio cinematográfico – apenas participou como figurante num filme de quarta categoria, onde vestia um kilt e fingia que tocava uma gaita-de-foles, que lhe valeu uma gripe brutal – decide regressar a Nova Iorque, onde enceta a sua carreira de vendedor, de algum sucesso, na Rojax Corporation, mais tarde ensombrada pela necessidade de partilha da zona de vendas com o genro do proprietário da empresa, facto que conduziu ao seu despedimento.
Após o divórcio, Wilhelm passa a viver num quarto no 23.º andar do Hotel Gloriana, na Broadway – hotel esse em que já residia o seu pai, se bem que… com 26 andares de permeio:

«Por que raio vives aqui comigo, num hotel, e não em Brooklyn com a tua mulher e os teus dois filhos? Não és nem viúvo nem solteiro. Agora eu que aguente as tuas confusões. Estás à espera que faça o quê com elas?» (pág. 32)

A sua vida atinge o ponto de ebulição. Margaret, a sua ex-mulher, não só não lhe concede o divórcio, como se recusa a trabalhar, com o argumento de acompanhar a educação dos filhos, dada a ausência do pai, e vive exclusivamente da sua pensão. O pai recusa-se a ajudá-lo. Wilhelm socorre-se do estranho Dr. Tamkin – também um hóspede no Hotel Gloriana – estabelecendo-se uma relação na qual Tamkin, à laia de guia e de conselheiro espiritual e de analista da bolsa de mercadorias, usufrui de um ascendente moral sobre o depauperado Wilhelm.
É nesta alegórica relação entre orientador/orientado que se baseia esta deleitável narrativa. Apesar das suas escassas 127 páginas (na edição portuguesa referenciada).

As doutas dissertações impregnadas de filosofia de Tamkin, presumivelmente de pacotilha são baseadas, segundo o próprio nas leituras do «que há de melhor na literatura, ciência, filosofia (…) Korzybski, Aristóteles, Freud, W. H. Sheldon e todos os grandes poetas.» (pág. 77).

Um notável exemplo:

«Quem és tu?» Ninguém. É essa a resposta. Ninguém. No fundo – nada! Claro que ninguém aguenta isso e quer ser Alguma coisa e então tenta. Mas em vez de ser Alguma Coisa, o homem finge que o é diante de toda a gente. Não podemos ser assim tão severos connosco mesmos. Uma pessoa tem que amar um bocadinho. Por exemplo, arranja um cão (…) ou dá dinheiro a uma instituição de caridade. Mas isso não é amor, pois não? O que é? É egotismo, puro e duro. Vaidade é o que é. E ambição social. O interesse da alma fingida é o mesmo da vida social, do mecanismo social. Essa é a grande tragédia da vida humana. Oh, é terrível! Terrível! Não somos livres. O nosso grande Judas está dentro de nós e vende-nos. Temos de lhe obedecer como escravos. Ele obriga-nos a trabalhar como bestas. E para quê? Para quem?
(…)
– O objectivo é manter esse fingimento. A alma verdadeira é que paga as favas. Sofre, adoece e apercebe-se de que a alma fingida não pode ser amada. Porque é uma mentira. A alma verdadeira ama a verdade. E quando a alma verdadeira sente isso, quer matar a alma a fingir. O amor transforma-se em ódio. Então a pessoa torna-se perigosa. Uma assassina. Só pensa em matar a alma a fingir.
» (pág. 76)

Vive o aqui e o agora, aproveita aquilo que o presente te dá, não penses no passado porque esse só te tortura e o futuro é uma incerteza, a «natureza só quer saber de uma coisa: o presente (…) uma espécie de onda grande, enorme, gigantesca, colossal, brilhante, bela, plena de vida e de morte, a tocar os céus, a pousar nos mares.» (pp. 96-97).
Esta é torturante alegoria sobre o falhanço do Sonho Americano, a falta de soluções para o insucesso financeiro, materializado na vida fracassada do protagonista, que só se poderá curar através da redenção espiritual, num mundo onde a acção do Homem jamais poderá ser neutra, este tem, no entanto, a faculdade da escolha: a dicotomia criação versus destruição.

Aproveita o Dia é de uma profundidade sufocante, apenas ao alcance de um génio literário, especialmente se atentarmos na forma magistral como os personagens são descritos e adornados, onde, bem ao estilo de Bellow, até lhes conseguimos descortinar os seus traços fisionómicos menos visíveis, como se, de súbito, pela simples descrição impressa em caracteres sobre o branco do papel do livro, houvéssemos olhado para uma fotografia acabada de tirar – daí resultou a minha séria dúvida sobre a classificação da obra como novela, ao invés de romance –, e no estilo narrativo fluido e sem qualquer vestígio de adiposidade acessória, de pura divagação.

Carpe diem!

Classificação: ***** (Muito Bom)

Nota: *Lobinho (pequeno lobo) em iídiche.

Referência bibliográfica:
Saul Bellow, Aproveita o Dia. Lisboa: Texto editores, 1.ª edição, Abril de 2007, 127 pp. (tradução de Sofia Gomes; obra original: Seize the Day, 1956).

terça-feira, 17 de abril de 2007

Serviço Público

Carlos Vaz, visita frequenta aqui da casa, lança o seu último trabalho Capricho 43, vencedor do Prémio Literário António Paulouro 2006, última obra da Trilogia da Experiência, segue-se a Seres de Rã e A Casa de Al’isse.
«Na obra Capricho 43, Carlos Vaz procurou, desta vez, originar experiências com o encontro da série Caprichos, de Goya, principalmente com aquela que é intitulada de Capricho 43 e que deu origem ao título da obra. Por razões que têm a ver com este desenho, o autor confessou-nos que, de início, o livro estaria para se chamar O Sonho da Razão Produz Monstros.»

Carlos Vaz, Capricho 43 (Labirinto, 2007) –
A Casa dos Sonhos do Sono (blogue do autor).

Apresentação da obra: quarta-feira, dia 18, pelas 21h30m, na Feira do Livro de Braga.

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Acabou de sair para o mercado o n.º 9 da revista Nada (carregar na imagem para seguir para a página oficial da revista):


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Exposição: Jonas

Espaço Ilimitado - Núcleo de Difusão Cultural / 20 de Abril > 19 de Maio 2007



Inauguração: Sexta-feira, 20 de Abril, entre as 22h e as 24h.

