terça-feira, 30 de março de 2010

O Supermercado

Foi há cerca de duas semanas que, provavelmente por via da parcimónia retentiva dos factos históricos da nossa mente – tão pressurosa a viver na contemporaneidade consumista –, fui personagem acidental de um curioso episódio de confrontação desse presente voraz e amnésico, ou melhor, pouco interessado em revivalismos, e de um passado não muito longínquo, cuja extensão do adjectivo vai um pouco para lá de uma dezena de anos da minha já madura existência. O supermercado.
Cheguei a casa de meus pais e o cenário que se postava diante dos meus olhos assemelhava-se ao de um terreiro onde se travava uma pequena, polvorenta e buliçosa batalha, em que a poeira de antanho se evidenciava pela reverberação causada pelos finos raios de sol de Inverno que atravessavam a vidraça e o cheiro a mofo desenterrado das entranhas de uma luta. O pó e o bafio atiçaram-me a costumeira reacção alérgica – o eterno acicate da histamina –, tanto física, como mental – este tipo de arrumações e o excesso de zelo que lhe é normalmente associado induzem-me a um estado de melancolia de uma despedida inevitável –, havendo crescido em mim um desejo irrefreável de retroceder uns minutos e adiar por umas horas a visita de um homem emocional, cumpridor das suas obrigações filiais.
Os meus pais, mantendo o seu rigor exclusivista em matéria livresca, como uma espécie de ordem de “não profanação” daquela espaço sagrado de tantos dias de aprazível ócio, arrumavam a sua bem recheada biblioteca, retirando os livros um por um, limpando capas e lombadas, e reparando badanas e folhas que, fora da sua função, se exibiam de forma impudica aos elementos.
Houve um ligeiro resmungo, misturado com uma espécie de prazer de ostentação doutoral, quando chegou o filho inquisidor e metediço, desarrumando as pilhas de livros prontas a regressar aos seus locais de décadas, e lendo os ex-líbris que ambos, enquanto jovens idealistas nos anos vinte das suas vidas, apunham à literatura que adquiriam e liam, bem longe da função de mero adorno que hoje em dia desempenham – a vida por vezes endurece determinados prazeres, tornando-os memórias distantes de um tempo passado, ressessos e sem brilho. A minha mãe, mais romanesca e congruente: Somerset Maugham, Irving Wallace, John Steinbeck, Máximo Gorki, e mais um bando de autores de frémito romanesco; o meu pai, mais heterogéneo no estilo literário e nos autores: Camus, Henry Miller, Hemingway, Morris West, dos Passos, Freud, Yourcenar, D. H. Lawrence, e imensos livros de História, cuja maioria versa sobre um dos seus temas bélicos preferidos, a II Guerra Mundial.
Entretanto, vislumbrei uma relíquia pela envolvência da sua composição em obra. Estava encafuado numa das pilhas, já expropriado do seu pó alpino, como as neves eternas: Os Inadaptados, do colossal dramaturgo norte-americano Arthur Miller (1915-2005). Bem conservado, embora com um indisfarçável odor a velho bichado, tratava-se de uma edição da Livros do Brasil de 1961, com tradução de Sousa Victorino, cujo ex-líbris do meu pai assinalava a data de “20-V-67”.
Os Inadaptados (The Misfits, 1961), livro retirado do argumento escrito pelo próprio Miller para um filme de John Huston. O filme é um dos mais icónicos na fábrica de mitos e lendas de Hollywood, se nos atermos ao arrepiante departamento de “filmes maldição”. A história que envolveu a sua produção, há quase cinquenta anos, ainda consegue provocar calafrios aos mais supersticiosos, não só pela razia de mortandade que se abateu sobre o elenco principal nos períodos de pós-produção e de exibição, como nas constantes alterações de guião e batalhas surdas entre Miller, Huston e o produtor Frank E. Taylor, a que se juntaram os responsáveis pelos estúdios da United Artists, e para finalizar pelo desastre comercial e financeiro que o filme gerou:
  • Do elenco principal, só Eli Wallach sobreviveu à devastação, talvez, e não o refiro sem malícia ao antimito louro, por Marilyn Monroe se ter incompatibilizado com o actor nova-iorquino, hoje com 94 anos, durante as filmagens, segundo se diz por esta, perante a sobriedade daquele, se sentir diminuída do seu protagonismo.
  • Clark Gable morre alguns dias após o fim da rodagem do filme – nem sequer assistiu à sua estreia.
  • Marilyn Monroe divorcia-se de Arthur Miller, ironicamente processo que se acelerou por desentendimentos sobre a construção da volúvel personagem Roslyn Taber encarnada por Monroe, para quem Miller escreveu propositadamente o guião para tentar minorar a imagem de superficialidade da actriz californiana, que lhe era incessantemente aposta pela imprensa dedicada à 7.ª arte; este também foi o último filme protagonizado por Monroe, já que morre, encharcada em drogas, em Agosto de 1962 antes de completar o filme dirigido por George Cukor, Something’s Got to Give, cuja produção foi interrompida e jamais finalizada, dada a recusa inamovível de Dean Martin em contracenar com outra actriz que não a loura mais famosa de Hollywood.
  • Montgomery Clift foi o mais resistente, morre em sua casa durante a madrugada de 23 de Julho de 1966, vitimado, tal como Gable, por um ataque cardíaco fulminante. Segundo a sua biógrafa, Patricia Bosworth, as últimas palavras conhecidas proferidas por Monty compuseram a frase “Absolutely not!”, quando interpelado pelo seu companheiro-secretário Lorenzo James à 1 da manhã desse mesmo dia fatídico sobre se o actor gostaria de ver Os Inadaptados, precisamente na noite em que o filme de Huston fazia a sua estreia na televisão nacional.

