No último número (Julho/Agosto) da revista norte-americana The Atlantic (anteriormente designada por The Atlantic Monthly), o escritor, crítico e colunista britânico, residente nos Estados Unidos, Christopher Hitchens escreve sobre o último trabalho do seu eminente compatriota Ian McEwan, Na Praia de Chesil, e a consagração deste último como o escritor nacional – “Think of England”.
Entre outros assuntos conexos, Hitchens, tal como fizeram alguns críticos literários antes dele, fala da coincidência histórica entre a novela de McEwan e o célebre poema de Philip Larkin (1922-1985) “Annus Mirabilis”, escrito em 1967 – trezentos anos após o poema épico homónimo de John Dryden que narra os acontecimentos do Grande Incêndio de Londres (entre 2 e 5 de Setembro de 1666) e, segundo se supõe, atribuindo-lhe uma natureza miraculosa ou decorrente da vontade divina devido ao pequeno número de baixas; assim como a vitória esmagadora da armada inglesa sobre os holandeses na Batalha de Lowestoft a 13 de Junho do mesmo ano, o ano da besta do 2.º milénio.
Da leitura do artigo, passando por uma releitura das sinopses fornecidas pela editora e até de algumas críticas, concluí que existe uma disfuncionalidade cronológica entre o autor, a editora e as inúmeras recensões publicadas na imprensa de língua inglesa antes da publicação da obra, alastrando-se, de forma pandémica, aos textos que se seguiram – virulência assaz frequente no crítico profissional que não lê a obra recenseada e que, imbuído de um curioso espírito de solidariedade profissional, vulgo engenho mimético, acaba por cair no mesmo erro, embora, por um zelo singular, a exegese surja sempre num estilo mui íntimo, revelador da erudição e da cientificidade literária do autor.
Bem, ou então… tudo está correcto, McEwan desfruta da companhia do seu meio-irmão recentemente descoberto, enquanto esboça a próxima obra, e o mundo, na sua inexorabilidade, pula e avança… e eu, na minha eventual neurose obsessivo-compulsiva, que se manifesta por um putativo rigor anacrónico, insisto num pormenor decerto obviável – e não recebo nada por isso.
Para que se possa entender o propósito desta torturante, quiçá tortuosa, arguição, convém delinear um fio condutor que, pelo menos, permita um pequeno vislumbre da sua finalidade (inutilidade), seguindo, para o efeito, um método por etapas.
Em primeiro lugar, é de todo aconselhável começar com o tal poema de Larkin:
Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.
Up to then there'd only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.
Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.
So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.
Philip Larkin, “Annus Mirabilis”, (1967)
(Segundo Hitchens – merecendo inclusive nota de destaque na revista:
«Somente Philip Larkin logrou descrever o sexo de forma ainda mais crua em comparação com a que aqui [Na Praia de Chesil] faz McEwan. Não houve imperícia, falhanço ou desgraça que tivesse ficado por revelar.» [Tradução Livre: AMC])
Em segundo lugar, se dispuserem de alguma reserva mental que vos permita ler, ou então reler – podendo, neste último caso, redundar num processo autopunitivo mais severo –, qualquer texto por mim escrito e publicado neste blogue, escrevi no passado dia 2 de Maio este texto – também indicado na coluna da direita – sobre a minha experiência de leitura desta pequena obra-prima de McEwan.
Em terceiro lugar, Hitchens, as sinopses das edições inglesa e portuguesa do livro de McEwan e a generalidade dos críticos afirmam, de forma categórica e inequívoca, que a acção principal de Na Praia de Chesil – a famosa noite de núpcias – decorre no Verão de 1962. Ora, no caso do meu estimado leitor haver arriscado o esgotamento da sua paciência lendo o meu texto de pseudo-recensão – e se chegou até aqui, por que não dar o benefício da dúvida e fazer mais um esforço –, certamente verificou que situo a dita acção no Verão de 1963.
Hipótese nula: a acção de Na Praia da Chesil ocorre no dealbar do coito como forma de expressão sexual.
Ou seja, rejeitar a Hipótese Pré-Larkin, em detrimento da Hipótese, mais poética, de coetaneidade.
