quarta-feira, 27 de junho de 2007

Coisas que te fascinavam (III)

A Tua revista de culto, com aqueles que admiravas: Vasco Pulido Valente e, sobretudo, Miguel Esteves Cardoso, para além dos textos de Agustina.
Assinei a revista. Tinha dezoito anos e tu apenas quinze e – lembras-te? –, na tua pueril impertinência, conseguias levar-me ao desespero se, no dia em que ela chegava à caixa de correio, não te desse pelo menos uma hora de leitura – que rica arma para quando nos zangávamos…
Lembras-te da crónica do MEC no n.º 10? Era aquela sobre o prurido jornalístico em nomear marcas de produtos e serviços.
Lembras-te do quadro com as marcas perfiladas por ordem alfabética, com um “obrigado” em cada apartado?
Até veio um “obrigado” à Doc Martens, orgulhosamente, e para grande desgosto dos nossos pais, os meus sapatos favoritos.


«Na crónica que se segue fazem-se referências a várias marcas e serviços. São as marcas e os serviços a quem devo grande parte da alegria da minha vida. São muitas. Não sei se isto é ou não publicidade. Sei é que estou a dizer a verdade.
As referências que farei às marcas e aos serviços a quem estou grato não foram pagas nem encomendadas nem sugeridas. Menciono-as por gratidão. Devo-lhes muito. Mais do que paguei por elas. Nalguns casos, estaria disposto a pagar uma pequena quantia em dinheiro pelo prazer de mencioná-las.
Obrigado, sim? Não sou um filisteu. Nenhum produto me trouxe o que me trouxeram os livros de Beckett ou da Agustina ou do João Miguel Fernandes Jorge. Mas também não sou parvo. Há muitos escritores de quem eu gosto que contribuíram menos para a minha felicidade (Gide, Chandler, Camilo) do que certos produtos como, por exemplo, o Volkswagen 1200, o Lexotan, o whisky Jamesons ou a Polaroid SX-70. Trocaria o usufruto vitalício de qualquer destas coisas pela impossibilidade de ler quaisquer daquelas obras. É horrível, não é? Mas é verdade. E eu tenho de dizer a verdade, mesmo que fique mal visto.
O dever do jornalista é dizer o que sabe. No caso do colunista, o que acha. Para mim não há diferença entre dizer bem de um filme e dizer bem de um sabonete. Se posso opinar que vale a pena ver o Rivette mais recente porque não poderei opinar que o Pears é um excelente sabonete e que vale a pena tomar banho nele? É publicidade? Para o Rivette também é preciso gastar dinheiro e beneficiar certas empresas para vê-lo, mas ninguém diz que é publicidade.
Porquê? Porque é arte? Esqueçamos o problema da definição, que só por si complicava as coisas. Finjamos que sabemos o que a arte é. Sendo assim sei que a Lídia Jorge é escritora e escreve romances que fazem parte da nossa literatura. Sei também que tem os seus admiradores. Eu não gosto, mas admito que tenha mau gosto. Sou é forçado a dizer esta verdade: que tenho muito mais respeito pela empresa que produz o leite Vigor. Aliás, para ser sincero, tenho mais respeito e acho que fazem mais falta à nossa sociedade os iogurtes Danone (de que gosto pouco) do que toda a obra literária e jornalística da Lídia Jorge.
O que interessa na vida não é distinguir o que é artístico do que é comercial, nem o que é jornalístico do que é publicitário e a razão não é por cada vez se confundirem mais. O que interessa é procurar distinguir o que é bom do que é mau e o que é verdade do que é mentira. O facto de ser impossível saber estas coisas com certeza não torna o objectivo menos nobre.
Já se sabe que tudo depende de tudo e que cada um tem a sua opinião mas, mesmo assim, há verdades mais verdadeiras que outras. É verdade, por exemplo, que os vinhos da Casa Ferreirinha são melhores que os vinhos da Camillo Alves. É verdade que Jorge Luis Borges escrevia melhor que Ferreira de Castro. É verdade que a comida para gatos da marca Whiskas é, segundo a opinião dos meus dois gatos, melhor do que a comida da Felix. É também verdade que um bom carpinteiro vale mais que um mau advogado, um bom contabilista mais que um matemático medíocre e um bom pintor de tabuletas mais que um péssimo poeta. Ou seja: não é por aquilo que as coisas calham ser (filmes ou marcas de jeans, profissões artísticas ou comerciais, notícias ou opiniões) que são mais ou menos susceptíveis de terem valor.
