domingo, 28 de setembro de 2008

Epílogo de uma morte anunciada

No final da Primavera deste ano ficámos a saber que Paul Leonard Newman padecia de um tipo fulminante de cancro de pulmão – a fina ironia para quem testou a resistência da própria vida ao limite no asfalto das pistas de velocidade.
Anunciaram-no, já o sabíamos. Afastado dos palcos por vontade própria desde 2007, a sua vida estava pendurada pela expectativa de semanas ou pouco meses. Morreu na passada sexta-feira, tinha 83 anos.

Em 1987, primou ostensivamente pela ausência no Dorothy Chandler Pavilion, onde lhe seria atribuído o único Óscar não honorário: Melhor Actor em A Cor do Dinheiro (The Color of Money, 1986) de Martin Scorsese. [No mesmo ano, outros vencedores, como Woody Allen, que à mesma hora tocava clarinete em Nova Iorque (Melhor Argumento Original por Ana e as Suas Irmãs), Michael Caine (Melhor Actor Secundário por Ana e as Suas Irmãs) e Ruth Prawer Jhabvala (Melhor Argumento Adaptado por Quarto com Vista sobre a Cidade, baseado num romance de E.M. Forster e realizado pelo seu eterno parceiro cinematográfico James Ivory, parceria que sempre incluiu o já falecido produtor indiano Ismail Merchant), decidiram não comparecer à apetecível noite de entrega das famosas estatuetas douradas da Academia das Artes e das Ciências Cinematográficas de Hollywood. O Óscar de Newman foi curiosamente recebido, em seu nome, por Robert Wise.]

«Rocky: Sabes, tenho tido sorte. Alguém lá em cima gosta de mim [NT: título do filme, se traduzido à letra para português].
Norma: Alguém cá em baixo também.
»
Diálogo entre Rocky Graziano, interpretado por Paul Newman, e a sua mulher Norma, papel interpretado pela actriz italiana Pier Angeli, no fabuloso filme Marcado pelo ódio (Somebody Up There Likes Me, 1956) do mestre Robert Wise, baseado na autobiografia do pugilista Rocky Graziano [tradução: AMC].

Paul Newman


Paul Newman

(Shaker Heights, Ohio, 26/Janeiro/1925 – Westport, Connecticut, 26/Setembro/2008)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Selvajarias

Foram quinhentas e seis páginas tragadas numa semana cheia de intermitências e de deslocações de última hora. Páginas que me trouxeram um prazer obnubilado por uma forte irritação – talvez potenciada pela azáfama extraordinária e consequentes interrupções de leitura – que resultou da sofrível tradução portuguesa do romance de 1998 Os Detectives Selvagens do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).
Nas capa e contracapa da edição da Teorema estão inscritas sete frases bombásticas retiradas de críticas e de artigos de opinião de gente culta, e uma extra como súmula das anteriores de autoria do editor, a ver pelos qualificativos que as enxameiam, seja pela obra, pelo autor e o seu estilo: «deslumbrante»; «influente e admirado»; «original, divertido e comovedor»; «Um dos cinco melhores»; «visão brutal e lírica»; «raro e fértil»; «Poderoso e desconcertante…»; «raro e sofisticado»; «o […] mais brilhante»; «lenda literária»; e, por fim, «O primeiro grande romance latino-americano do século XXI», embora tenha sido publicado originalmente no século XX e escrito até 1998 – nem mesmo os maus matemáticos que festejaram a passagem do milénio no fim da noite de 31 de Dezembro de 1999 cairiam nesse erro, embora se perceba que, nas entrelinhas, se pretenda falar dos efeitos do romance a posteriori, na geração coetânea e nas subsequentes.
Quinhentas e seis páginas, divididas por três partes, sendo as primeira e terceira ligadas pelo curto fio temporal entre Novembro de 1975 e Fevereiro de 1976, sob a forma narrativa de um diário mantido pelo jovem personagem Juan García Madero; e a segunda uma sucessão de testemunhos de um conjunto substancial de pessoas espalhadas pelo mundo que de certa forma se relacionaram durante os vintes anos que se seguem, de 1976 a 1996, com os personagens Arturo Belano – chileno, tal como o autor e com nome e apelido que se assemelham – e Ulisses Lima – mexicano, inspirado no seu companheiro infra-realista Mario Santiago –, poetas revivificadores do movimento literário apelidado de realismo visceral, ficcionalmente criado nos anos 20 do século passado pela poetisa Cesárea Tinajero, cujo desaparecimento sem obra publicada durante a década de 30 serve de leitmotiv a toda a acção do par instável de detectives selvagens.