Começando pela análise do poema de Larkin, consegue-se, facilmente, delimitar um período para o alvor da explicitação sexual:
Entre outros assuntos conexos, Hitchens, tal como fizeram alguns críticos literários antes dele, fala da coincidência histórica entre a novela de McEwan e o célebre poema de Philip Larkin (1922-1985) “Annus Mirabilis”, escrito em 1967 – trezentos anos após o poema épico homónimo de John Dryden que narra os acontecimentos do Grande Incêndio de Londres (entre 2 e 5 de Setembro de 1666) e, segundo se supõe, atribuindo-lhe uma natureza miraculosa ou decorrente da vontade divina devido ao pequeno número de baixas; assim como a vitória esmagadora da armada inglesa sobre os holandeses na Batalha de Lowestoft a 13 de Junho do mesmo ano, o ano da besta do 2.º milénio.
Da leitura do artigo, passando por uma releitura das sinopses fornecidas pela editora e até de algumas críticas, concluí que existe uma disfuncionalidade cronológica entre o autor, a editora e as inúmeras recensões publicadas na imprensa de língua inglesa antes da publicação da obra, alastrando-se, de forma pandémica, aos textos que se seguiram – virulência assaz frequente no crítico profissional que não lê a obra recenseada e que, imbuído de um curioso espírito de solidariedade profissional, vulgo engenho mimético, acaba por cair no mesmo erro, embora, por um zelo singular, a exegese surja sempre num estilo mui íntimo, revelador da erudição e da cientificidade literária do autor.
Bem, ou então… tudo está correcto, McEwan desfruta da companhia do seu meio-irmão recentemente descoberto, enquanto esboça a próxima obra, e o mundo, na sua inexorabilidade, pula e avança… e eu, na minha eventual neurose obsessivo-compulsiva, que se manifesta por um putativo rigor anacrónico, insisto num pormenor decerto obviável – e não recebo nada por isso.
Para que se possa entender o propósito desta torturante, quiçá tortuosa, arguição, convém delinear um fio condutor que, pelo menos, permita um pequeno vislumbre da sua finalidade (inutilidade), seguindo, para o efeito, um método por etapas.
Em primeiro lugar, é de todo aconselhável começar com o tal poema de Larkin:
Sexual intercourse began
In nineteen sixty-three
(which was rather late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.
Up to then there'd only been
A sort of bargaining,
A wrangle for the ring,
A shame that started at sixteen
And spread to everything.
Then all at once the quarrel sank:
Everyone felt the same,
And every life became
A brilliant breaking of the bank,
A quite unlosable game.
So life was never better than
In nineteen sixty-three
(Though just too late for me) –
Between the end of the Chatterley ban
And the Beatles' first LP.
Philip Larkin, “Annus Mirabilis”, (1967)
(Segundo Hitchens – merecendo inclusive nota de destaque na revista:
«Somente Philip Larkin logrou descrever o sexo de forma ainda mais crua em comparação com a que aqui [Na Praia de Chesil] faz McEwan. Não houve imperícia, falhanço ou desgraça que tivesse ficado por revelar.» [Tradução Livre: AMC])
Em segundo lugar, se dispuserem de alguma reserva mental que vos permita ler, ou então reler – podendo, neste último caso, redundar num processo autopunitivo mais severo –, qualquer texto por mim escrito e publicado neste blogue, escrevi no passado dia 2 de Maio este texto – também indicado na coluna da direita – sobre a minha experiência de leitura desta pequena obra-prima de McEwan.
Em terceiro lugar, Hitchens, as sinopses das edições inglesa e portuguesa do livro de McEwan e a generalidade dos críticos afirmam, de forma categórica e inequívoca, que a acção principal de Na Praia de Chesil – a famosa noite de núpcias – decorre no Verão de 1962. Ora, no caso do meu estimado leitor haver arriscado o esgotamento da sua paciência lendo o meu texto de pseudo-recensão – e se chegou até aqui, por que não dar o benefício da dúvida e fazer mais um esforço –, certamente verificou que situo a dita acção no Verão de 1963.
Hipótese nula: a acção de Na Praia da Chesil ocorre no dealbar do coito como forma de expressão sexual.
Ou seja, rejeitar a Hipótese Pré-Larkin, em detrimento da Hipótese, mais poética, de coetaneidade.
Começando pela análise do poema de Larkin, consegue-se, facilmente, delimitar um período para o alvor da explicitação sexual:
- “the end of the Chatterley ban”, fim do processo judicial que visava proibir a venda do romance O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence: 2 de Novembro de 1960;
- “the Beatles' first LP”, estreia do primeiro L.P. dos Beatles – Please Please Me, editado pela Parlophone (empresa subsidiária da EMI): 22 de Março de 1963.
