sábado, 23 de junho de 2007

O fim do romance anglo-saxónico?

8.º Passo: Fazer uma lista de pessoas a quem causamos danos, para as poder compensar.
(seguindo os passos até ao São João)

Felizes os podcasts da estação de televisão pública. Eis a plataforma que evita a incompatibilidade de horários no mundo… isto é, o do telespectador com o dos seus programas favoritos. Assim seja.
Câmara Clara, programa da
RTP2, apresentado pela faiscante Paula Moura Pinheiro, cujo título foi decalcado do último trabalho publicado em vida de Roland Barthes, o ensaio filosófico de 1980 em que Barthes discorreu sobre a fotografia e os seus elementos vivos e essenciais, o studium e o punctum: o primeiro resulta da nossa concepção geral do mundo, onde a fotografia reflecte o nosso interesse apenas como objecto; o segundo é aquele que transforma a fotografia de novo em sujeito, não só pelo simples pormenor que torna a fotografia única a cada indivíduo, visto no momento ou resultante de um processo apuramento da memória, mas também, de forma mais arrebatadora, a consciência da morte ou da sua chegada iminente, porque representa no tempo um momento que deixou de existir… Bom, basta de filosofias!

Ponto de ordem: prosseguindo…
Pablo Picasso - Les Demoiselles d'Avignon (1907)No passado dia 27 de Maio, o Câmara Clara, no meu entender o melhor programa de produção exclusivamente portuguesa no descoroçoante panorama televisivo nacional, contou com a presença do all-in-one das artes e das letras nacionais Jorge Silva Melo. Da ficha do programa destacava-se a celebração dos cem anos de nascimento do actor norte-americano John Wayne – nasceu a 26 de Maio de 1907. Por outro lado, dela constava a promessa de uma boa conversa sobre livros, particularmente daqueles que acompanharam o convidado de honra ao longo da sua vida e da sua carreira literária, discutindo-se, em simultâneo, o estado da arte do mercado editorial português, bem a propósito da abertura da 77.ª edição das feiras do livro de Lisboa e do Porto.

Jorge Silva Melo, quer se goste ou não da sua idiossincrasia e/ou das suas ideias ou reflexões, é uma personalidade que se ouve por vício, tem uma capacidade comunicacional ímpar no meio cultural português, pelas fluidez do discurso e limpidez de raciocínio.
Sobre John Wayne, de quem Silva Melo confessou a sua profunda admiração, especialmente nos filmes em que foi dirigido pelo mestre Howard Hawks – de forma notável, referiu, para o efeito e através da exibição de um excerto do filme de 1959 Rio Bravo, a introdução do elemento fragilidade nos personagens interpretados por Wayne quando dirigido por Hawks, comummente apresentado com um homem de ferro por outros realizadores –, evocou um facto curioso que demonstra a perenidade da arte no espírito humano através das suas constantes revoluções e contra-revoluções: recordou que no preciso ano em que Wayne soltava o primeiro choro no Iowa nos Estados Unidos – certamente já instilando, no seu estilo pastoso, a sua voz cava –, Pablo Picasso pintava Les Demoiselles d’Avignon (óleo sobre tela, com as descomunais dimensões de 2,44 por 2,34 metros, actualmente propriedade do MoMA em Nova Iorque) e com ele revolucionou as artes plásticas mundiais, o grande ponto de viragem, o início de um novo paradigma estético que se alastrou às demais artes.