Para mais informações: R. de Cedofeita, 187 – 1.º andar // 4050-179 porto // Telemóvel 91 3812544 // espacoilimitado@gmail.com

Pulitzer 2007

Foram hoje (ontem, dia 16) anunciados os vencedores do Pulitzer Prize do ano de 2007.
Na categoria “Ficção” venceu Cormac McCarthy – a quem B. R. Myers apontou no seu Reader’s Manifesto como epítome da “prosa musculada”, apresentando-o como sujeito de sobreavaliação literária pelo feudo da crítica norte-americana – com o seu romance The Road – suponho que já se encontra no prelo para o mercado editorial português, sob o título A Estrada, com chancela da editora Relógio D’Água.

Foram também atribuídas duas menções honrosas: uma ao autor de Fahrenheit 451, Ray Bradbury, hoje com 86 anos, pela sua «distinta, prolífica e altamente influente carreira como autor, sem par, nas áreas da ficção científica e do fantástico», e a outra, a título póstumo, ao fabuloso – e meu muito dilecto – compositor e saxofonista de jazz John Coltrane, que, por complicações hepáticas, faleceu prematuramente aos 40 anos de idade, em Julho de 1967.

Ver aqui os prémios Pulitzer 2007 para as restantes categorias.

segunda-feira, 16 de abril de 2007

Haverá chuva esta noite

Estas são as últimas palavras de Banquo, personagem da tragédia Macbeth de William Shakespeare, antes de haver gritado ao filho, Fleance, que o acompanhava, para que fugisse e contasse ao mundo a traição, e de haver sucumbido às mãos de um grupo de assassinos a soldo do seu amigo e companheiro do exército real, o sequioso Macbeth.
«Deixa a chuva cair», disse o 1.º assassino em jeito de resposta (3.º Acto, 3.ª Cena).

Nelson Dyar, jovem nova-iorquino, caixa de um banco, resolve dar uma volta à sua vida enfadonha de cinzento empregado bancário e embarca rumo a Tânger, onde o espera um amigo, Jack Wilcox, com a promessa de emprego na sua agência de viagens, situada na zona internacional da cidade que, em breve, seria definitivamente integrada no território de Marrocos após a concessão da sua independência pela França em Março de 1956.

Paul Bowles, poeta, romancista, contista, tradutor, músico, e, sobretudo, viajante – condição plasmada nos seus célebres livros de viagens –, nascido em 1910 em Nova Iorque, morreu em Novembro de 1999 em Tânger, aquela que viria a ser a sua única e definitiva morada a partir de 1947. Amigo, contudo não adepto da corrente artística, dos beatniks Burroughs e Ginsberg – que fizeram constantes romagens hedonistas à sua casa em Tânger –, assim como de Gertrude Stein, Patricia Highsmith, Tennessee Williams, Truman Capote e de Gore Vidal que sobre os seus contos disse tratarem-se do melhor alguma vez publicado nos Estados Unidos da América, Bowles, após carreira musical de relativo sucesso, impôs-se desde logo no mundo das letras com o seu primeiro romance O Céu que nos Protege (The Sheltering Sky, 1949), aclamado internacionalmente como uma obra-prima da ficção norte-americana e considerado em 2005 pela revista Time como um dos 100 melhores romances em língua inglesa desde 1923 – data de fundação da revista. Em 1990, a obra seria adaptada ao cinema pelo realizador italiano Bernardo Bertolucci, com interpretações de Debra Winger e John Malkovich, que em Portugal recebeu o título Um Chá no Deserto.
Dos quatro romances do autor, Deixa a Chuva Cair (Let It Come Down, 1952) foi o seu segundo, reeditado este ano em Portugal pela editora Assírio & Alvim.

{«Somos todos monstros», disse Daisy com entusiasmo. «É a Era dos Monstros. Por que razão é que a história da mulher e dos lobos é tão terrível? Conhece a história, em que ela tem um trenó cheio de crianças, a atravessar a tundra, e os lobos seguem-na e ela vai atirando as crianças, uma após outra, para aplacar as feras. Há cem anos atrás todos acharam isto horrível. Mas hoje em dia é ainda pior. Muito pior. Porque nessa altura era remoto e improvável e agora passou para a esfera do possível. É uma história terrível, mas não por a mulher ser um monstro. De maneira nenhuma. Mas porque o que ela fez, para se salvar, é exactamente o que todos nós fazemos. É terrível por ser tão desesperadamente verdade. Eu fazia isso, todos nós sabemos que faríamos isso. Não é assim?»} (pp. 258-259)
Tânger, a pequena Nova Iorque do Norte de África, o caldeirão de culturas, mas simultaneamente o local onde impera o negrume – simbolizado pelo carregado do céu e da chuva que não pára de cair – da corrupção, do contrabando de mercadorias e do tráfico de divisas, da futilidade da classe dominante ocidental e dos autóctones ocidentalizados, da miséria humana, da luta imperial e onde se digladiam as potências internacionais – assiste-se ao dealbar da Guerra Fria – sobre os escombros de um conflito mundial fratricida que houvera acabado havia pouco tempo.
Como referi, Dyar, o protagonista deste romance negro, é um jovem que parte à aventura e enfrenta a decadente sociedade do território (agora) marroquino, «um Zé-ninguém» como Bowles o define no prefácio da obra, sendo «a única personagem totalmente inventada; para todos os outros» usou «como modelo, os verdadeiros habitantes de Tânger.» (pág. 13)
Deixa a Chuva Cair é um romance desconcertante que se constrói a partir da babilónia de idiossincrasias dos personagens do romance, como fiéis estereótipos daqueles que na altura gravitavam em torno da podridão da sociedade da Zona Internacional.
Dividido em quatro partes, o romance parte de uma fiel descrição daquilo que os olhos de Dyar vêem enquanto decorre o seu turbulento processo de instalação na cidade: as pessoas, os locais de diversão, os costumes. À medida que o protagonista se vai embrenhando do miasma local, o romance vai lentamente abandonando o seu tom descritivo, levemente matizado de algum lirismo, e percorre uma fase detectivesca, com laivos de romance de espionagem, bem ao – melhor – estilo de Greene, para na última parte degenerar num solilóquio reflexivo, intimista e devaneante, que o próprio autor confessa ter sido escrito em Xauen, isolado nas montanhas, e sob a influência alucinatória do Kif:

«Desliguei os comandos e deixei que Outra Espécie de Silêncio [Livro Quatro] se guiasse sozinha, sem lhe fornecer qualquer direcção consciente. Foi tão longe quanto podia, depois parou e assim acabou o livro.» (do prefácio do autor, pág. 13).
Deixa a Chuva Cair é cativante e tal como um bom vinho vai encantando à medida que se vai consumindo, deixando um ligeiro e prolongado travo de satisfação e de prazer assim que termina a sua degustação.