Outros factos históricos:
- os Beatles assinam o primeiro contrato com a EMI a 6 de Junho de 1962, nos famosos estúdios de Abbey Road, Londres, e publicam o primeiro single “Love Me Do” em 5 de Outubro de 1962, que integrava a canção “P.S. I Love You”. Segundo as inúmeras biografias e artigos de enciclopédia, o primeiro single teve um sucesso moderado, atingindo apenas a 17.ª posição no top de vendas do Reino Unido. O segundo single – que iria emprestar o nome ao primeiro álbum – “Please Please Me” é lançado no mercado britânico a 11 de Fevereiro de 1963 – foi primeiro grande sucesso dos Beatles, atingiu as 2.ª e 3.ª posições nos tops de vendas do Reino Unido e dos Estados Unidos, respectivamente.
Factos apontados no enredo da novela Na Praia de Chesil de Ian McEwan:
Edward Mayhew [destaques meus]:
- «[Edward] Tinha nascido em 1940, demasiado tarde no século, para acreditar que estava a maltratar o corpo» (pág. 21).
- «Naquela manhã, enquanto se vestia para o casamento […] decidira que nenhuma das figuras da sua lista poderia ter conhecido aquele tipo de satisfação […] Ali estava ele [Edward], um homem magnificamente realizado, ou quase realizado. Com vinte e três anos, já quase os tinha superado a todos.» (pp. 15-16)
- «Ele [Edward] tinha nascido em Julho de 1940, na semana em que começou a batalha de Inglaterra.» (pág. 51). A batalha de Inglaterra, refere-se às hostilidades entre a Luftewaffe e a R.A.F. pelo domínio dos céus e pela supremacia aérea, iniciou-se a 10 de Julho de 1940 (quarta-feira).
- «O Casal […] chegara ao entardecer ao hotel na costa de Dorset com um tempo que não era perfeito para meados de Julho» (pp. 7-8).
- Seguindo as regras da aritmética mais simples, se o nosso herói nasceu em Julho de 1940, entre os dias 7 (domingo) e 13 (sábado), e se contava 23 anos, a acção desenrola-se, fatalmente, no ano de 1963, mais concretamente no Verão desse ano.
Referências musicais:
- «Ele fê-la ouvir interpretações “desajeitadas mas respeitáveis” das canções do Chuck Berry pelos Beatles e os Rolling Stones.» (pág. 100). O primeiro single dos Rolling Stones saiu para o mercado a 7 de Junho de 1963, tratava-se de “Come On”, uma cover de uma canção de Chuck Berry. Todavia, segundo o The Complete Works of the Rolling Stones 1962 - 2007, entre 1962 e 1963, os Rolling Stones já tinham no seu repertório algumas canções de Chuck Berry: Brown-Eyed Handsome Man, Childhood Sweetheart, Don’t Lie To Me, Jaguar and Thunderbird, Johnny B. Goode, Little Queenie, No Money Down, Our Little Rendezvous e Sweet Little Sixteen. O período retratado nesta fase do livro, refere-se à fase do conhecimento mútuo pré-matrimónio, e neste caso relata os antagónicos gostos musicais de ambos. Episódio ocorrido, pelo menos, um ano antes do casamento.
Referências políticas:
- «E ele [MacMillan] tinha despedido um terço do seu gabinete na “noite das facas longas”, o que exigia coragem. Mac the Knife, chamava-lhe um cabeçalho, Macbeth!, dizia outro.» (pág. 30). Nesta parte da narrativa, Edward tenta ocupar a sua mente com assuntos políticos para evitar ejacular precocemente, enquanto abraça Florence e ambos se beijam freneticamente. A “noite das facas longas” refere-se ao despedimento compulsivo de cerca de um terço dos membros do Governo pelo Primeiro-Ministro britânico Harold MacMillan numa só noite: 13 de Julho de 1962.
Conclusão: hipótese nula não rejeitada. Rectifica lá as datas, Hitchens. A acção principal da novela Na Praia de Chesil não decorre na fase pré-coito, ou se se preferir, na fase pré-Larkin, mas, impudicamente, durante o coito (ou a faso do).
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