E eis, neste momento, o livro em minha casa, pronto a ser desfrutado, sem a real possibilidade de o poder acompanhar com a edição portuguesa do filme, porventura caído no esquecimento da esmagadora maioria dos portugueses, que nem as sinistras desventuras que o envolveram, o fizeram despertar para o circuito comercial em DVD.
Folheadas as primeiras páginas, saltaram-me à vista alguns deliciosos e falsos anacronismos, como algo que sentidamente acharíamos impossível verificar-se à data de edição em 1961. Porém, as disparidades entre a maior potência mundial e o nosso cantinho retrógrado, governado pela pequenez reducionista de uma ditadura, pronta a entregar os seus filhos numa guerra sem sentido que duraria treze anos, são hoje desconcertantes para quem sempre viveu os seus anos de assunção plena da sua consciência numa democracia ocidental, que se foi desenvolvendo, para o bem e para o mal, rumo a uma economia aberta, de mercado, sem fronteiras e sem as grilhetas que outrora amarravam, sem piedade, as liberdades mais fundamentais à existência digna do ser humano.
A páginas tantas, é mesmo a 13 – o número do anátema, mas também da religiosidade acerba – pode ler-se: «Vemos, através da montra dum supermarket (3) uma mulher que segura um grande saco de géneros de mercearia com um dos braços, enquanto baixa com o outro a alavanca de uma máquina caça-moedas.»
E o (3) refere-se à 3.ª nota assestada pelo tradutor desde que se iniciou a narrativa, que reza o seguinte:

«(3) Grande estabelecimento, principalmente de produtos alimentares, em que o cliente se serve a si próprio. (N. do T.)»
Era este o país dos estouvados marçanos que, agarrados à sua bicicleta munida do cesto na retaguarda carregado de produtos alimentares, se esgueiravam a toda brida por ruas e passeios e namoravam as criadas dos senhores às portas das casas fidalgas onde entregavam os produtos encomendados à mercearia do Sr. António. Sítio lúgubre, de mil odores em que constava a folha dos fiados escrita cuidadosamente à mão e quando aberto podia ainda sentir-se o cheiro a farinha do pão acabado de amassar, aí encerrado, com zelo, no momento da escrita. 

Proposta pascal para tema de redacção: O Supermercado.

sexta-feira, 26 de março de 2010

Novo McEwan

Tal como aconteceu com a extraordinária novela Na Praia de Chesil (On Chesil Beach, 2007), a Gradiva (inexplicavelmente, sem ligação à sua página oficial na Internet), editora portuguesa responsável pela edição da obra do eminente escritor inglês, publica em simultâneo com as edições britânica e norte-americana a mais recente obra de ficção de Ian McEwan: Solar. Felicitações à editora.
Preparo-me, por isso, para largar tudo que vem passando debaixo dos meus olhos em matéria de literatura recreativa, assim que dispuser do exemplar de um dos escritores contemporâneos pertencentes ao meu Olimpo pessoal.
 