Não me irei alongar muito sobre a valia literária deste romance de Bolaño, sob o risco de repetir alguns dos (merecidos) encómios hiperbólicos que fui lendo em recensões lusas recentes, e tão-pouco sobre as suas vida e obra que, por ora, pouco conheço para além da novela Estrela Distante (Estrella distante, 1996), também por cá editada pela Teorema, e das suas deambulações políticas trotskistas, e o colossal 2666 (obra póstuma) que li em castelhano na sua versão original.
Os Detectives Selvagens é uma obra de um impressionante fôlego literário. É séria e comovente como um todo, porém desafectada e flexível nos seus recursos, airosa e hilariante nos inúmeros episódios meticulosamente perfilados para servirem de válvula de escape. É, no seu fundo, uma obra melancólica, com laivos de um isolamento e de uma perambulação no espaço eminentemente saturninos, cujos naturais abalos emocionais são magistralmente geridos por Bolaño através do riso, da paródia a uma classe que se serve da literatura, concretamente da poesia, como meio de luta pela sobrevivência no caótico mosaico político, económico e social da América Latina da segunda metade do século XX, ou então, no caso de outros, à laia de contraponto, usando-a como meio de exteriorização de um narcisismo latente – recordo-me, por exemplo, do fabuloso episódio relatado pelo ufano advogado galego, residente em Barcelona, que escreve a partir do leito de morte em Roma em Outubro de 1992 (parte II, capítulo 20 – Xosé Lendoiro) rememorando os diversos encontros infelizes com o chileno Arturo Belano por terras de Espanha; ou da triste sina do escritor homossexual integrado no ubíquo movimento do realismo visceral, que devido a um aneurisma é sujeito a uma intervenção cirúrgica ao cérebro que lhe retira grande parte das capacidades físicas e intelectuais, onde os pais, passando por cima de tudo, exultam o resultado final (de quase vegetal) uma vez que lhe curaram o desvio sexual; as lúcidas divagações do inimputável Joaquim Font, (as mais lúcidas), internado, por ordem da mulher, num manicómio situado nos arredores da Cidade do México; o duelo preventivo (ao sabre) entre Arturo e o crítico literário de Barcelona; o prodigioso capítulo 23 (desde a Feira do Livro de Madrid) e as diversas perspectivas sobre a literatura, ou a vida. E poderia continuar…

Mas, como se sói dizer por cá – acabando agora mesmo de emprestar ao texto um tom eminentemente castelhano, através do emprego do usadíssimo verbo soer (em Cast. soler, do Lat. solere) em espanhol corrente –, não há bela sem senão. Se, através das minhas palavras, não existem dúvidas sobre o brilhantismo deste texto literário de Bolaño, a tradução para português acaba por danificar a obra original e irritar o leitor mais atento e familiarizado com a língua de Cervantes – que é precisamente o meu caso. Não falo das inúmeras gralhas que se multiplicam ao longo das quinhentas páginas e que resultam, decerto, de erros tipográficos e de uma pós-revisão deficiente. Falo, isso sim, do tom usado ao longo de toda a narrativa que parece haver sido traduzida por Luís Figo nos períodos áureos entre treinos e jogos de futebol quando tinha de soltar a língua. A utilização excessiva do “pois”, em particular do “pois que”, ao longo do texto, em toda e qualquer frase, é uma tradução literal do texto original que usa o estribilho a partir do vernáculo castelhano, que não se costuma usar na língua portuguesa: (apenas dois exemplos entre dezenas) «Se havia outras editoriais interessadas, pois que a publicassem eles, eu não» (pág. 174) «Porque eu sou real visceralista, disse eu, e, se esse cabrão não mete Ulisses, pois que também não conte comigo.» (pág. 230) No primeiro exemplo, para além do uso do referido estribilho castelhano, há que acrescentar o uso da expressão “editoriais” como tradução de “editoriales”, que neste caso pretende significar a empresa que edita, comummente designadas por “editora”, embora “editoriais” se refira ao mesmo, não é, porém, de uso corrente em português europeu.
Depois há a repetidíssima utilização da expressão “chino” para designar “chinês” – «Depois saímos todos para jantar num café chino.» (pág. 25), «Pancho e eu encontrámo-nos no café chino El Loto» (pág. 32) –, embora “chino” seja sinónimo de “chinês”, não se usa em português com excepção de “rato-chino”, uma vez mais resulta da tradução literal do espanhol “chino” que significa “chinês” na nossa língua. Este caso não é único, existem outras traduções literais como por exemplo «Quando cheguei levantou a cabeça, era o único usuário da biblioteca» (pág. 489)
Por fim, o critério de tradução de nomes próprios. Começando pelos protagonistas “Ulisses Lima” e “Arturo Belano”, o primeiro sofreu um aportuguesamento de “Ulises” no original (ficou com mais um “s”), e o segundo manteve o “Arturo” que em português é “Artur”. Assim, como “María Font” perdeu o acento agudo no “i”, uma vez que (pues que) a divisão silábica de “Maria” é diferente nas duas línguas: em português, “Maria” é uma palavra grave (Ma-ri-a); em castelhano, é uma palavra aguda devido à divisão silábica em castelhano (Ma-ria); opção que não é consistente com “Luis Rosado” onde se manteve a versão castelhana do nome em detrimento da portuguesa “Luís Rosado” ou com “García Madero” (o terceiro protagonista) em vez de “Garcia Madero”. Já “Joaquim Font” tanto é assim grafado (por exemplo, na página 151), como surge com o nome próprio em castelhano “Joaquín Font” (pág. 252).
Como é certo e sabido, uma má tradução poderá arruinar uma obra. No caso em questão não creio que tenha havido um dano insanável, ou seja, mesmo perante os erros consegue-se vislumbrar a genialidade da obra. Isso não invalida que refira que, através da minha experiência de leitura, houve uma irritação que se adensou à medida que me ia embrenhando no livro, prejudicando, de forma irremediável a avaliação final. À editora pede-se que proceda a uma urgente e aturada revisão do texto traduzido para a 2.ª edição, se a houver, caso contrário acredito que obra permanecerá na sua versão portuguesa, até nova tradução, ferida no seu brilho artístico.


