Lugar-comum: gosto de Literatura, especialmente da boa.
Digressão: Esta tautologia, usada amiúde nos mais diversos assuntos donde emana a susceptibilidade de qualificação, encerra tudo aquilo que se me apraz dizer sobre esta mania humana, demasiado humana, de categorizar o belo segundo os juízos estéticos próprios, eminentemente pessoais, e felizmente intransferíveis sem ruído ou atrito para outrem.
Apor o rótulo de “literatura gay” ao romance Cidade Proibida, o primeiro do autor português Eduardo Pitta (n. 1949), seria como reputar de “literatura esquizofrénica” o Dom Quixote de Cervantes ou de “literatura judicial” (distópica) O Processo de Franz Kafka.
A rotulagem serve apenas de guia, ou o propósito de síntese, e com esse breve resumo epitético poder transmitir alguma da verdade que se esconde para além do esforço de interpretar os signos que cruzam a obra – i.e., ler o livro no caso de se tratar de uma obra literária –, mas cumpre capazmente as funções de uma arma de arremesso se estiverem presentes no espírito do rotulador sentimentos apriorísticos, inter alia, de simples esconjuro, maledicência, inveja, animosidade sobre autor da obra, mesmo que, à luz dos princípios morais transversais ao todo social, as razões que motivam a imposição desses preconceitos possam derivar de causas objectivamente reputadas como justas.
Digressão: Esta tautologia, usada amiúde nos mais diversos assuntos donde emana a susceptibilidade de qualificação, encerra tudo aquilo que se me apraz dizer sobre esta mania humana, demasiado humana, de categorizar o belo segundo os juízos estéticos próprios, eminentemente pessoais, e felizmente intransferíveis sem ruído ou atrito para outrem.
Apor o rótulo de “literatura gay” ao romance Cidade Proibida, o primeiro do autor português Eduardo Pitta (n. 1949), seria como reputar de “literatura esquizofrénica” o Dom Quixote de Cervantes ou de “literatura judicial” (distópica) O Processo de Franz Kafka.
A rotulagem serve apenas de guia, ou o propósito de síntese, e com esse breve resumo epitético poder transmitir alguma da verdade que se esconde para além do esforço de interpretar os signos que cruzam a obra – i.e., ler o livro no caso de se tratar de uma obra literária –, mas cumpre capazmente as funções de uma arma de arremesso se estiverem presentes no espírito do rotulador sentimentos apriorísticos, inter alia, de simples esconjuro, maledicência, inveja, animosidade sobre autor da obra, mesmo que, à luz dos princípios morais transversais ao todo social, as razões que motivam a imposição desses preconceitos possam derivar de causas objectivamente reputadas como justas.
O que seria feito de autores como Gide, Wilde, Vidal, Forster, Waugh ou Mann, se a homofobia do recenseador em conjugação com o conhecimento da preferência sexual do autor determinassem a apreciação crítica dos seus textos?
Tergiverso, eu sei, rumo à temática da homofobia empedernida, normalmente uma curiosa fachada que esconde um mal que, residindo no âmago do nosso ser, não se pretende enfrentar, sabendo-se, como se sabe, que um assunto mal resolvido redunda, quase sempre, num persistente estado de frustração que, se não for debelado, termina de forma inevitável numa existência marcadamente infeliz. Ora, curiosamente, ou talvez não – via mecanismo de manipulação (ilusório) do destino do texto que estou a escrever –, Cidade Proibida relata e tenta responder de forma subliminar – e aí reside a destreza do autor – a muitos desses malogros que enxameiam as vidas etéreas dos denominados recolectores do êxito social.
Em 2004, o escritor britânico Alan Hollinghurst publica o seu mais aclamado romance, A Linha da Beleza. Nele se narram as atribulações de um jovem literato homossexual, proveniente da classe média rural britânica que, na década de 80, embevecido pelo Mestre Henry James, entra pela porta grande de Kensington Gardens, coabitando com classe política e a aristocracia londrinas, embrenhando-se nos meandros dos jogos de poder e da corrupção instalada, dos seus vícios e pecadilhos, sustentados por todo um ritual de manutenção das aparências.
Durante as páginas do extenso e brilhante romance, Nick Guest – é assim que se chama o rapaz, um eterno convidado por aquelas obscuras paragens –, com alguma parcimónia típica de um ser refinado, delicado e contemplativo, vai despertando para a cruel realidade da sua frágil condição de plebeu descartável, processo que apenas se materializou no final por uma dilacerante e brutal, tão tardia como súbita, tomada de consciência sobre um destino traçado sem hipótese de remissão.
Em Cidade Proibida, o centro geodésico desloca-se para Lisboa. Londres passa à condição de satélite de uma esfera de relacionamentos, mantida por uma teia de cumplicidades, na qual se move a alta sociedade lisboeta.
A partir da história de Martim e Rupert – um casal homossexual –, Eduardo Pitta constrói toda uma alegoria sobre a longa e abissal fractura que divide a sociedade lisboeta. De um lado subsiste uma elite que se move entre os jogos de interesses e a devassidão e que se refugia num apertado código de estrita observância comportamental que lhe garante a conspicuidade; e do outro os peões rejeitáveis e que se vão movendo por mão alheia no tabuleiro de xadrez apenas para garantir a inexpugnabilidade do núcleo duro representado na realeza e na turba de personalidades de segunda linha, os arrivistas, que, posicionados em lugares-chave, protegem os primeiros de toda a publicitação dos seus comportamentos mundanos, ao mesmo tempo que mantêm a ilusão de pertença a todo um meio que, na sua intimidade, lhe é hostil.