Depois, chegou o momento dos livros. Antes de referir as sugestões de Filipa Melo, consultora de Literatura do Câmara Clara, dou um salto cronológico até Rui Zink para logo regressar a Silva Melo, que discorre sobre o estado do romance anglo-saxónico da segunda metade do século XX.
O último romance de Martin Amis, A Casa dos Encontros (Teorema, 2007), foi destacado mediante a exibição de uma pequena peça jornalística, por Luís Caetano, na qual o hiperbólico Rui Zink, após haver falado do horror dos gulags, exprimiu a sua imensa admiração pelo escritor de Oxford, filho de Kingsley Amis, nestes termos: «o Martin Amis é para mim, simplesmente, o melhor escritor de língua inglesa do mundo… e é-o desde há vinte anos.»
Não podia estar mais em desacordo, embora conheça mal a obra de Amis – devo ter lido, ao todo, 4 ou 5 obras – havendo-me recordado naquele preciso momento de pelo menos dez nomes que, segundo os meus padrões estético-literários, são consideravelmente superiores ao autor de O Cão Amarelo.
Para não os nomear e, para além disso, ter de puxar pela memória e encontrar mais uma meia dúzia escritores de língua inglesa, com obra publicada nos últimos 20 anos, cuja qualidade considero superior a Amis, basta-me fazer de novo um recuo no programa e falar dos quatro gigantes literários norte-americanos propostos por Filipa Melo, no pressuposto – quanto a mim um pouco lírico, a Internet tomou em definitivo esse lugar – de que nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto poderíamos encontrar os livros que, por razões de espaço, há muito abandonaram os escaparates das livrarias portuguesas:
Saul Bellow, Philip Roth, John Updike e Gore Vidal.
Considero qualquer um daqueles quatro nomes com uma razoável distância qualitativa, para melhor, em relação a Martin Amis. No futuro, quem sabe, se lá não chegará… E mais, Zink traduziu Bellow…
Confrontado com os quatro nomes, Silva Melo diz não considerar Gore Vidal como um ficcionista de primeira linha, apesar de ser uma personalidade fascinante [talvez um cínico?, pergunto eu]*; de Philip Roth confessa-se um leitor irregular, lê três obras de Roth de enfiada para depois ficar anos sem o ler, processo que curiosamente metaforiza como de ir «por ataques, são abcessos [sic] de leitura»; de seguida, JSM revela o seu enorme fascínio por Saul Bellow e pelas suas obras, que acompanhava a cada nova publicação, chamando-lhe o fenómeno (de leitura) da «continuidade permanente», cujo processo apenas durou até ao romance Dean’s December, o décimo de quinze romances que Bellow – Nobel da Literatura em 1976 – publicou – morreu a 5 de Abril de 2005; nunca leu com muito interesse as obras de John Updike, apesar de o achar «inteligente, cerebral e pertinente».
Depois veio uma reflexão potencialmente assassina e a apelar para alguma reflexão da blogosfera que se interessa por e admira a Literatura anglo-saxónica (como é, sem qualquer sombra de dúvida, o meu caso):

«Eu tenho algumas dúvidas com a ficção anglo-saxónica desta segunda metade do século XX, ou seja, até justamente Saul Bellow, Graham Greene, Doris Lessing fui um leitor fiel… depois comecei a achar… a ficar um pouco aborrecido com esta hipótese de contar histórias, com esta hipótese de acreditar na ficção e nas personagens sem ter passado pela era da suspeita de que falava tão bem a Nathalie Sarraute.»


Qual foi a Demoiselles d’Avignon da segunda metade do século XX?
Para reflectir enquanto ando nesta tentativa de desintoxicação blogólica. Estarei limpo no dia de São João, ou seja, amanhã…?


Nota: *A propósito de Gore Vidal e das suas qualidades enquanto personalidade do show business americano, há um episódio – para além de outros deliciosos protagonizados com os ex-amigos Capote ou Mailer, ou até com William F. Buckley (a quem, em directo na cadeia de televisão ABC, Vidal chamou de “proto ou cripto-nazi”, motivando a seguinte resposta de Buckley: “Now listen, you queer, stop calling me a crypto-Nazi or I'll sock you in your goddamn face, and you'll stay plastered”) – contado por Fred Kaplan no seu livro de 1999 Gore Vidal: A Biography, em que Saul Bellow, em conversa com Vidal, lhe confessou que um dia gostaria de lhe apresentar o seu filho, para este último ficar a conhecer alguém verdadeiramente cínico.

Promessa: Depois de ouvir JSM, vou ler a obra por ele recomendada Aqui nos Encontramos de John Berger. Já era dela possuidor desde o início do ano. Neste momento passou para a lista de prioridades no enorme arquivo de não-lidos que repousam nas estantes e atulham a minha biblioteca.

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