O suplemento Ípsilon do jornal Público dava-lhe destaque através de um excelente artigo assinado por Luís Miguel Queirós que dava conta, entre muitos outros assuntos, da febre jamesiana que assolou os espíritos literários de autores de língua inglesa. Entre eles contava-se David Lodge com o seu romance Autor, Autor – a exultação do público que clama pela presença do autor da peça em palco para uma ovação –, prontamente editado em Portugal pelas mãos das Edições Asa e que, havendo-me recordado da ocasião – e julgo não estar enganado –, mereceu a presença do escritor britânico por terras lusas para a apresentação do livro.
Devidamente apetrechado da minha oneomania literária – conceito aprofundado, com rigor científico, pela revista Certa dos hipermercados Continente [verídico, aparte a cientificidade] – lá adquiri o exemplar de Lodge que abri para de súbito fechar. Pareceu-me grotesca uma primeira parte, com pouco mais de quarenta páginas, recheada de diálogos e de coloquialismos da criadagem quando o tema central abordava precisamente o epítome da estética literária e do bom gosto, mesmo que a intenção de Lodge fosse o da destrinça de grandezas pela justaposição de hierarquias ou o do mero confronto de estilos.
Assim que saiu O Mestre, retomei o que abandonara havia pouco mais de um ano, o romance de David Lodge. E não me enganei por muito, apesar da, prognosticada por mim, inversão nas restantes três partes, mas:
«Henry levantou-se da cama e esvaziou copiosamente a bexiga para um bacio. Ao arrumá-lo de novo na mesa-de-cabeceira sentiu, como sempre uma leve pontada de remorso por dar à criada a tarefa de o despejar (…)» (pág. 240)
«Aguardou, esperançado, algum movimento intestinal que pudesse pressagiar evacuação, mas não recebeu essa graça.» (pág. 244)
Em suma, sobre Henry James, apetece-me ironizar, parece que Lodge escreveu para a TV Guia e Tóibín para a Yale Review.
Apesar de tudo, isso não pretende significar que Autor, Autor não tenha os seus méritos. Julgo até que, na íntegra, consegue alcançar os seus objectivos, não conferindo, de forma propositada, juízo de valor algum ao próprio autor, o que em certas situações empresta um carácter mais informativo à biografia romanceada. Como exemplo, deixo aqui ficar este episódio delicioso, apesar de ser susceptível de encerrar uma aparência, de certa forma, mórbida, que retrata o processo de escrita de uma carta pela mão de Henry, que irá ser enviada ao seu irmão mais velho, William, a viver nos Estados Unidos, relatando os últimos minutos de vida da irmã Alice na sua casa em Londres:
«Nesse momento, e de uma forma estranha, difusa e comovente, o rosto dela pareceu tornar-se mais claro. Fui abrir a janela, para deixar entrar um pouco mais de luz da tarde (era um domingo luminoso, agradável e silencioso), e quando voltei para junto do leito ela [Alice James] tinha exalado o seu último suspiro.» Leu o parágrafo outra vez, riscou o lugar-comum «último suspiro» e substituiu-o por «o suspiro a que mais nenhum se seguiu». (pág. 169)
A propósito da culpa e do remorso sentidos pela morte da sua querida amiga Constance Fenimore Woolson, Henry lembrou-se das palavras de acusação escritas pela mãe de Flaubert numa carta que endereçou ao próprio filho e que este lhe contou, em tom de piada, num encontro de escritores na sua casa em Paris:
«A tua mania das frases secou-te o coração» (pág. 236).
David Lodge, Autor, Autor. Porto: Asa, 1.ª edição, Novembro de 2005, 426 pp. (tradução de Ana Maria Chaves; obra original: Author, Author, 2004).
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