Em cada “rincón”, daqueles que apelam à detenção do passo apressado na azáfama do dia-a-dia, deparo-me com cartazes gigantescos de cara inteira de dois dos homens que ferozmente se digladiam para alcançar a presidência do Governo espanhol no próximo dia 9 de Março. Por exemplo, na estação de metro Sol (na Puerta del Sol) apanhei o primeiro de muitos sustos. Quando, na minha irrepreensível delicadeza urbana, cedia o passo a um grupo de transeuntes apressados, perdi o equilíbrio e, desorientado, agarrei-me, de imediato, à parede do túnel, quase lambuzando uma das bochechas barbudas de Mariano Rajoy, que se apresentava, de sorriso amarelo sobre fundo azul ferozmente marcado pelo chavão “PP con cabeza e corazón” – o susto foi ainda maior quando me lembrei das frases de campanha do nosso coveiro Guterres. No PSOE a coisa também não é famosa, os cartazes mostram um Zapatero aparentemente absorto, com um olhar seráfico, apenas estorvado por umas olheiras vincadas – traduza-se, vêem como me esfalfei por Espanha nos últimos quatro anos – sobre um fundo antracite, contrastando com um desafiante vermelho vivo – por onde anda o rosa? – da sigla e do símbolo do partido, e um slogan “Vota con todas tus fuerzas” – a minha mente fértil, tendencialmente burlesca e nos limites do decoro, construiu a imagem de um necessário esforço peristáltico no momento de aposição da cruz no boletim de voto.
Adiante...
Durante esta semana, para além do Óscar atribuído a Javier Bardem, e do assunto das quatro mulheres assassinadas no mesmo dia pelos respectivos companheiros em pontos distintos do país, o debate televisivo entre Zapatero e Rajoy, realizado na segunda-feira, era o motivo de todas as conversas e das mais variadas conjecturas sobre o vencedor e a magnitude da vitória. O debate, preparado ao milímetro pelas máquinas partidárias – contou, por exemplo, com mais de duas centenas de exigências de ambos os lados –, saldou-se num chorrilho de inanidades e de troca de acusações, roçando o insulto pessoal. Quando ambos abandonaram o estúdio, foram proferidas pelos dois lados declarações de vitória. O povo espanhol enfada-se, e com razão – depois da expulsão de Aznar – e não se revê nestes dois políticos medíocres. Ah, se eu lhes falasse da escolha que nós, portugueses, teremos de enfrentar em 2009: Sócrates ou Menezes… Prefiro a mediocridade dos contendores espanhóis.
(Apesar de tudo, salva-se em Espanha a iniciativa partidária de Rosa Diez, Mikel Buesa e Fernando Savater a que se juntou Mario Vargas LLosa.)
Na Fnac do Callao acabei de adquirir dois “libros de bolsillo” – que aqui em Espanha há-os para todos os gostos – e foi-me oferecido o primeiro volume de um conjunto de contos e ensaios sobre os assuntos que preocupam os espanhóis à porta das eleições (livro na imagem).
Um grupo de editores compilou um conjunto de temas em que os espanhóis manifestaram, numa grande sondagem nacional, a sua grande preocupação. Ei-los: fraude e corrupção, toxicodependência, economia, educação, qualidade do emprego, guerra, infra-estruturas, imigração, insegurança, administração da justiça, juventude, meio ambiente, desemprego, segurança social, classe política, racismo, saúde, violência doméstica e habitação. A estes temas, os editores acrescentaram mais dois: o consumo e, por razões óbvias, os livros.
Para cada preocupação há um capítulo. Cada capítulo subdivide-se em três partes: uma entrada do Dicionário do Diabo de Ambrose Bierce; um texto de reflexão; e uma história ou um relato de um autor consagrado.
Um exemplo retirado do primeiro volume [tradução AMC, excepto entrada referente ao Dicionário do Diabo, de responsabilidade de Rui Lopes]:
- Capítulo: A Economia
- Entrada*: Economia, n, Adquirir o barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem dinheiro para comprar.
- Reflexão sobre “La Nueva Economía” pelo economista Joaquín Estefanía (ex-director do El País) e actual director da Escola de Jornalismo da Universidade Autónoma de Madrid.
- Conto: John Cheever, “O Natal é triste para os pobres” (originalmente publicado na revista The New Yorker no dia 24 de Dezembro de 1949):
«O Natal é uma época triste. A frase sobreveio à mente de Charlie no instante seguinte ao despertador haver tocado, e trouxe-lhe de novo a depressão amorfa que o havia perseguido na noite de véspera. No outro lado da janela, o céu estava negro. Sentou-se na cama e puxou a corrente de luz que se enganchava defronte do seu nariz. O dia de Natal é o mais triste do ano, pensou. De todos os milhões de pessoas que vivem em Nova Iorque, eu sou praticamente o único que tem de se levantar na fria escuridão das seis da manhã de um dia de Natal; praticamente o único.» (pág. 197)
*Ambrose Bierce, Dicionário do Diabo. Lisboa: Tinta da China, 1.ª edição, Janeiro de 2006, pág. 53; tradução de Rui Lopes; obra original: The Devil’s Dictionary, 1911.
Neste volume há ainda textos de Freud, Hemingway, Juan José Millás, David Sedaris, Dorothy Parker, entre outros.
Um verdadeiro deleite para enfrentar, pela arte, o enjoo reiterado do discurso político.
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