Como restaurante o Beira-Mar, em Cascais, é melhor do que o restaurante Muchaxo no Guincho. Isto é verdade. Mas também é verdade que, como restaurante português, o Beira-Mar tem, na minha opinião, um papel mais importante na nossa cultura que os romances da Lídia Jorge. (Peço desculpa a esta escritora pela insistência – não é alguém com quem eu embirre especialmente). Na minha opinião, seria pior que se perdesse a maneira de fritar os filetes de pescada que são servidos no Beira-Mar do que se se perdesse a maneira de escrever da Lídia Jorge.
Acho obsceno que eu possa dizer, como jornalista, que o professor Cavaco Silva é o melhor primeiro-ministro deste século, mas não possa dizer que a melhor manteiga portuguesa é a Atlântida. Acho obsceno que me seja permitido meter o nariz na política do governo irlandês, sem saber nada acerca do assunto, mas que me seja vedado recomendar o whisky irlandês Tullamore Dew que se vende no duty-free de Dublin e de Londres, acerca do qual sei até mais do que devia saber.
Acho obsceno que os jornalistas se pronunciem livremente sobre a política, que tem consequências fundamentais para a nossa vida comum, mas que se coíbam de confessar aos leitores se preferem o serviço da Avis ou da Hertz. Quando vejo, por exemplo, o espaço e a atenção que se tem dedicado ao PRD ao longo dos últimos anos, pergunto se não teria sido mais proveitoso e honesto aproveitar para publicitar o Hotel do Buçaco, ou o restaurante Pedro dos Leitões ou a Água do Luso? Há milhares de excelentes instituições portuguesas, de carácter comercial ou não, que não só não têm dinheiro para comprar publicidade, como podem morrer sem ela. São editoras, sapatarias simpáticas, fabricantes de bagaço, costureiras, tipografias, tascas, explorações agrícolas, industriais de calçado, companhias de táxis, lojas de segunda mão, viveiros de marisco… e não acaba.
No entanto se eu, como jornalista, me limitasse a publicitar as marcas e empresas pobres também estaria a faltar à verdade. E as ricas? Quero lá saber se a Lacoste gasta milhões de francos em publicidade todos os anos. Fabricam óptimas camisas de ténis. Como camisas são tão boas como o licor de ginja de Alcobaça fabricado por David Lopes que não tem muito dinheiro para gastar em publicidade. Tanto um como o outro merecem o meu apoio. Igualmente.
O dever do jornalista é dizer o que julga saber. Se, por pruridos anticomerciais, não revela aos seus leitores que achou excelente um acontecimento qualquer, está a exercer sobre si mesmo uma espécie de censura. O mal da censura é sempre o mesmo – uma vez que se aceita a sua existência é-se obrigado a discutir onde começa e onde acaba.
Sobre as grandes causas fala à vontade, quantas vezes com sobranceria e ignorância. Mas não é capaz de confessar que gosta de Chiclets. Promove políticos que vêm a mandar na nossa vida sem pensar duas vezes no que está a fazer, mas recusa-se a promover uma marca de pastilha elástica, que não afecta a nossa vida em quase nada.
Este pudor anticomercial é uma forma de censura. Não poder falar em marcas é um atentado à liberdade de expressão.
Pensar que essa liberdade convida à corrupção é irrelevante. Os mentirosos hão-de ser sempre mentirosos e os corruptos hão-de sempre ser corruptos. São os jornalistas que mentem e manipulam a informação política que são perigosos. Não são os que dizem bem (e justamente) do supermercado Euromarché.
O mundo é muito grande e tudo faz parte dele. Parece um truísmo, mas é um tabu. Não se pode falar de muitas coisas. Esse silêncio acaba por dar maior poder à publicidade. Se é verdade que uma grande campanha consegue (temporariamente!) impor, por exemplo, um iogurte merdoso, levando os consumidores a comprá-lo em vez de iogurtes melhores, esse efeito deletério deve-se sobretudo à censura anticomercial que reina no jornalismo. Os jornais que seriam capazes de assistir à falência de bons fabricantes de iogurtes, para não lhes fazerem publicidade gratuita, ao mesmo tempo que recebiam o dinheiro pago pelo fabricante merdoso, estariam a cometer uma imoralidade. Calando-se, faltariam à verdade. É como se se vendessem.