Excerto (1.º parágrafo):

«Ele pertencia a essa classe de homens — de aparência vagamente desagradável, muitas vezes calvos, baixos, gordos, inteligentes — que são inexplicavelmente atraentes para certas mulheres belas. Ou ele julgava que o era, e pensá-lo parecia fazer com que assim fosse. E ajudava o facto de certas mulheres estarem convencidas de que ele era um génio a precisar que o socorressem. Mas o Michael Beard dessa época era um homem mentalmente diminuído, anedónico, monotemático, devastado. O seu quinto casamento estava a desintegrar-se, e ele devia ter sabido como comportar-se, pensar a longo prazo, arcar com as culpas. Os casamentos, os seus casamentos, não se assemelhariam a marés, com um a recuar para o largo imediatamente antes de o outro vir dar à praia? Mas este era diferente. Ele não sabia como comportar-se, pensar a longo prazo fazia-o sofrer e, por uma vez, não lhe parecia haver culpas com que arcar. Era a mulher dele que estava a ter um caso, e a tê-lo de uma forma flagrante, punitiva, seguramente sem remorsos. Ele descobria no seu íntimo, por entre uma série de emoções, momentos intensos de vergonha e nostalgia. Patrice andava com um empreiteiro, o empreiteiro que trabalhava para eles, que lhes tinha rebocado a casa, equipado a cozinha, posto azulejos novos na casa de banho, o mesmo sujeito corpulento que, certa vez, durante a pausa do chá, mostrara a Beard uma fotografia da sua casa Tudor de imitação, renovada e tudorizada por suas próprias mãos, com um barco atrelado a um reboque por baixo de um candeeiro de estilo vitoriano no caminho de acesso cimentado e espaço suficiente para pôr de pé uma cabine telefónica vermelha desafectada. Beard ficou surpreendido ao descobrir como era complicado ser o marido enganado. A desventura não era simples. Que ninguém dissesse que nessa fase avançada da vida ele era imune a novas experiências.»
Ian McEwan, Solar, pp. 11-12
[Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Março de 2010, 338 pp.; tradução de Ana Falcão Bastos; obra original: Solar, 2010]

quarta-feira, 24 de março de 2010

Fiat Justitia, pereat mundus (act.)



(Sugestão: regressar ao título do texto – que, infelizmente, não se refere à estreia de um novo modelo da conhecida marca de automóveis sedeada em Turim; trata-se de coisa mais séria, animada por matéria mais inflamável –, apelando-se, neste caso, a uma acção enérgica por parte dos dirigentes do meu clube – fundamentada na opinião corroborada pela esmagadora maioria dos juristas instados a pronunciar-se sobre a matéria – grupo em que se inclui José Manuel Meirim, adepto do clube da Luz, e o único doutorado em Direito do Desporto em Portugal –, indo até às últimas consequências compensatórias e indemnizatórias perante uma sentença injusta, desproporcionada, revoltante e que manchou indelevelmente, por muito que se tente esconder com justificações de forma física, o rumo dos acontecimentos desportivos da época 2009/2010).

[Actualização, 25/03, às 15:47]: comentário do dia (da decisão), por André Sousa, de Coimbra, em reacção à sanha justiceira vermelha e à cegueira da clubite exibida por outros nos comentários que postaram sobre a mesma notícia do jornal Público:

«Os tribunais Civis ilibaram o Pinto da Costa... e a Comissão Disciplinar é que era isenta!!... O TAS não deu razão às queixinhas do SLB e Guimarães... e a Comissão Disciplinar é que era isenta!! ... a FPF deliberou a favor da pretensão do FCP nas penas EXCEPCIONAL e PROPOSITADAMENTE aplicadas ao Hulk e Sapunaru, e a Comissão Disciplinar é que continua a ser a entidade isenta!! IRRA... quem acredita ainda na CD Liga ou é cego ou Lampião... só pode!! O Herminio Loureiro, perdeu uma boa oportunidade de dar outra entrevista à SIC a expressar a sua mágoa pelas decisões da CD Liga... enfim... é o SISTEMA!!» [sic]