«O que há atrás da Janela?
[figura 1]
Uma estrela.
[…]
O que há atrás da Janela?
[figura 2]
Um lençol estendido. (…)» (pág. 506)

Pues que eclipsou-se uma estrela:

Classificação: **** (Bom)

Tudo o que começa como comédia acaba como ode ao ansiolítico.
[A despeito, neste caso, das outras proposições prismáticas, (…) como tragédia (pág. 403); como tragicomédia (pág. 404); como comédia (pág. 404); como exercício criptográfico (pág. 405); como filme de terror (pág. 408); como marcha triunfal (pág. 409); como mistério (pág. 411); como responso no vazio (pág. 413); como monólogo cómico, mas já não nos rimos (pág. 416).]


Referência bibliográfica:
Roberto Bolaño
, Os Detectives Selvagens. Lisboa: Teorema, Junho de 2008, 512 pp. (tradução de Miranda das Neves; obra original: Los detectives salvajes, 1998).

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Harry “Coelho” Angstrom, de novo

A editora portuense Civilização acaba de lançar no mercado o 3.º livro da tetralogia (+ ½) do Coelho de autoria do escritor norte-americano John Updike (n. 1932): Coelho Enriquece (Rabbit is Rich, 1981).
Recorda-se aqui que já foram publicados em Portugal pela mesma editora as primeira e segunda partes da vida do americano arquetípico Harry “Coelho” Angstrom: Corre, Coelho (Rabbit, Run; 1960) em Fevereiro de 2007 e Regressa, Coelho (Rabbit Redux, 1971) em Março deste ano. Ainda por publicar estão o 4.º livro Rabbit at Rest de 1990 e a novela de 2001, integrada na colectânea de contos do autor Licks of Love, Rabbit Remembered.

Este livro venceu três dos mais importantes prémios literários atribuídos a uma obra de ficção publicada originalmente nos Estados Unidos da América:

  • National Book Critics Circle Award for Fiction em 1981;
  • Pulitzer Prizer for Fiction em 1982;
  • National Book Award for Fiction (Hardcover) em 1982.