Classificação: **** (Bom)

Referência bibliográfica:
Paul Bowles, Deixa a Chuva Cair. Lisboa: Assírio & Alvim, 1.ª edição, Março de 2007, 345 pp. (tradução de Ana Maria Freitas; obra original: Let It Come Down, 1952).

Nota: apenas uma chamada de atenção para a tradução, pouco cuidada na estrutura sintáctica e gramatical do texto. Um exemplo, a regência de verbos pela preposição “de”, que, de certa forma, tem vindo a ser afectada pelo estribilho de Bimbo da Costa no Conta Informação da RTP com o famoso «penso eu de que…», levando à substituição de todos os “de que” correctos por “que”. Estou convencido de que essa é a realidade.

sábado, 14 de abril de 2007

Man Booker International Prize 2007

Este prémio, ao contrário do seu irmão mais velho, o Man Booker Prize for Fiction, que premeia anualmente obras de ficção apenas publicadas por autores dos países da Commonwealth e da Irlanda, galardoa bienalmente autores de todo mundo pela sua carreira literária e desde que parte considerável das suas obras haja sido publicada em língua inglesa.
Este ano o júri é presidido pela autora e crítica literária norte-americana Elaine Showalter, coadjuvada pelo escritor irlandês Colm Tóibín e pela autora sul-africana, galardoada com o Nobel da Literatura em 1991, Nadine Gordimer.
Eis a lista de 15 candidatos, pertencentes a 10 países, sendo que 4 autores não publicam a sua obra originalmente em inglês:

  • Chinua Achebe (Nigéria)
  • Margaret Atwood (Canadá)
  • John Banville (Irlanda)
  • Peter Carey (Austrália)
  • Don DeLillo (Estados Unidos)
  • Carlos Fuentes (México)
  • Doris Lessing (Irão/Reino Unido)
  • Ian McEwan (Reino Unido)
  • Harry Mulisch (Holanda)
  • Alice Munro (Canadá)
  • Michael Ondaatje (Sri Lanka/Canadá)
  • Amos Oz (Israel)
  • Philip Roth (Estados Unidos)
  • Salman Rushdie (Índia/Reino Unido)
  • Michel Tournier (França)

O prémio de 2005 foi atribuído ao escritor albanês Ismail Kadaré, pelo júri constituído por John Carey (presidente), Alberto Manguel e Azar Nafis, havendo derrotado nomes como o eterno nomeado Philip Roth, Atwood, García Márquez, Bellow, Grass, Kundera, McEwan, Tabucchi ou Updike.

Nota: E assim, enquanto me debato com o terrível síndrome de Blogger’s Block, este pasquim intimista vai passando por um banal periódico que se limita a transcrever comunicados para a imprensa. Melhores dias virão! Creio…

quinta-feira, 12 de abril de 2007

In Memoriam



«Everything was beautiful, and nothing hurt.»

Kurt Vonnegut, Jr.
(11 de Novembro de 1922 – 11 de Abril de 2007)

Desenho e texto do autor (lápide com epitáfio) em Matadouro Cinco ou a Cruzada das Crianças (Lisboa: Editorial Futura, 1973, pág. 143 (248 pp.); tradução de Maria Joana Labro; obra original: Slaughterhouse-Five, or The Children's Crusade, 1969).

Enfim, a Civilização…

Eis a reedição do primeiro livro da tetralogia de John Updike "Corre, Coelho" (Rabbit, Run; 1960) sobre as atribulações do personagem Harry “Rabbit” Angstrom, que prosseguem com Rabbit Redux (1971), Rabbit Is Rich (1981, vencedor de 3 prémios literários: o National Book Critics Circle Award, o Pulitzer e o American Book Award) e Rabbit At Rest (1990, vencedor de 3 prémios literários: o National Book Critics Circle Award, o Pulitzer e o The Howells Medal by the American Academy of Arts and Letters), terminando com uma pequena novela Rabbit Remembered publicada num livro de contos em 2001 (poderia ser uma pentalogia...)

O livro havia sido editado em Portugal, no longínquo ano de 1965, pelas Publicações Europa-América, com tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, prontamente banido pela Censura do benevolente regime do recentemente entronizado Grande Português.

Uma verdadeira pedrada no charco no vaporoso mercado editorial luso.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

Retrato de um Soberano

Não sei se alguém, dos poucos que por aqui passam diariamente e que ainda dispõem de alguma reserva mental para me aturar lendo os textos que por aqui publico, já se perguntou por que razão este blogue está cada vez mais circunscrito aos livros e à literatura. Devaneio meu… Talvez... E quiçá, se alguém houver, pode até nem se questionar sobre essa aparente inflexão, limitando-se a seguir uma hiperligação, à guisa de um reflexo condicionado, assim que se liga ao ciberespaço, e certamente esse não será assunto que se possa afigurar como fonte imediata do meu permanente estado de inquietação.
Um facto indesmentível, que facilmente advém por via empírica, é que a impunidade dos poderosos, sejam eles
políticos ou os imaculados senhores magistrados – de direito ou do Ministério Público – recrudesce de dia para dia, em progressão geométrica. E num país onde não se vislumbra a mínima possibilidade de um esforço colectivo e concertado para alterar este estado das coisas, dados os interesses maiores da capelização dos interesses individuais, a vontade de lutar vai-se desvanecendo como o indulgente oxigénio que se esvai para manter acesa a chama. É científico e irrefutável, sem essa massa crítica este país continuará redondo como um ovo, sem ponta por onde se lhe pegue (estou a citar alguém, mas não me lembro quem).

