Não há nada mais frustrante para o utilizador das artes literárias que um livro que não consegue ser Literatura. E há livros que não o logram, por maior que seja o esforço ou a vontade do autor, por maior que seja a sua disponibilidade física e mental, por mais que aquele se sinta como receptor divino do eflúvio da criatividade literária. E se, de forma irrestrita, um livro é literatura, isso apenas resulta do seu signo linguístico: um conjunto complexo de símbolos que formam vocábulos inteligíveis ao leitor que, propositada ou incidentalmente, o abriu. Logo, como exemplo e por abrangência do conceito, chamamos literatura a uma simples e despretensiosa bula de um medicamento. Assim é designada para distinguir um todo estruturado de natureza informativa – princípio activo farmacológico, excipientes, contra-indicações, efeitos secundários, interacções e posologia – do remédio que o acompanha. No entanto, esse conjunto informativo não cura, ou pelo menos não alivia a dor, ou não cala um desejo que, exteriorizado, mais não é que a manifestação da loucura (irreverência, diferenciação) intrínseca do ser aos olhos do mundo. Normalmente, a sua exaustividade informativa imposta pela lei do consumo, incluindo os efeitos indesejados da sua utilização que poderão ocorrer com 0,001% de probabibilidade, sugere um ansiolítico para o hipocondríaco que nela revê os sintomas do seu desvario.
Não seremos todos hipocondríacos neste mundo enfermiço?
Não julgaremos nós possuir alguns ou todos os sintomas da infelicidade humana?
Elencados os sintomas – megalomania, competitividade, aborrecimento e agitação, fadiga, inveja, sentimento de culpa, mania da perseguição ou medo daquilo que os outros possam pensar dos nossos comportamentos e atitudes, como definiu Bertrand Russell –, não haverá pelo menos um de que asseveramos padecer ou que julgáramos haver padecido num passado recente?
Em suma, não necessitaremos nós de literatura como de pão para a boca?
Ouvimos, lemos, compomos ou escrevemos para atenuar a pulsão que se solta do nosso íntimo desconhecido. E o sonho é uma forma de libertação dos resquícios dessa energia repelida. Sem esse escape implodimos, deixando apenas a carapaça como mostruário de um ser que já não o é, inanimado, cataléptico, sem vontade própria… vazio. Depois destruímos o que e quem nos rodeia. É o instinto de sobrevivência de quem se afoga ou de quem se afogou e deixa sobre os outros a culpa da hipótese marginal da salvação.
Por tudo isto, a virtude de um escritor está na capacidade de nos fazer sonhar. Nas pistas que deixa no subtexto sem a pretensão divina de assumir o papel de descodificador universal para que os outros cheguem a uma solução final. Há, por isso, uma imensidão de construções mentais, de interpretações, que têm por limite um conjunto de leitores cujo número natural se estende ao infinito.
No incensado Meio-irmão, do escritor norueguês Lars Saabye Christensen (n. 1953), há meia-literatura em livro e meio. As seiscentas e vinte e duas páginas por que se estende o romance tornam-se, a dada altura, num verdadeiro enfado, dada a tendência explicativa e profusamente descritiva do autor. A idiossincrasia de cada personagem é minuciosamente delineada, longe do esboço, apresenta-nos o produto final traçado a régua e a esquadro. Não há margem para a extrapolação, é todo um guia escrupuloso para o utilizador. O autor narcisicamente transformou-se em leitor-protector e dá-nos a chave. Engorda as páginas, quase sem parágrafos, para erigir o volume. O que nos leva a crer que falta destreza literária. Há uma percebida inabilidade no poder de síntese e na eliminação do supérfluo, da tal gordura, de uma adiposidade desnecessária – não hibernamos! –, ou então, resulta de um factor assaz recorrente que tem por origem a desmesura do ego do autor, a ilusória mensuração da destreza à página, o peso físico do livro como símbolo do domínio da arte literária.
Se Meio-irmão se houvesse quedado pelo último quinto do livro – a parte que, pela minha leitura mui pessoal, realmente interessa – acrescentado apenas de algumas linhas descritivas da envolvência histórica e circunstancial e da idiossincrasia dos personagens, não teria qualquer tipo de pudor em afirmar tratar-se de uma obra literária de excepção. Mas como essa expurgação é de todo impossível, a não ser que se arranquem as folhas até à página 496 (inclusive) – e sei lá se o meu leitor, como dizia o MEC, não é maluco para isso –, acrescentando-se a irrelevância dos epíteto “de leitura fácil” ou “de linguagem clara” – na realidade, são para mim factores secundários na avaliação de uma obra –, Meio-irmão não merece passar pelo processo de beatificação que muitos lhe têm garantido, especialmente a crítica literária, hiperbolicamente laudatória. Lê-se bem e depressa, mas esses jamais serão factores excludentes da banalidade, da superfluidade e da visão da literatura como uma fábrica de enchidos em pleno coração do planalto mirandês.
Referência bibliográfica:
Lars Saabye Christensen, Meio-irmão. Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Junho de 2007, 622 pp. (tradução de Sissel Bjørnstad Cardona; obra original: Halvbroren, 2001).
Aviso: esta não é uma nota de prova ao estilo das que anteriormente aqui se publicaram. Figurará, no entanto, na coluna da direita com a respectiva classificação.