Tergiverso, eu sei, rumo à temática da homofobia empedernida, normalmente uma curiosa fachada que esconde um mal que, residindo no âmago do nosso ser, não se pretende enfrentar, sabendo-se, como se sabe, que um assunto mal resolvido redunda, quase sempre, num persistente estado de frustração que, se não for debelado, termina de forma inevitável numa existência marcadamente infeliz. Ora, curiosamente, ou talvez não – via mecanismo de manipulação (ilusório) do destino do texto que estou a escrever –, Cidade Proibida relata e tenta responder de forma subliminar – e aí reside a destreza do autor – a muitos desses malogros que enxameiam as vidas etéreas dos denominados recolectores do êxito social.
Em 2004, o escritor britânico Alan Hollinghurst publica o seu mais aclamado romance, A Linha da Beleza. Nele se narram as atribulações de um jovem literato homossexual, proveniente da classe média rural britânica que, na década de 80, embevecido pelo Mestre Henry James, entra pela porta grande de Kensington Gardens, coabitando com classe política e a aristocracia londrinas, embrenhando-se nos meandros dos jogos de poder e da corrupção instalada, dos seus vícios e pecadilhos, sustentados por todo um ritual de manutenção das aparências.
Durante as páginas do extenso e brilhante romance, Nick Guest – é assim que se chama o rapaz, um eterno convidado por aquelas obscuras paragens –, com alguma parcimónia típica de um ser refinado, delicado e contemplativo, vai despertando para a cruel realidade da sua frágil condição de plebeu descartável, processo que apenas se materializou no final por uma dilacerante e brutal, tão tardia como súbita, tomada de consciência sobre um destino traçado sem hipótese de remissão.
Em Cidade Proibida, o centro geodésico desloca-se para Lisboa. Londres passa à condição de satélite de uma esfera de relacionamentos, mantida por uma teia de cumplicidades, na qual se move a alta sociedade lisboeta.
A partir da história de Martim e Rupert – um casal homossexual –, Eduardo Pitta constrói toda uma alegoria sobre a longa e abissal fractura que divide a sociedade lisboeta. De um lado subsiste uma elite que se move entre os jogos de interesses e a devassidão e que se refugia num apertado código de estrita observância comportamental que lhe garante a conspicuidade; e do outro os peões rejeitáveis e que se vão movendo por mão alheia no tabuleiro de xadrez apenas para garantir a inexpugnabilidade do núcleo duro representado na realeza e na turba de personalidades de segunda linha, os arrivistas, que, posicionados em lugares-chave, protegem os primeiros de toda a publicitação dos seus comportamentos mundanos, ao mesmo tempo que mantêm a ilusão de pertença a todo um meio que, na sua intimidade, lhe é hostil.
«A mãe pressionava como nunca. Aguentar o lugar na empresa, mais do que uma seca, tornara-se penoso. Com os amigos não podia contar, nunca fora pessoa de grandes confidências e, ainda que fosse, no meio a que pertencia as confidências tinham balizas bem definidas. O limite aceitável seria dar o flanco por uma conquista mal resolvida. A partir daí era impensável. A família nunca se discute com terceiros.» (pág. 125)
Cidade Proibida é um romance enganador. Apesar das suas escassas 134 páginas e de uma miríade de personagens – incluindo os protagonistas – superficialmente descritas, contrastando com a descrição pormenorizada, roçando os limites do detalhe obsessivo, das festas, das ementas, dos vinhos, da indumentária do convivas, aquele deve ser lido com cuidado, todos os pormenores, por mais supérfluos que possam parecer, interessam para o estabelecimento do quadro final. Não há gordura ou divagação, nota-se uma forte determinação do autor em contar uma história sem atavios, solilóquios e metáforas obsidiantes. Trata-se de uma escrita crua e impiedosa, que não pretende provocar o choque gratuito – a gratuitidade deixemo-la, por exemplo, com escritores como Palahniuk –, mas que, como com Easton Ellis, apenas pretende ser o mais fiel possível a uma realidade, a um modo de vida celerado que se esconde dos demais e que sobrevive à custa dessa ignorância.
Literatura gay? Onde?
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Eduardo Pitta, Cidade Proibida. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Maio de 2007, 134 pp.
Nota: Um dos episódios mais deliciosos: os homéricos “mirmidões” de Egina que, programados para o combate, quais formigas trabalhadoras e obedientes, cumprem fielmente as funções para as quais foram destinados pelos seus nobres e celerados amos.
Literatura gay? Onde?
Classificação: **** (Bom)
Referência bibliográfica:
Eduardo Pitta, Cidade Proibida. Matosinhos: QuidNovi, 1.ª edição, Maio de 2007, 134 pp.
Nota: Um dos episódios mais deliciosos: os homéricos “mirmidões” de Egina que, programados para o combate, quais formigas trabalhadoras e obedientes, cumprem fielmente as funções para as quais foram destinados pelos seus nobres e celerados amos.
4 comentários:
sim, isso das rotulagens, não lembram a ninguém. parabéns pela critica. um abraço
Será que a rotulagem implica um código...de barras?
Obrigado, António. Um abraço
Carlos,
Código barras não sei... mas quanto ao ponto verde...
Concordo consigo, no que respeita às rotulagens, em literatura. No entanto, em relação ao autor - Eduardo Pitta - é, ele mesmo, quem defende esse rótulo aposto à sua, e toda, literatura que fale de homossexualidade.
Li o livro, sou heterossexual, e sobre as cenas de sexo, lá contidas, parafraseio uma frase - que está escrita na contracapa - " (...) 'Cidade Proibida', uma obra em muitos aspectos perturbador, na licença de linguagem como no relato de vários interditos". Esta análise pode-se aplicar a muitas outras obras literárias, que não tenham um casal de homossexuais como protagonistas.
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