«“A gasolina está a acabar-se”, pensa Coelho Angstrom […] Este mundo de merda está a ficar sem gasolina. […] A gasolina a noventa e nove ponto nove cêntimos o galão e noventa por cento das estações de serviço a fecharem ao fim-de-semana. […] os camionistas que não conseguem gasóleo disparam contra os próprios camiões […] As pessoas estão a perder a cabeça, os seus dólares não valem um cêntimo, retraem-se como se não houvesse amanhã.»
John Updike, Coelho Enriquece, pág. 7
[Porto: Civilização, Setembro de 2008, 498 pp. (tradução de Carmo Romão)]


A acção desenrola-se em pleno 2.º Choque Petrolífero que ocorreu em 1979. A actualidade da citação é mais do que angustiante. A América e o mundo ocidental ou ocidentalizado tardam em aprender com os erros passados. Porém, é óbvio que esta aprendizagem foi plenamente assumida, o que a torna, hoje em dia, num perigoso sofisma à disposição de políticos sem escrúpulos e de outros sem coragem para denunciar a acções concertadas e criminosas daqueles com os grandes interesses do petróleo, disseminados pelos opacos mercados de capitais (desregulamentados) que vomitam anonimamente gigantescas mais-valias nas operações financeiras sem o devido suporte de operações reais ou económicas. A avidez pelo capital destrói a essência do capitalismo, deixando o cidadão desprotegido e sem forças para lutar perante a ressuscitação das teorias económicas que comprovadamente conduziram à coarctação das liberdades política, económica, social, artística, etc.

terça-feira, 23 de setembro de 2008

Espírito das Alternativas

«– Mas eu queria dizer – sou um homem em pedaços, mutilado.
– Facilmente exasperado.
– Sabes bem como é. Sou oprimido, empurrado, atormentado, maçado, importunado, incomodado…
– Por quê? Pela consciência?
– Bom, por uma espécie de consciência. Não lhe tenho o respeito que tenho à minha consciência. É a parte pública de mim próprio. Vai até lá muito dentro. É o mundo interiorizado, em resumo é isso.
»
Saul Bellow, Na Corda Bamba, pág.166
[Lisboa: Círculo de Leitores, 1.ª edição, Junho de 1977, 193 pp. (tradução de Maria Adélia Silva Melo; obra original: Dangling Man, 1944]

Talvez seja da acalmia que se produz com aquele período a que se convencionou chamar “férias” – e talvez seja esse o único qualificativo capaz de traduzir o artifício, humanamente engenhoso… ou demasiadamente humano, basta, da tal suspensão de responsabilidades profissionais.
Não me convence. Nem nunca me convenceu, porque nunca o senti como um período de verdadeiro descanso. Não estou suficientemente longe de mim para apaziguar um espírito que se mortifica pela sua impiedosa imagem pública. Não preciso de férias. Necessito apenas que a liberdade que fui construindo para o meu eu me deixe, pelo menos, desfrutar da sensação de imponderabilidade, de anarquia – e que bem se emparelha este último com o termo “servidão”.
O isolamento, como ensaia DeLillo através da alusão de Bernhard a Glenn Gould (vide epígrafe deste blogue), cria instantaneamente essa ilusão de liberdade; efémera, desfaz-se como uma traça em pó depois de sovada, que, de forma cega e obstinada, vai dilacerando a nossa roupagem.
Assalta-me o terrível dilema bellowniano da liberdade individual frente às exigências do contrato social. Sou senhor de mim e sinto-me pouco grato por isso.

Reflectindo sobre os méritos alcançados (autodeterminação) pela minha forma de vida.
[contraponto]

«Hurray for regular hours!
And for the supervision of the spirit!
Long live regimentation!
»
Saul Bellow, Dangling Man
(New York: Penguin Books, October, 1996, p. 183)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Choque

Um pequeno contratempo fez com que regressasse de férias uns dias mais cedo, apesar de ter prontamente estabelecido que a estocada final, nessa sempre efémera palavra, só irá ser dada no domingo à noite por terras durienses.
Quase um mês fora, e a tralha que trouxe ainda se espalha pelos corredores e quartos à espera da habitual triagem: para guardar, lavar, arrumar até para o ano, etc.
Ontem, chegámos tarde e o ritmo ainda é lento, como se actuasse uma força estranha que, de forma perseverante, nos vai impedindo a cessação da boa preguiça adquirida durante esse mês.
Duas da manhã, a casa ficou finalmente em silêncio. Abri o Público, ainda inviolado, que havia comprado à hora do almoço julgando que ainda me esperavam cinco dias pela frente – no Verão, a regra de não dar um cêntimo por jornais costuma ser langorosamente derrogada.
Página 9 do caderno P2. Choque: morreu David Foster Wallace. Obituário de Alexandra Prado Coelho. As presumíveis circunstâncias da sua morte só serviram para acirrar a minha inquietação. O homem tinha tudo para se tornar no grande sucessor dos grandes ficcionistas americanos da segunda metade do século XX… O sucessor de Pynchon, diziam. Dois romances, entre eles o descomunal Infinite Jest de 1996 – o seu segundo e último –, diversos contos, ensaios e peças jornalísticas publicados em diversas colectâneas.
Em Portugal permanece quase desconhecido. Que eu saiba apenas tem um conto traduzido: “Encarnação de uma geração queimada”, na colectânea de jovens contistas americanos Geração Queimada da América, editada pela Bico de Pena e organizada pela realista histérica (qualificativo glosado através de Wood) Zadie Smith. Tal como tive oportunidade de referir na altura, é o melhor conto da desequilibrada antologia.
O desespero…