segunda-feira, 22 de março de 2010

Do país em que foi mesmo a última

E por fim, reedita-se em Portugal (pelas mãos da Asa, o que outrora fora da Presença) o único romance de Paul Auster que, caso dotado da sua singularidade lusa, não se encontrava acessível em português europeu aos novos leitores, a não ser através do acervo literário das bibliotecas ou, com alguma sorte, do stock dos alfarrabistas.
Trata-se da obra No País da Últimas Coisas (In the Country of Last Things, 1987), o 2.º romance do autor de Newark, publicado originalmente no mesmo ano em que se forjava – reunião num só volume de três histórias – a sua obra mais emblemática, A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy, 1987) e que, ainda hoje, serve de diapasão para a sua restante obra e retém uma horda de fanáticos espalhados por todo o mundo, especialmente na Europa não anglófona.
Eis a distopia de uma das mais marcantes personagens de Auster, Anna Blume – que, de quando em vez, surge nas suas deambulações auto-referenciais e metaficcionais noutros romances mais recentes –, em busca do irmão misteriosamente desaparecido numa região sem nome, inóspita, devastada pelos inescapáveis vícios da natureza humana.
No País das Últimas Coisas lê-se de um só fôlego, austero – e austeriano, dois qualificativos que o acaso tornou sinónimos –, intimidante e comovedor. Em jeito de confissão, este foi um dos poucos livros em que profanei, pela exasperação da lentidão editorial nacional, o meu princípio de leitura de obras literárias de ficção “apenas em português”, porquanto o castelhano e o inglês são parte obrigatória das minhas leituras profissionais diárias, e prazer e trabalho não se coadunam com o meu sentimento de paz de espírito alcançado com a leitura de um bom livro.
Nota (à laia de conselho estafado): para os exegetas da literatura comparada e que pela primeira vez terão o privilégio de acesso à obra, suponho ser desnecessário cotejar esta com as de Houellebecq (A Possibilidade de uma Ilha), Atwood (Órix e Crex – O Último Homem) e, mais recentemente, de Cormac McCarthy (A Estrada); em primeiro lugar, pelo desfasamento temporal – quase vinte anos – entre esta e aquelas, e depois, segundo o mesmo critério, pela catalogação – com a já experimentada intenção de a menorizar – desta na “moda dos romances distópicos”, sem referir, por exemplo, as antecessoras de Huxley, Orwell ou Bradbury, e sem que haja, todavia, a real necessidade de alargar o espectro às de intervenção alienígena, tendo por epítome Wells.

quinta-feira, 18 de março de 2010

O que vale mesmo a pena…

…de entre o característico fogo-de-artifício burtoniano, arabescos computorizados, um pastiche mal concertado entre o País das Maravilhas e o Outro Lado do Espelho, a que se juntam as normais garridices de encher o olho num bailado excruciante pró-tauromáquico, sempre matizado pelas já doentias alusões à técnica funesta e assaz perigosa da decapitação ou pela exibição impudica de grotescos decapitados, dizia, o que vale mesmo a pena é o que se segue, e não sendo cunicultor, nem sequer apreciador do tal bicho à caçador, mia (e não se trata aqui do evanescente e mordaz Gato de Cheshire, é coisa mais tangível e inocente):
Mia Wasikowska (n. 1989)
Honra a Peter Jackson e à sua mais comedida fantasia onírico-etérea travestida de thriller de estalar os ossos.

