segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Se eu fosse Dmitri...

Dmitri e Vladimir Nabokov ©Magnum
Este é o nome da mais recente e viciante diversão meta-literária à escala do globo. Publicações da especialidade e até as exaustivas revistas do coração referiram o fenómeno que, com toda a virulência (literária), se espalhou por todo o lado como cogumelos famélicos – e já sabemos quais as consequências destes prodígios sempre que aplicados às artes literárias; dizem que tem que ver com um senhor alemão, um tal de Zeitgeist...
Facto comprovado (1): não há quem lhe seja indiferente, mesmo ignorando o protagonista e/ou a sua obra.
Facto comprovado (2): todos querem ser Dmitri, vestir-lhe a pele ou pôr-se nos seus sapatos – se o primeiro acto arrepia pelo seu buffalo-billianismo, o segundo não é lá muito higiénico, fungicamente falando.
Todos arriscam lançando o seu palpite sobre a existência e o destino a dar a uma obra que, a honrar-se o putativo compromisso de antanho, deveria pelos dias deste século jazer em cinzas algures pela Confederação Helvética – centro nevrálgico: Montreux Palace Hotel.
Porém, a loucura instalou-se, e até já prevejo a aquisição dos direitos exclusivos para a produção de software – formato PC ou consolas de jogos – pela multinacional norte-americana EA Sports, provavelmente com o lançamento mundial de “If I were Dmitri...” para o início da época natalícia de 2008.

Na passada quinta-feira, o
Times de Londres narrava de novo a história dos 50 cartões de indexação que, por vontade expressa do autor – manifestada em lenta agonia no percebido leito de morte –, deviam perecer pelo método bradburiano dos 232,8 ºC – a tal temperatura a que ardem os livros: It was a pleasure to burn.
Uma vez mais – e esgotaram-se-me as reservas de paciência – foram contados todos os pormenores, sem qualquer tipo de originalidade ou de revelação, com a excepção de uma curta sondagem de opinião dirigida a destacadas figuras do meio literário: John Banville embarca no movimento pró-vida do manuscrito – pretende afastá-lo do tenebroso espectro dos cofres-fortes de vão de escada –, enquanto Tom Stoppard faz uso do lança-chamas e Edmund White fica-se por um amaneirado, arrebicado e inconsequente “sim, mas… talvez não, porventura…” – pressupondo que Nabokov, onde estiver, ainda se recorda, aplaudindo, de Elena.
No centro do debate está o provecto e pueril, provocador e irresoluto filho único de Véra e Vladimir Nabokov: Dmitri, hoje com 73 anos.
A 2 de Julho de 1977, Vladimir Vladimirovich morre num hospital suíço vítima de infecção pulmonar. Véra foi incumbida pelo marido de destruir o esboço de The Original of Laura e todas as suas notas. No entanto, Véra morre em 1991, sem haver tomado as providências pirómanas que lhe foram encomendadas, deixando assim o berbicacho nas mãos de Dmitri, que de lá para cá vem a desfrutar de um prazer sádico do “mostro/não mostro”, não se furtando, por vezes, a assumir o papel do menino travesso, que deixa cair umas pinguinhas pela incontinência verbal, como fez na celebração dos 100 anos do nascimento do seu pai (1999) na Cornell University, lendo uma frase de uma obra de Nabokov, pedindo ao público para a identificar: todos a identificaram, pela novidade, como sendo um curto excerto de The Original of Laura.

Neste momento, muito por culpa do comportamento errático de Dmitri, a história caminha a passos largos para a bambochata meta-literária: assiste-se já a um arraial de conjecturas, interpretações, supostas pistas deixadas no subtexto. Uns e outros recuperaram as especulações, levantadas por Andrew Field na sua biografia sobre Nabokov, reiteradas na
National Review pela recensão desta obra por outro estudioso nabokoviano, Jeffrey Meyers, sobre eventuais problemas relacionados com o álcool, para além de se aventar a hipótese de o jovem Vladimir ter sido vítima de pederastia perpetrada por um tio homossexual – o suficiente (sem exbicionismos) pode ser lido na sua obra autobiográfica Na Outra Margem da Memória (Speak, Memory; 1951, revista e actualizada em 1966).
Caminhamos a passos largos para o frenesim estúrdio dos esoterismos, da simbologia e da teoria da conspiração. E, não ficaria admirado se Fogo Pálido (Pale Fire, 1962) de repente se metamorfoseasse, qual ninfa lepidóptera, na Mona Lisa de Nabokov e Laura passasse a ser o lado feminino veladamente desenvolvido, como uma borboleta hermafrodita que transcorre a obra, e que explica o Yin (Charles Kinbote) e o Yang (John Francis Shade) – ou será o contrário? Shade, anag. para Hades, ou lit. sombra –, a luta de paradoxos que cria a harmonia… interior? Vestiria Nabokov em segredo a rendada lingerie de Véra? E se sim, ficaria horas a remirar-se com lascívia ao espelho ao mesmo tempo que ensaiava uma coreografia de corista de vaudeville?
Proposta para best-seller: O Código Nabokov – editoras, para eventuais contactos, usar o e-mail deste blogue.

Regressando ao artigo do Times, Banville propõe uma solução radical, mas absolutamente indefensável naquilo que ela tem de muito portuguesa – haverá sangue luso a correr naquelas veias eminentemente irlandesas? Ou seja, criar uma comissão…

«Se eu fosse Dmitri Nabokov, que graças a Deus não sou, eu dactilografava o fragmento e mostrava-o a dois ou três reputados e amáveis críticos – por exemplo, James Wood, Harold Bloom – e talvez também a um ou dois escritores – John Updike, Martin Amis – para que dessem a sua opinião sobre se aquele deveria ser ou não publicado.»

John Banville in The Times, 14/02/2008 [tradução: AMC]


Wood, Bloom, Updike e Amis, OK. Conquanto se contacte o Rui Gomes da Silva e o Luís Filipe Menezes para o exercício do contraditório, para além da contratação a peso de ouro de um dos representantes da West Coast of Europe com propensão opinativa: José Mourinho, tendo o quase indispensável Rui Santos e a sua indumentária como suplentes.

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