David Foster Wallace


David Foster Wallace

(Ithaca, Nova Iorque, 21 de Fevereiro de 1962 – Claremont, Califórnia, 12 de Setembro de 2008)

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Literatura desesperada

(Contando, amargamente, os curtos dias para o fim da serenidade e tranquilidade do exílio estival.)

Pobre Joaquim (Quim) Font, durante a sua estadia forçada na Clínica de Saúde Mental El Reposo, em Janeiro de 1977, (talvez seguro da sua lucidez) escreveu:

«Agora tomemos o leitor desesperado, aquele a quem presumivelmente é dirigida a literatura dos desesperados. O que é que vêem? Primeiro: trata-se de um leitor adolescente ou de um adulto imaturo, acobardado, com os nervos à flor da pele. É o típico parvajola (perdoem-me a expressão) que se suicidava depois de ler Werther. Segundo: é um leitor limitado. Porquê limitado? Elementar, porque não consegue ler senão literatura desesperada ou para desesperados, tanto importa, um tipo ou um estafermo incapaz de ler duma assentada Em Busca do Tempo Perdido ou A Montanha Mágica (em minha modesta opinião um paradigma da literatura tranquila, serena, total), ou, se quisermos, Os Miseráveis ou Guerra e Paz. Acho que falei claro, não? Bem, falei claro. [...] E também: os leitores desesperados são como as minas de ouro da Califórnia. Mais cedo ou mais tarde, esgotam-se! Porquê? É bem evidente! Não se pode viver desesperado toda uma vida, o corpo acaba por dar de si, a dor acaba por se tornar insuportável, a lucidez escapa-se em grandes jorros frios. O leitor desesperado (ainda mais o leitor de poesia desesperado, esse é insuportável, acreditem-me) acaba por se antagonizar com os livros, acaba inelutavelmente por se transformar num desesperado sem apelo nem agravo. Ou cura-se! E então, como parte do seu processo de regeneração, volta lentamente, como que entre algodões, como que sob uma chuva de comprimidos tranquilizantes fundidos, volta, como ia dizendo, a uma literatura escrita para leitores serenos, repousados, com a mente bem centrada. A isto se chama (e, se ninguém lhe chama assim, eu chamo-lhe assim) a passagem da adolescência à idade adulta. E com isto não quero dizer que quando nos convertemos num leitor tranquilo se deixe de ler livros para desesperados. Claro que se lê! [sic] Sobretudo se são bons, ou passáveis, ou se um amigo os recomendou. Mas, no fundo, chateiam-no! No fundo, essa literatura amarga, cheia de armas brancas e de Messias enforcados, não consegue penetrá-lo até ao coração como, por outro lado, o consegue uma página serena, uma página meditada, uma página tecnicamente perfeita!»
Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens, pp. 169-170.
(Lisboa: Teorema, Junho de 2008, 512 pp; tradução de Miranda das Neves; obra original: Los detectives salvajes, 1998).

sábado, 13 de setembro de 2008

Sult, Knut Hamsun

Mesmo nos confins deste país desequilibrado (por exemplo, hoje a TSF no noticiário das 15 horas... perdão, das 14:58 emitiu durante 11 minutos ininterruptos as várias facetas do carricídio perpetrado, em plena luz do dia, por duas árvores centenárias, que se saldou na vil destruição de meia dúzia de inocentes automóveis, inundando-nos com entrevistas a vizinhos, um vereador, proprietários registados das vítimas, uma meteorologista com um nome inconcebível e outras testemunhas ocasionais e assaz comovidas... só faltaram os astrólogos e, claro, ninguém auscultou as vetustas árvores, porventura discriminadas por se tratar de mera flora...) continuo atento ao mercado editorial português. A Cavalo de Ferro reedita o magnum opus do escritor norueguês, Nobel da Literatura em 1920, Knut Hamsun (1859-1952), publicado originalmente em 1890, Sult (a.k.a. Hunger em inglês) – Fome.