Não seremos todos hipocondríacos neste mundo enfermiço?
Não julgaremos nós possuir alguns ou todos os sintomas da infelicidade humana?
Elencados os sintomas – megalomania, competitividade, aborrecimento e agitação, fadiga, inveja, sentimento de culpa, mania da perseguição ou medo daquilo que os outros possam pensar dos nossos comportamentos e atitudes, como definiu Bertrand Russell –, não haverá pelo menos um de que asseveramos padecer ou que julgáramos haver padecido num passado recente?
Em suma, não necessitaremos nós de literatura como de pão para a boca?
Ouvimos, lemos, compomos ou escrevemos para atenuar a pulsão que se solta do nosso íntimo desconhecido. E o sonho é uma forma de libertação dos resquícios dessa energia repelida. Sem esse escape implodimos, deixando apenas a carapaça como mostruário de um ser que já não o é, inanimado, cataléptico, sem vontade própria… vazio. Depois destruímos o que e quem nos rodeia. É o instinto de sobrevivência de quem se afoga ou de quem se afogou e deixa sobre os outros a culpa da hipótese marginal da salvação.
Por tudo isto, a virtude de um escritor está na capacidade de nos fazer sonhar. Nas pistas que deixa no subtexto sem a pretensão divina de assumir o papel de descodificador universal para que os outros cheguem a uma solução final. Há, por isso, uma imensidão de construções mentais, de interpretações, que têm por limite um conjunto de leitores cujo número natural se estende ao infinito.
No incensado Meio-irmão, do escritor norueguês Lars Saabye Christensen (n. 1953), há meia-literatura em livro e meio. As seiscentas e vinte e duas páginas por que se estende o romance tornam-se, a dada altura, num verdadeiro enfado, dada a tendência explicativa e profusamente descritiva do autor. A idiossincrasia de cada personagem é minuciosamente delineada, longe do esboço, apresenta-nos o produto final traçado a régua e a esquadro. Não há margem para a extrapolação, é todo um guia escrupuloso para o utilizador. O autor narcisicamente transformou-se em leitor-protector e dá-nos a chave. Engorda as páginas, quase sem parágrafos, para erigir o volume. O que nos leva a crer que falta destreza literária. Há uma percebida inabilidade no poder de síntese e na eliminação do supérfluo, da tal gordura, de uma adiposidade desnecessária – não hibernamos! –, ou então, resulta de um factor assaz recorrente que tem por origem a desmesura do ego do autor, a ilusória mensuração da destreza à página, o peso físico do livro como símbolo do domínio da arte literária.
Se Meio-irmão se houvesse quedado pelo último quinto do livro – a parte que, pela minha leitura mui pessoal, realmente interessa – acrescentado apenas de algumas linhas descritivas da envolvência histórica e circunstancial e da idiossincrasia dos personagens, não teria qualquer tipo de pudor em afirmar tratar-se de uma obra literária de excepção. Mas como essa expurgação é de todo impossível, a não ser que se arranquem as folhas até à página 496 (inclusive) – e sei lá se o meu leitor, como dizia o MEC, não é maluco para isso –, acrescentando-se a irrelevância dos epíteto “de leitura fácil” ou “de linguagem clara” – na realidade, são para mim factores secundários na avaliação de uma obra –, Meio-irmão não merece passar pelo processo de beatificação que muitos lhe têm garantido, especialmente a crítica literária, hiperbolicamente laudatória. Lê-se bem e depressa, mas esses jamais serão factores excludentes da banalidade, da superfluidade e da visão da literatura como uma fábrica de enchidos em pleno coração do planalto mirandês.
Referência bibliográfica:
Lars Saabye Christensen, Meio-irmão. Lisboa: Cavalo de Ferro, 1.ª edição, Junho de 2007, 622 pp. (tradução de Sissel Bjørnstad Cardona; obra original: Halvbroren, 2001).
Aviso: esta não é uma nota de prova ao estilo das que anteriormente aqui se publicaram. Figurará, no entanto, na coluna da direita com a respectiva classificação.
3 comentários:
Agora tramaste-me, visto estar a guardar-me para ele há já uns tempos.
Li os seus outros dois livros publicados em Portugal - Beatles e Herman - e são ambos muito bons (Beatles para mim é sinónimo de um prazer intenso, físico quase, vá-se lá perceber). Não peguei ainda no Meio-Irmão porque tenho alguma aversão tanto a romances de tamanho desmesurado como a páginas que, como referes, não respiram (como também bem notei quando o folheei numa livraria).
Estive quase, quase a comprá-lo ontem, mas por metade do preço acabei por trazer outros três livros. Pelos vistos ainda bem.
Gostei de ler o teu texto, é o único discordante que li até agora (e li algumas coisas já), o que é sempre positivo. Lógico que a vontade não abalou, mas penso que adiarei mais um pouco a leitura.
Não li os anteriores. Mas este deixou-me com pouca vontade de os ler. No entanto, tal como disse no texto, o livro vale pelas últimas 130 páginas. O resto é palha. Apenas para fazer volume.
André, gostaria de te fazer um convite. Como não tenho teu e-mail, escrevo esta mensagem. Se puder entrar em contato comigo, mande, por favor, um e-mail para:
renatamiloni[at]gmail.com
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