Assim, continuo na literatura, efabulando, a rir e a chorar com mais vontade, folheando páginas à luz de leitura com o televisor ligado, previamente emudecido, à hora do Telejornal, fingindo viver numa espécie de Arcádia. Um autismo auto-infligido, pois bem!

Para dar em definitivo a volta no parafuso jamesiano, consultada as minhas estantes dedicadas à ficção literária, creio serem estas as únicas obras de Henry James disponíveis no mercado nacional, devidamente traduzidas na nossa língua (e assim o vai permitindo a dimensão intelectual deste país, que nem pela língua se faz grande):

  • A Fera na Selva (Assírio & Alvim) – The Beast in the Jungle, 1903;
  • A Herdeira (Estampa), que poderá surgir sob o título original noutras editoras: Washington Square, 1880;
  • A Volta no Parafuso (Relógio D’Água), que poderá surgir sob o título “Calafrio” noutras editoras – The Turn of the Screw, 1898;
  • Daisy Miller (Presença) – 1878;
  • Infidelidades (Círculo de Leitores) – The Golden Bowl, 1904;
  • O altar dos mortos e outras histórias sobrenaturais (Estampa) – The Altar of the Dead, 1895; inclui, para além do conto referido (que empresta o seu nome a parte do título da colectânea), os contos: “O romance dos De Grey” (De Grey – A Romance, 1868); “O último dos Valerii” (The Last of the Valerii, 1875); “Nona Vincent” (1892) e “Sir Dominick Ferrand” (1892);
  • O Desenho no Tapete (Relógio D’Água) – The Figure in the Carpet, 1896;
  • Os Europeus (Clássica Editora) – The Europeans, 1878;
  • Os Manuscritos de Jeffrey Aspern (Relógio D’Água) – The Aspern Papers, 1888;
  • Retrato de uma senhora (Relógio D’Água) – The Portrait of a Lady, 1881.

Nota: Como não se prevê a edição em português de mais obras de Henry James da sua vastíssima bibliografia activa, aqui fica não só a sugestão de consulta de alguns textos publicados gratuitamente pelo Projecto Gutenberg, como também as fabulosas edições Penguin Classics, com prefácio de, entre outros, ilustres autores e críticos literários (com especial atenção para o texto de introdução de Gore Vidal em The Golden Bowl).

terça-feira, 10 de abril de 2007

Ainda o Mestre

Henry JamesHá cerca de um mês dava aqui a notícia que, finalmente, o romance The Master do autor irlandês Colm Tóibín havia sido editado em português de Portugal.
O suplemento Ípsilon do jornal
Público dava-lhe destaque através de um excelente artigo assinado por Luís Miguel Queirós que dava conta, entre muitos outros assuntos, da febre jamesiana que assolou os espíritos literários de autores de língua inglesa. Entre eles contava-se David Lodge com o seu romance Autor, Autor – a exultação do público que clama pela presença do autor da peça em palco para uma ovação –, prontamente editado em Portugal pelas mãos das Edições Asa e que, havendo-me recordado da ocasião – e julgo não estar enganado –, mereceu a presença do escritor britânico por terras lusas para a apresentação do livro.
Devidamente apetrechado da minha oneomania literária – conceito aprofundado, com rigor científico, pela revista Certa dos hipermercados Continente [verídico, aparte a cientificidade] – lá adquiri o exemplar de Lodge que abri para de súbito fechar. Pareceu-me grotesca uma primeira parte, com pouco mais de quarenta páginas, recheada de diálogos e de coloquialismos da criadagem quando o tema central abordava precisamente o epítome da estética literária e do bom gosto, mesmo que a intenção de Lodge fosse o da destrinça de grandezas pela justaposição de hierarquias ou o do mero confronto de estilos.
Assim que saiu O Mestre, retomei o que abandonara havia pouco mais de um ano, o romance de David Lodge. E não me enganei por muito, apesar da, prognosticada por mim, inversão nas restantes três partes, mas:

«Henry levantou-se da cama e esvaziou copiosamente a bexiga para um bacio. Ao arrumá-lo de novo na mesa-de-cabeceira sentiu, como sempre uma leve pontada de remorso por dar à criada a tarefa de o despejar (…)» (pág. 240)

Para mais adiante referir, após James, ansioso, haver encontrado o anúncio no jornal sobre a estreia para essa noite da sua peça Guy Domville:

«Aguardou, esperançado, algum movimento intestinal que pudesse pressagiar evacuação, mas não recebeu essa graça.» (pág. 244)

Lodge dessacraliza o mito, como para satisfazer a curiosidade escatológica de um público voyeurista, sedento pela revelação de pormenores sórdidos das figuras públicas mesmo que mortas e enterradas há quase uma centena de anos. É nisto que a obra de Lodge, apesar de versar sobre a mesma matéria, se situa nos antípodas do romance de Tóibín.
Em suma, sobre Henry James, apetece-me ironizar, parece que Lodge escreveu para a TV Guia e Tóibín para a Yale Review.

Apesar de tudo, isso não pretende significar que Autor, Autor não tenha os seus méritos. Julgo até que, na íntegra, consegue alcançar os seus objectivos, não conferindo, de forma propositada, juízo de valor algum ao próprio autor, o que em certas situações empresta um carácter mais informativo à biografia romanceada. Como exemplo, deixo aqui ficar este episódio delicioso, apesar de ser susceptível de encerrar uma aparência, de certa forma, mórbida, que retrata o processo de escrita de uma carta pela mão de Henry, que irá ser enviada ao seu irmão mais velho, William, a viver nos Estados Unidos, relatando os últimos minutos de vida da irmã Alice na sua casa em Londres:

«Nesse momento, e de uma forma estranha, difusa e comovente, o rosto dela pareceu tornar-se mais claro. Fui abrir a janela, para deixar entrar um pouco mais de luz da tarde (era um domingo luminoso, agradável e silencioso), e quando voltei para junto do leito ela [Alice James] tinha exalado o seu último suspiro.» Leu o parágrafo outra vez, riscou o lugar-comum «último suspiro» e substituiu-o por «o suspiro a que mais nenhum se seguiu». (pág. 169)

Henry, o esteta, revela-se até nestes momentos de infortúnio.
A propósito da culpa e do remorso sentidos pela morte da sua querida amiga Constance Fenimore Woolson, Henry lembrou-se das palavras de acusação escritas pela mãe de Flaubert numa carta que endereçou ao próprio filho e que este lhe contou, em tom de piada, num encontro de escritores na sua casa em Paris:

«A tua mania das frases secou-te o coração» (pág. 236).