Quem diz a verdade nunca se vende. A ideia de eu me vender ao whisky Macallan, sobre o qual escrevi um artigo para a K é de morrer a rir. É de rir porque nunca me passaria pela cabeça dizer senão bem do Macallan porque o Macallan é mesmo um bom whisky de malte. Mas é de morrer a rir porque comete a suprema arrogância de julgar que um jornalista como eu é superior, como jornalista e apreciador de whiskies, ao Macallan como fabricante! Nem a Macallan precisa de me comprar nem eu sou ninguém, como entendedor do assunto, para ser sequer tido ou achado. Quem sou eu, o mero Miguel, para estar a pronunciar-me sobre um tão esplêndido whisky?
Seria o mesmo dizer que as motas da BMW são muito boas, ou que os jeans da da Levis duram que se fartam ou que a Água das Pedras é boa para as ressacas ou que os isqueiros Zippo nunca falham ou que a Leica fabrica boas máquinas fotográficas. Ao dizer estas verdades banais não só sinto que não me estou a vender como tenho a vergonha de me perguntar «Mas quem sou eu para estar a felicitar a Leica?» Quando se diz a verdade não custa tanto ver o valor do que se está a dizer. Os jornalistas estão convencidos que as empresas querem «comprá-los» e porque são – simplesmente – uns convencidos.
Se a Lee me pagasse 10 mil contos para escrever um anúncio explicando que eram melhores que a Levis seria capaz de aceitar, porque é muito dinheiro. Mas ficaria cheio de vergonha de mim mesmo. E não aceitaria nem 100 mil contos da Old Chap!
As marcas que alistei tornaram a minha vida mais fácil de suportar. Recomendo-as absolutamente. Não fiz a lista para provocar. Fi-la para agradecer. O mundo é um sítio complicado e nem sempre é simples determinar, por exemplo, se foi maior a influência na literatura norte-americana do escritor Scott Fitzgerald ou do bourbon Jack Daniels. Não gosto nem de um nem de outro, mas tenho de respeitá-los (e, ainda por cima, acho que foi mais importante o Jack Daniels). Também considero que a própria garrafa é mais significativa e rica, como ícone dos EUA, do que qualquer das pinturas de Larry Rivers ou de Robert Motherwell.
É tudo muito mais difícil do que se pensa. Seria bom, seria, um mundo arrumadinho e subdividido como existe no cérebro dos jornalistas bons e bem-intencionados como é o caso do Miguel Sousa Tavares. É por haver regras do que se pode e não pode dizer que é mais fácil falar. Reduzem-no à insignificância da nossa medida. Se não posso mencinar bebidas alcoólicas ou recomendar medicamentos que só podem ser vendidos com receita médica, por não ser deontológico (quanto mais mencionar as duas ao mesmo tempo), já não preciso de pensar se devo ou não correr o risco de dizer que misturar um Lexotan de 3 miligramas com um gin-tónico Bombay Sapphire com Schweppes provoca uma grande sensação de bem-estar.
Esta frase é totalmente irresponsável. Sei lá se há algum maluco que me está a ler e que decide experimentar e depois acaba no hospital. Mas é verdade. Se torno pública esta informação perigosa e irresponsável é porque já a transmiti a todas as pessoas que conheço e julgo sinceramente que é útil. Vindo de quem vem, vale o que vale: quase nada. Desde que os leitores tenham a inteligência de me reduzir à minha insignificância, porque é que não hei-de dizer aquilo que penso? Os comentadores públicos que se coíbem e censuram, que medem as palavras, que meditam nas consequências do que dizem, que têm a pretensão de serem pedagógicos faltam à verdade e faltam-nos ao respeito.»
Miguel Esteves Cardoso, “O Arco da Velha: A Resposta”. In: revista K, n.º 10, Julho de 1991, pp. 97-99.

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente texto! Adorei e coloquei um link no meu blogue.

Anónimo disse...

ainda hoje é lamentável a ausência de Tullamore Dew nas prateleiras dos nossos principais supermercados...
olhando para o texto, fico a pensar até que ponto os gostos do MEC influenciaram os meus...

Anónimo disse...

CJ,
Observação pertinente. Eu tb. não sei até que ponto me influenciou.
Quanto ao Tullamore Dew não posso falar, sou whiskyófobo (a sério!). Já, por outro lado, lamento que não haja em Portugal marcas de Vodka como a holandesa Ketel One ou a russa Cristall.

Anónimo disse...

Obrigado, Maria Clara.