Apesar das suas desprezíveis simpatias hitlerianas, exaltando as qualidades de liderança de um dos maiores monstros da História do século XX, são inegáveis as suas qualidades literárias confirmadas com este romance dilacerante, escrito quando o pai do nazismo ainda não havia largado as fraldas, e, curiosamente, quarenta anos antes de o maior monstro do século passado (Koba, ou Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, mais conhecido por Estaline*, o homem de aço) usar a FOME de dezenas de milhões como a principal arma de propagação do Grande Terror, que o camarada Lenine não teve tempo (e conceda-se, nem coragem) para acabar através do seu Terror Vermelho.

Ei-lo, com introdução de um dos escritores contemporâneos que sempre se confessou um dos maiores admiradores do laureado escritor norueguês, influenciando, de forma explícita, a sua já extensa obra, Paul Auster (n. 1947):


*Nota: texto escrito usando o tipo de letra Georgia.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Áries

Rui PereiraPoderia ser o título de um novo romance de Don DeLillo – uma sequela do aclamado Libra de 1988, uma narrativa semificcional sobre o assassinato de John Fitzgerald Kennedy, a 22 de Novembro de 1963, enquanto desfilava no seu Lincoln descapotável na Elm Street em Dallas, reconstruindo a figura de Lee Harvey Oswald (de signo Balança) e uma teia de conspirações de ex-agentes da CIA e de exilados cubanos, que o usaram como instrumento, em busca de uma desforra da calamitosa invasão da Baía dos Porcos.
Oswald depois de haver sido detido no próprio dia do assassinato, viria, dois dias depois, a ser alvejado mortalmente no abdómen por Jack Ruby, um conhecido dono de um clube de striptease de Dallas e com ligações à máfia, com relações privilegiadas com a polícia local, na garagem da esquadra de polícia, onde o primeiro se preparava para ser transferido para a prisão mais próxima.
Áries, ou Carneiro como é usado na nossa língua, regula astrologicamente a vida e a cabeça de um homem, chamado Rui Carlos Pereira – a importância dos três nomes… –, que por coincidência ou teoria conspirativa é o Ministro da Administração Interna da país da impunidade: Portugal – a propósito, e como recordar é viver, José António Cerejo escrevia este artigo no Público a 17 de Abril de 1999, onde, entre outros, surge por casamento e pelas (múltiplas) funções exercidas o nosso inefável homem dos aventais, na altura director do SIS que investigava a Universidade Moderna (todavia, não consta do seu breve currículo disponível na página oficial do Governo o exercício das funções de docência neste estabelecimento de ensino).
Ontem, o nosso ministro comparou o caso do homem baleado em plena esquadra de Portimão, ao assassinato de Oswald por Ruby, depois de o primeiro haver assassinado J.F. Kennedy, apenas e somente o 35.º Presidente dos E.U.A. Para além de haver revelado algumas debilidades indesculpáveis no conhecimento de factos históricos ocorridos há quase 45 anos, este homem depois de mais um dos inúmeros disparates verbais na tentativa de explicar o inexplicável, continua à frente de um dos ministérios chave para a necessária tranquilização da sentidamente insegura população portuguesa.

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Finalistas do Booker Prize de 2008 (anunciados ontem)

  • Amitav Ghosh – Sea of Poppies;
  • Aravind Adiga – The White Tiger;
  • Linda Grant – The Clothes on Their Backs;
  • Philip Hensher – The Northern Clemency;
  • Sebastian Barry – The Secret Scripture;
  • Steve Toltz – A Fraction of the Whole.

Com a excepção de Sebastian Barry (finalista em 2005), todos os outros são estreantes na lista dos finalistas do galardão máximo a premiar uma obra em língua inglesa, originalmente publicada no Reino Unido, nos países da Commonwealth ou na Irlanda
Sinal dos tempos na literatura anglo-saxónica? Os novos romances dos autores consagrados John Berger e Salman Rushdie ficaram-se pela lista dos semifinalistas.
O vencedor será anunciado depois do habitual jantar no Guildhall em Londres no próximo dia 14 de Outubro.

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Nota importante: prossegue o interlúdio retemperador neste blogue. O autor continua com as suas férias até ao dia 22 de Setembro, altura em que se serão respondidos os e-mails e os comentários deixados nas respectivas caixas em anexo aos textos publicados.