Referência bibliográfica:
David Lodge, Autor, Autor. Porto: Asa, 1.ª edição, Novembro de 2005, 426 pp. (tradução de Ana Maria Chaves; obra original: Author, Author, 2004).

segunda-feira, 9 de abril de 2007

A Voz do Mestre

Terminei há uns dias a leitura de O Mestre – livro escrito pelo autor irlandês Colm Tóibín e publicado em Portugal pela Dom Quixote em Fevereiro deste ano.
Terminei há muito (pouco) a sua leitura… Li os agradecimentos, li a contracapa e a badana e dei por mim a desejar que o feitiço se estendesse por uns dias mais, como se ao reler a primeira página do primeiro capítulo, sob o marco de Janeiro de 1895, pudesse conservar as palavras soltas do génio que, porventura, o áspero fragor dos dias me impediu de ler:

«Por vezes, à noite, sonhava com os mortos – rostos familiares e outros, meio esquecidos, fugazmente evocados.» (pág. 9)


Esta é a evocação do autor por todos consagrado como “O Mestre”, Henry James (Nova Iorque, 15 de Abril de 1843 – Londres, 28 de Fevereiro de 1916), escreveu 20 romances, 112 contos, 12 peças de teatro e inúmeros artigos de crítica literária (números retirados da página da internet da The Literature Network).
O que dizer de um livro que nos deixa literalmente presos da primeira à última páginas?
Tóibín começa por descrever a vida de James a partir do fracasso na estreia em Londres da peça de teatro Guy Domville em Janeiro de 1895. O livro prolonga-se por onze capítulos, até ao dealbar do último ano do século XIX, o fim do Inverno de 1900.
Pelo meio, Tóibín vai descrevendo o Mestre e a sua vida recorrendo a inúmeros flashbacks, desde a sua infância em Newport, Rhode Island, onde se misturam as várias deambulações do passado e do presente do artista entre Florença, Veneza, Roma ou Paris, e até Dublin onde decorre parte da acção do segundo capítulo, como hóspede da fútil e histriónica Lady Wolseley e se manifesta, por antítese, a estética do escritor anglo-americano.
Tóibín, com recurso à sua narrativa deslumbrante e dotada de uma profunda sensibilidade, dir-se-ia que jamesiana, parece querer realçar a condição de expatriado de Henry James – frequentemente invocada ao longo do romance – não como consequência de uma inadaptação resultante de uma a vida atribulada de um americano – que acabara de viver os horrores da Guerra da Secessão – que se estabeleceu em definitivo em Inglaterra para aí desenvolver a sua veia artística, mas como um cidadão do mundo e um estudioso do comportamento humano, que se imiscui na vida mundana da aristocracia e das artes na Europa, com o objectivo de contemplar o belo e as suas derrogações e com esses ensinamentos puramente espirituais criar a obra. É esse o padrão de exigência de James, apesar do aspecto mundano e até hedonista da alta sociedade que lhe foi contemporânea e através da qual pôde construir os seus mais belos relatos.
Em suma, a frivolidade, o pretensiosismo, a vaidade, a ostentação das elites que James frequentava eram para si, para além de um certificado contra o perigo do doloroso esquecimento, um mero instrumento de trabalho, uma escola, que lhe permitiam delinear os traços, sob a forma de caracteres gravados em papel, da beleza e do seu admirável poder de contemplação da natureza e da sua interacção com o ser humano. Por isso amava a velha Europa, a civilização sem o ferrete do puritanismo americano, principalmente a Itália onde a beleza se exibe em todo o seu esplendor, de forma indelével e despretensiosa.
Tóibín captou com a sua prosa todo o prazer estético que enchia a alma do Mestre:

«Henry adorava a suavidade das cores da praia perto de Rye, a luz inconstante, as nuvens que pareciam feitas de espuma e que se moviam ao longo do céu como que obedecendo a um desígnio. Passara em Rye os últimos Verões, e, naquele Verão em particular, enquanto caminhava com um passo vivo, enérgico, procurando – por uma vez – fruir o dia sem fazer planos, não conseguia parar de se perguntar o que mais desejaria naquele momento, ao que invariavelmente respondia que só queria mais daquilo – calmas horas de trabalho, dias calmos, uma bela casa, bela e pequena, e aquela luz de Verão tão branda. Antes de ter deixado Londres, comprara a bicicleta que, agora, estava a sua espera no caminho da praia. Apercebeu-se de que nem sequer queria que o passado voltasse, que aprendera a não pedir isso. Os seus mortos não regressariam. Nunca mais voltaria a sentir o medo de os ver partir e isso proporcionava-lhe uma estranha satisfação, o sentimento de que, agora, não queria outra coisa senão que o tempo passasse lentamente.
Todas as manhãs, no terraço da casa, sentia-se assaltado pelo mesmo desejo. Daria tudo para ser capaz de encontrar uma maneira de capturar aquela imagem de beleza e de a guardar perto de si. O terraço, revestido com tijoleira e encurvado como a proa de um navio, pairava sobre uma vista que era simultaneamente tão pura e tão mutável como a amplidão do mar. E, lá em baixo, estendia-se Rye, a menos inglesa de todas as povoações inglesas, com os seus telhados de telha vermelha e ruas sinuosas e cachos de edifícios, com as suas colinas e o empedrado das ruas, tal e qual uma cidade italiana, com a sua atmosfera sensual, mas também contida e austera. Agora, caminhava quase todos os dias pelas ruas de Rye, estudando as casas, as velhas lojas com janelas de caixilhos pequenos, a torre quadrada da igreja, a beleza do tijolo, moldada pelos elementos. Quando voltava para casa, o terraço era o seu camarote de ópera, o local onde os seus olhos podiam abarcar todos os reinos da terra. O seu terraço, pensava, era tão amável como uma pessoa, talvez mesmo mais. Lamentava não poder comprar aquela casa; sentia já um claro ressentimento em relação ao proprietário só porque este tencionava reocupá-la em fins de Julho.
» (pp. 113-114)