segunda-feira, 15 de março de 2010

Driving Mr. Penn

Se os tempos não tivessem mudado e no caso de coarctada a exposição mediática (para o bem e para o mal) de determinadas atrocidades perpetradas pela sordícia do autoritarismo legítima ou ilegitimamente referendado – exposição agora inexorável, facilitada pelo crescimento exponencial dos meios de difusão de informação não manipulada –, o actor norte-americano Sean Penn porventura – e trata-se de mera especulação, embora fundamentada pelos flagícios sociopolíticos do século XX – teria dado um outro final à sua frase, proferida – é bom notar – num ambiente irrestrito de liberdade de expressão, «Devia haver um tribunal que mandasse» fuzilar* «as pessoas […] por este tipo de mentiras», e aquele tipo consiste em alcunhar reiteradamente de «ditador» o déspota venezuelano Hugo Chávez, um «líder eleito» como afirmou Penn, servido-se de forma abusiva da proposição para servir de alavanca enfática à sua irritação impositiva. Mas, Hitler também foi eleito e aclamado pelo povo – o que, por curiosidade, até desfaz a retórica falaciosa professada num dos exaltados filmes messiânicos em que Penn foi figura de cartaz (e que lhe permitiu arrecadar meia dúzia dos mais importantes prémios do mundo do cinema e mais um punhado de dólares): E se Klara Hitler tivesse abortado durante a gravidez de Adolf?
É o mundo em mudança. Santana manda expulsar quem critique a direcção do partido. Penn mandaria prender quem apodasse Chávez de ditador. Não vale. Duas estrelas que se movimentam no caldo protector da democracia para poderem proferir este tipo de inanidades. Enviemo-los para a Venezuela, transformemo-los em venezuelanos retirando-lhes as actuais cidadanias. Nada melhor que vestir a pele daqueles que clamam e se expõem ao martírio pelo simples cheiro da liberdade.
Se ao primeiro lhe permito o dislate, porque não existe, de forma sentida, qualquer apelo a um resquício de indulgência, o sujeito é-me soberanamente indiferente, e tão-pouco afecta a minha vida; ao segundo, que me diz muito, até o perdoo porque me deu o inesquecível Lado Selvagem (Into the Wild, 2007), e protagonizou autoritariamente Mystic River ou Milk.
Nota: *verbo caro ao grande amigo do camarada Soderbergh.

sexta-feira, 12 de março de 2010

Ritmos Copulativos, segundo Coetzee

Pode parecer estranho, mas um adágio pode prolongar a coisa sem a necessidade de recurso a químicos, apenas música de câmara e uma imaginação fértil e síncrona.
Franz Schubert, Quinteto de Cordas em Dó Maior, D. 956, 2.º andamento:

domingo, 7 de março de 2010

Ao iniciar-se a madrugada

Abrem-se a hostilidades fílmicas e as futilidades indumentárias e comportamentais, assim que aquele tapete vermelho que afaga a entrada do Kodak Theatre for calcorreado por ufanos agentes da 7.ª arte à procura de glória e promoção.
Trata-se, pois, da 82.ª segunda edição de entrega dos Óscares da Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas de Hollywood, e porventura a primeira em algumas décadas (desde os tempos remotos dos directos da TVE em emissão pirata no Porto) que não irá merecer um segundo sequer da minha atenção – este é o desejo, porém receio que, lá pela 1 da madrugada, o bichinho da curiosidade, mesmo perante tão fraco produto a concurso, seja mais forte que a minha férrea vontade.
São 38 filmes a concurso (incluindo os de “língua estrangeira” e os de “animação, e excluindo os documentários e as curtas-metragens). Do total, apenas vi, por sorte, 12, já que não abrange o abandono a meio do espesso e dulcíssimo xarope keatsiano de Jane Campion. Posso quase apostar contra mim mesmo que esta é a edição em que menos filmes a concurso passaram previamente pelos meus olhos.
Independentemente do número de categorias para que estão nomeados, um bom listómano – exibicionista por definição (não entrando em considerações sobre a auto-ilusão que advém de um orgulho potencialmente espúrio) –, expõe no seu blogue um arrolamento dos filmes que viu, com ordem de preferência e os demais requisitos. Naturalmente, é o que segue neste meu cantinho de catarse (entendam-no como vos aprouver).
Organizei 6 grupos, dentro de cada qual os filmes figuram por ordem alfabética do título em português:
Obra-Prima
(Estou a brincar.)
Merecem destaque, quiçá a vitória (conceito bastante relativo dada, pelo menos, a disparidade do número de categorias a que concorrem) – 5 filmes:
  • Estado de Guerra, de Kathryn Bigelow (The Hurt Locker);
  • Um Homem Singular, de Tom Ford (A Single Man);
  • O Laço Branco, de Michael Haneke (Das Weisse Band);
  • Um Profeta, de Jacques Audiard (Un Prophète);
  • Sacanas Sem Lei, de Quentin Tarantino (Inglourious Basterds).
Mediania (apesar de algum aparato cénico num dos elementos) – 2 filmes:
  • Avatar, de James Cameron;
  • O Mensageiro, de Oren Moverman (The Messenger).
Ah, se eu soubesse… (variável tempo em jogo, neste caso o desperdiçado) – 2 filmes:
  • Distrito 9, de Neill Blomkamp (District 9);
  • Invictus, de Clint Eastwood.
Pretensiosos e sem substância (estafados, sem ideias ou novidade) – 2 filmes:
  • Nas Nuvens, de Jason Reitman (Up in the Air);
  • Uma Outra Educação, de Lone Scherfig (An Education).
Simplesmente horrendo, grotesco e escabroso – 1 filme:
  • Precious, de Lee Daniels (Precious: Based on the Novel ‘Push’ by Sapphire).
Em cima, na fotografia, o grupo que a ser convidado pela Academia animaria com toda a ternura e singeleza os intervalos, com contrato garantido pela inenarrável Oprah no fim do espectáculo.

sábado, 6 de março de 2010

Sonhos

Sentei-me sem expectativa que adviesse de conselho de mente avisada na cinefilia médico-legal do “suspense”. Procurei não ler e nada ver ou ouvir sobre a última obra de Scorsese, a mente mais preclara e enciclopédica de Hollywood sobre a arte, a ciência e a técnica cinematográficas da indústria centenária.
Ecrã preto, letras no velho formato cinemascópio e um navio ao largo de Boston quebrando as ondas ao som do trecho orquestral “Lontano” do compositor austro-húngaro György Ligeti, criam o ambiente hitchcockiano que, como prenúncio, sabemos que irá salpicar de estilo as cenas marcantes do filme.
A obra de base é um thriller de Dennis Lehane, e o primeiro passo consistiu em vencer a tentação de catalogação apriorística – ir ao fundo da mente para denegar a denegação –, surdindo um apelo de confrontação entre o italo-americano e o Mestre inglês, em que, um dos corolários da agitação da memória, se faz recordando e estabelecendo-nos na admiração irrestrita do primeiro sobre a plasticidade transformadora de uma má história na mais brilhante mistura cénica para o grande ecrã. E não foi só, porquanto o cientista foi buscar os distúrbios de personalidade e o seu recontro final esquizofrénico a um Samuel Fuller (argumento e realização) do início dos anos 60: O Corredor do Silêncio (Shock Corridor, 1963) e a inesquecível sequência do sonho. Mas mais uma vez são do Mestre as reminiscências que me assaltam em catadupa; e a ele recorro invocando esse portentoso e incrivelmente tortuoso A Casa Encantada (Spellbound, 1945), estigmatizado pela cena do “sonho” concebida por Salvador DalíPeck em DiCaprio, porque não? Ballantine e Daniels, uma curiosa contenda onomástica entre um scotch e um bourbon.
Lembrei-me também do subavaliado Fear X – O Medo (2003) escrito pelo desenfreado Hubert Selby, Jr. nos seus últimos dias de vida, em parceria com o jovem realizador dinamarquês Nicolas Winding Refn, e do seu final aberto, com a curiosidade de Brian Eno ser um dos elementos comuns com esta ilha do desassossego.
E depois emergiu o mínimo literário Harlan Coben, engenhosamente adaptado por Guillaume Canet, trasladando a trama de Nova Iorque para Paris, e o sonho ganhou aqui uma palpabilidade propulsada por um inusitadamente realista happy ending.

No fim do filme, enquanto seguia atrás de dois casais de septuagenários que, para além de teimosamente, com a sua parcimónia senil, me tentarem manter dentro da claustrofobia que desceu sobre a sala com o angustiante “This bitter Earth” plantada em “On the nature of daylight”, ensaiavam interpretar o final de Shutter Island, outras imagens corriam desenfreadamente na minha mente. Os paralelismos, sem nunca pensar em plágios, senão em arte como uma sucessão de originalidades decorrentes de repetições ao longo dos séculos, neste caso encorpada por um dos poucos fazedores de filmes que pode ser comparado a uma filmoteca viva, cujas técnicas foram aprendidas e apreendidas pelo olhar de relojoeiro no rendilhado minucioso que molda com uma marca pessoal inimitável, com a sua assinatura, uma obra de arte.
A mim bastou-me aquele início para a rendição completa, uma câmara hitchcockiana a deambular pelas escarpas de uma ilha-prisão assustadora pelo som tenebroso do trítono de “Passacalha - Allegro Moderato”, o 4.º andamento da 3.ª sinfonia de Penderecki.
Sem mais delongas ou palavras vãs: Arrepiante. Magnífico. A arte de tornar verosímil o absurdo, aqui como no Mestre, elevada ao seu expoente máximo. Martin Scorsese.

Ouvir aqui Dinah Washington (This bitter earth) e Max Richter (On the nature of daylight), uma mistura etérea de autoria de Robbie Robertson.