O Mestre capta a essência de Henry James e os seus fantasmas. O fracasso no mundo do teatro; a triste aceitação da falta de sensibilidade dos seus coetâneos, mais voltados para o melodrama e a vacuidade da ostentação; o seu processo criativo engendrado por pequenas notas que ia retirando dos episódios do dia-a-dia; o seu, muito seu, conceito de amor, casto, sem entrega física, um mera entrega espiritual de sintonia estética, que por vezes lhe emprestavam uma pátina de algum distanciamento e até insensibilidade perante o relacionamento com aqueles que o rodeavam, os amigos e a família; as mulheres da sua vida – principalmente a sua querida irmã Alice James, a sua prima Minnie Temple, e a sua melhor amiga, a escritora Constance Fenimore Woolson –, cujas mortes trágicas lhe trouxeram o pungente remorso do seu percebido egocentrismo, o qual mais não era que uma forma de dedicação e de fidelidade pela arte que, decerto, sairia prejudicada pela prisão do relacionamento íntimo e permanente; os homens da sua vida – especialmente o seu primo Gus Barker, decepado à vida pelos horrores da guerra civil americana, e o jovem escultor Hendrik Christian Andersen – e a sua profunda atracção reprimida pela sua arreigada pudicícia – por exemplo exprobrava o exibicionismo devasso de Oscar Wilde e do seu círculo de amigos – que o faziam sofrer amargamente, o horror ao toque íntimo e às relações sexuais, como prejudiciais ao simples prazer da contemplação da beleza física.

O único problema desta obra admirável – como referi no início deste texto – é a dificuldade com que nos resignamos à evidência que para além da página 446 apenas há os agradecimentos do autor. No entanto, o fascínio subsiste e a ela hei-de voltar muito em breve.

Classificação: ****** (Obra-prima)

Referência bibliográfica:
Colm Tóibín, O Mestre. Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Fevereiro de 2007, 447 pp. (tradução de José Vieira de Lima*; obra original: The Master, 2004)

*apenas uma pequena referência para o tradutor (também tradutor de Auster em Portugal): excepcional, com as notas de rodapé indispensáveis.

O Berço


domingo, 8 de abril de 2007

IMPAC 2007

Já foram anunciados os romances finalistas do prémio literário mais apetecido do planeta, e isto em termos pecuniários, a galardoar uma obra de ficção: o International IMPAC Dublin Literary Award.
Todos os anos o Dublin City Council, através da administração das bibliotecas públicas da cidade de Dublin recebe uma lista de obras de ficção nomeadas por responsáveis de bibliotecas espalhadas pelas capitais e principais cidades de países de todo o mundo (Portugal participou na nomeação das obras para o prémio de 2007 através de 2 bibliotecas: a Biblioteca Pública Municipal do Porto e Biblioteca Municipal Central de Lisboa, sita no Palácio das Galveias).
Cada biblioteca pode nomear até 3 obras que apenas têm de obedecer a uma condição: a sua publicação em língua inglesa.
A título de exemplo, para o prémio deste ano só podem ser nomeadas:

  • As obras originalmente publicadas em inglês durante o ano de 2005;
  • As obras originalmente publicadas noutra língua entre 2001 e 2005 e que hajam sido publicadas em inglês em 2005.

(De notar que a Biblioteca Municipal do Porto apenas elegeu a obra de Richard Zimmler, À Procura de Sana; e a de Lisboa nomeou no total três obras, o máximo permitido, uma do autor brasileiro Luiz Alfredo Garcia-Roza, Uma Janela em Copacabana (Gótica, 2003), tal como a congénere do Porto, indicou a obra de ficção de Richard Zimmler, À Procura de Sana e por fim o inenarrável Zorro, da escritora chilena Isabel Allende (Difel, 2005), será curioso verificar que sendo a Difel detentora da editora Gótica…)

Posteriormente, um júri todos os anos nomeado pela organização do prémio (este ano constituído por 6 elementos e incluindo o autor português Almeida Faria) nomeia, de entre o conjunto de obras citadas no processo anterior, os finalistas, elegendo meses depois, entre Outubro e Novembro, a obra vencedora cujo autor arrecadará 100 mil euros (para obra originalmente editada em inglês) ou 75 mil euros, sendo os restantes 25 mil para o tradutor, nos outros casos.

Eis os 8 finalistas deste ano (ordenados pelo apelido do autor e com título em português se a obra já houver sido editada em Portugal):

  • Julian Barnes – Arthur & George;
  • Sebastian Barry – A Long Long Way;
  • J. M. Coetzee – Slow Man;
  • Jonathan Safran Foer – Extremamente Alto, Incrivelmente Perto (Quetzal, 2007; título original: Extremely Loud & Incredibly Close);
  • Peter Hobbs – The Short Day Dying;
  • Cormac McCarthy – No Country for Old Men;
  • Per Petterson – Out Stealing Horses;
  • Salman Rushdie – Shalimar, O Palhaço (Dom Quixote, 2006; título original: Shalimar the Clown).

Nota: é perfeitamente inacreditável que obras como as referenciadas de Barnes, Coetzee, Barry e McCarthy ainda não tenham sequer estreia marcada para o mercado editorial português.

Anteriores vencedores:
2006 – Colm Tóibín – O Mestre (Dom Quixote, 2007)
2005 – Edward P. Jones – The Known World
2004 – Tahar Ben Jellou – This Blinding Absence of Light
2003 – Orhan Pamuk – My Name is Red
2002 – Michel Houellebecq – Partículas Elementares (Temas e Debates, 1999)
2001 – Alistair MacLeod – No Great Mischief
2000 – Nicola Barker – À Flor da Pele (Gradiva, 2000)
1999 – Andrew Miller – A Dor Industriosa (Teorema, 1999)
1998 – Herta Müller – A Terra das Ameixas Verdes (Difel, 1999)
1997 – Javier Marías – Coração Tão Branco (Relógio D’Água, 1994)
1996 – David Malouf – Remembering Babylon

sábado, 7 de abril de 2007

O Regresso de McEwan

É verdade, os meus autores favoritos já se encontram a viver para além da sua quinta década de deambulação pelo mundo. Ian McEwan, nascido em Aldershot, Inglaterra, em Junho de 1948, prepara-se para ver lançada para o mercado a sua última obra, o romance On Chesil Beach que, segundo pude ler numa curta sinopse para não utilizadores do jornal Público, será simultaneamente editado em língua portuguesa – provavelmente pela detentora dos direitos de autor em Portugal, a editora Gradiva –, facto inédito que só é de saudar.
Das ilhas britânicas o trio anglo-irlandês McEwan, Banville e Tóibín sempre me encheu as medidas estético-literárias, a que se podem juntar os miscigenados Ishiguro e Rushdie e o fleumático, estirpe Oxford, Martin Amis.
Porém, foi para McEwan a minha primeira contemplação de puro encantamento quando há uns bons anos li Cães Pretos e pensei ter intuído a sua simbologia, os fantasmas que, apesar de julgarmos possuir todos os meios que permitem vislumbrar o caminho para a felicidade, nos turvam a mente – esse ser insondável que se confunde com a alma.
Desde logo estabeleci uma regra que me permitisse desvendar aos poucos um fio condutor na carreira literária do notável autor inglês: seguiria cronologicamente a sua obra.
Foi que fiz com a excepção de duas obras editadas na nossa língua que, apesar de as deter na minha estante, por motivos diversos ainda não li: O Sonhador (The Daydreamer, 1994) e O Inocente (The Innocent, 1990), esta última não leitura motivada pela paupérrima adaptação do romance para o filme de 1993 de John Schlesinger, com Anthony Hopkins e Isabella Rossellini – que como irei demonstrar não serviu de critério noutro caso semelhante.

Ian McEwanAs colecções de contos Primeiro Amor, Últimos Ritos (First Love, Last Rites, 1975) e Entre os Lençóis (In Between the Sheets, 1978) são um fascínio pela tortuosidade que McEwan confere aos seus personagens. São histórias negras que revelam a perversidade da mente humana, o frágil ponto de equilíbrio que se rompe e transforma a vida de um banal ser humano, nesta indigente sociedade contemporânea, num animal grotesco ornado dos seus instintos mais primários. Contudo, não são contos imorais e muito menos amorais, embora estes não encerrem uma moralidade mais ou menos subentendida, à laia de guia prático do comportamento humano. Os primeiros contos de McEwan são antes histórias que, pelo simples factos de a informação nos assaltar todos os dias no conforto do nosso lar, são brutalmente verosímeis e por isso de certa forma angustiantes. Neles se relata a depravação sexual, a perversidade, a perda da inocência e a indigência intelectual do indivíduo numa sociedade implacável e que se metamorfoseia em ritmo acelerado rumo a nenhures ou, pelo menos, a um destino não imediatamente intuído. Por elas McEwan foi notabilizado – havendo vencido com a primeira obra o Somerset Maugham Award –, todavia não se livrou de que alguns o rotulassem de escritor negro, sinuoso e até vicioso.
No entanto, McEwan seguiu o seu caminho e em 1978 publicou uma das suas melhores obras, O Jardim de Cimento (The Cement Garden). O autor voltou às luzes da ribalta pela distorção dos moralistas do regime, que destacaram a utilização abusiva pelo autor do último dos tabus, o incesto. Esta será, contudo, uma das muitas histórias que se poderá enquadrar no conjunto de anátemas com que alguns dos habituais críticos pretendem ensombrar o processo criativo de outrem. Em O Jardim de Cimento o incesto é um mero acessório que apenas serve de alerta – se é que, na realidade, se trata de um pretendido alerta – para o perigo da propensão do homem contemporâneo para o orgulhoso isolamento intelectual e para as densas fortificações que a própria mente erige, conferindo-nos a sensação de existir a real possibilidade de uma revigorante sobrevivência sem o contacto com o exterior, sem interacção, os tais reinos de Camelot para que vamos lentamente imergindo e que nos vão apartando do relacionamento com os outros, da sinergia que pulula por sobre as nossas cabeças, como o pólen das flores no viço da Primavera, que já não conseguimos captar, confinando-nos a uma masmorra cujas paredes lúgubres e viscosas presenciarão, mais cedo ou mais tarde, o próprio fim: «Através de uma nesga da cortina, a luz azul da sirene, volteando, desenrolava um desenho na parede do quarto. (…) – Ora aí está – disse ela. – Foi um sono muito lindo.»
Em 1981 é publicado Estranha Sedução. Porventura, fiel ao título com que foi baptizado em português – o original é The Comfort of Strangers – é um dos livros mais tenebrosos do escritor britânico. A acção decorre em Veneza, local de férias escolhido por um jovem casal decidido a reencontrar a paixão que se foi desvanecendo com o tempo e a rotina da convivência e, de repente, se vê envolvido num trama de contornos poucos claros com um velho casal residente, que de forma parcimoniosa e simultaneamente de um magnetismo inexplicável vai arrebatando a vida ao casal, como desinscrustáveis e insaciáveis sanguessugas.
O romance foi adaptado para o cinema por Harold Pinter, com realização a cargo de Paul Schrader e, apesar das notáveis interpretações de Natasha Richardson, de Christopher Walken e de Helen Mirren, o produto final não me conseguiu convencer. Posteriormente li o romance e de certa forma anseio por um segundo visionamento para desfazer as dúvidas sobre o filme.

Até 1992, McEwan escreve argumentos para televisão, um libreto para música de Michael Berkeley e vários argumentos para cinema, para além de mais três romances: o fabuloso A Criança no Tempo (The Child in Time, 1987), vencedor do Whitbread Novel Award em 1987 e do Fémina em 1993, O Inocente (1990) e Cães Pretos (Black Dogs, 1992).
Em 1993 McEwan escreve o argumento O Bom Filho (The Good Son), para o filme realizado por Joseph Ruben – que anos antes havia assustado meio mundo feminino com o filme Dormindo com o Inimigo – onde se destacam os desempenhos dos jovens Elijah Wood e Macaulay Culkin.
A partir daqui consegue-se distinguir um novo fôlego na carreira do autor inglês. McEwan adopta a narrativa mais elaborada, densa e com uma forte componente de investigação. O Fardo do Amor (Enduring Love, 1997) baseia-se no historial clínico verídico de um paciente com uma patologia psíquica conhecida como síndrome de De Clérambault, relatado num artigo científico reproduzido na íntegra do final de romance.
Esta transformação não significa, porém, uma ruptura de McEwan com a temática do insondável da mente humana, das distorções psíquicas que se materializam numa forte tensão sexual e comportamental com sequelas na sociedade e que simultaneamente gera, por uma sinuosa reverberação, o comportamento desviante. Assim, O Fardo do Amor marca a tal viragem na carreira do autor pelo enchimento das personagens, que confere de forma deliberada um tom mais romanesco aos seus escritos. Nessa altura anuncia-se um Ian McEwan mais maduro e mais seduzido com a miríade de possibilidades que a prosa ficcional oferece. Se antes tínhamos uma história, um determinado objectivo e alguns artifícios que rapidamente nos conduziam ao desenlace, com O Fardo do Amor, sem que desapareça a formal tensão psicológica mcewaniana, há uma grande preocupação plástica na elaboração da urdidura, aparentemente mais complexa e ornamentada.
Seguem-se, na minha muito pessoal opinião de admirador de Ian McEwan, os dois melhores romances do autor, tão díspares nas suas estrutura e densidade, como próximos na genialidade: Amesterdão (Amsterdam, 1998), vencedor do Booker Prize, e Expiação (Atonement, 2001), vencedor do WH Smith Literary Award e do National Book Critics Circle (Fiction Award, EUA) em 2002.
Amesterdão encanta pela ironia, pelo retrato da comédia humana nas suas soberba e cobiça desmedidas. Expiação é profundo e comovente, e simultaneamente um documento histórico sobre os males da guerra no seu sentido mais lato, não só porque parte da acção se situa em pleno campo de batalha durante a 2.ª Guerra Mundial, como também naquela consubstanciada num magistral paralelismo à maldade e à inveja no relacionamento interpessoal.
O sortilégio de Amesterdão está no seu brilho e na sua hilaridade; em Expiação ele emana do próprio processo de auto-análise da protagonista que se estende para fora dos domínios do livro, através do escrutínio das nossas acções passadas que potencialmente provocaram dano, mesmo que este não estivesse presente, ou não fosse conscientemente aquilatado, no momento em que as perfilhámos.
Em 2005 surge o último romance publicado de Ian McEwan: Sábado (Saturday). Vencedor em 2006 do James Tait Black Memorial Prize. Um excelente romance, talvez aquele em que McEwan demonstra no seu pleno esplendor a sua mestria como contador de histórias do dia-a-dia, que porventura só me desapontou pela cruel cronologia: seguiu-se ao melhor dos melhores do autor britânico.

Deste modo, por aqui se vai aguardando, em jubilosa esperança, a publicação de On Chesil Beach, prometida para a próxima semana.

Aqui fica um excerto do romance (1.º parágrafo):
«They were young, educated, and both virgins on this, their wedding night, and they lived in a time when a conversation about sexual difficulties was plainly impossible. But it is never easy. They were sitting down to supper in a tiny room on the second floor of a Georgian inn in Dorset. In the next room, visible through the open door, was a fourposter bed, rather narrow, whose cover was pure white and stretched startlingly smooth, as though by no human hand. Edward did not mention that he had never stayed in a hotel before, whereas Florence, after many trips as a child with her father, was an old hand. Superficially, they were in fine spirits. Their wedding, at St. Mary’s, Oxford, had gone well; the service had been decorous, the reception jolly, the sendoff from school and college friends raucous and uplifting. Her parents had not condescended to his, as they had feared, and his mother had not significantly misbehaved, or completely forgotten the purpose of the occasion. The couple had driven away in a small car belonging to Florence’s mother and arrived in the early evening at their hotel on the coast in weather that was not perfect for mid-June or the circumstances but was entirely adequate: it was not raining, but nor was it quite warm enough, according to Florence, to eat outside on the terrace, as they had hoped. Edward thought that it was, but, polite to a fault, he would not think of contradicting her on such an evening.»

Promete!

Nota: Em Portugal, todos os livros de Ian McEwan foram até agora publicados pela
Gradiva.

quinta-feira, 5 de abril de 2007

Convalescença

Ponho o nariz fora de casa. Tento recuperar, socializando-me, os dias perdidos entre arrepios sísmicos e o terrível esforço para ler uma página de um livro que dure menos que o triplo do tempo habitualmente despendido – houve tempo, não pensei sequer em dinheiro, mas ia-me rareando a saúde.
D… DeLillo… Cheira a mofo! Serei eu? Edição da Editorial Presença de 1991… Eu: 18 ou 19 anos, caloiro… 1.ª Guerra do Golfo…

Obrigado!

segunda-feira, 2 de abril de 2007

Sob o signo do Influenza – 3


Desconheço os responsáveis (o meu estado não me levou a tanto, o Super Dragões estavam na Luz e o CDS-PP reunido em Torres Novas), ao que dizem dois adolescentes entediados – talvez saídos de um romance de Bret Easton Ellis.

Sob o signo do Influenza – 2

A rápida convalescença deixa-nos ainda mais irados. Adverte-nos para a inutilidade e para a estupidez da doença.
Não dou graças a quem de direito pela recuperação súbita, ainda por cima, se tiver de seguir o cânone comiserativo luso, quando o agradecimento tem de ser feito pela colocação de velinhas verbais, ou seja, naquela linguagem irritante recheada de diminutivos, tão carinhosos como disparatados.

Vai sendo tempo de limpezas. Vassourada nas ligações! Ou o fim!

Sob o signo do Influenza – 1

Na saúde e na doença… Não sei se, porventura, a letra morta deste juramento proferido na alvura do dia mais negro da vida de muita gente se aplica ou não à blogosfera.
Limito-me às conclusões daquilo que os meus olhos ouvem e que os meus ouvidos vêem... ou...
Constatação empírica: sem textos, sem fama – não frequentar o meio, não ter partido político, não ser de Lisboa –, e sempre que o somatório das partes é inferior à sua combinação, isto é, sem textos e sem a glória evanescente, o número de visitantes diário desce vertiginosamente e até o Google AdSense – de quem nunca vi um cêntimo – resolveu retirar a publicidade e colocar perguntas idiotas do género: Qual o tamanho médio da pila de um asiático? Anuncie neste site…

Ah Molloy, Molloy!