Foram quinhentas e seis páginas tragadas numa semana cheia de intermitências e de deslocações de última hora. Páginas que me trouxeram um prazer obnubilado por uma forte irritação – talvez potenciada pela azáfama extraordinária e consequentes interrupções de leitura – que resultou da sofrível tradução portuguesa do romance de 1998 Os Detectives Selvagens do escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003).
Nas capa e contracapa da edição da Teorema estão inscritas sete frases bombásticas retiradas de críticas e de artigos de opinião de gente culta, e uma extra como súmula das anteriores de autoria do editor, a ver pelos qualificativos que as enxameiam, seja pela obra, pelo autor e o seu estilo: «deslumbrante»; «influente e admirado»; «original, divertido e comovedor»; «Um dos cinco melhores»; «visão brutal e lírica»; «raro e fértil»; «Poderoso e desconcertante…»; «raro e sofisticado»; «o […] mais brilhante»; «lenda literária»; e, por fim, «O primeiro grande romance latino-americano do século XXI», embora tenha sido publicado originalmente no século XX e escrito até 1998 – nem mesmo os maus matemáticos que festejaram a passagem do milénio no fim da noite de 31 de Dezembro de 1999 cairiam nesse erro, embora se perceba que, nas entrelinhas, se pretenda falar dos efeitos do romance a posteriori, na geração coetânea e nas subsequentes.
Quinhentas e seis páginas, divididas por três partes, sendo as primeira e terceira ligadas pelo curto fio temporal entre Novembro de 1975 e Fevereiro de 1976, sob a forma narrativa de um diário mantido pelo jovem personagem Juan García Madero; e a segunda uma sucessão de testemunhos de um conjunto substancial de pessoas espalhadas pelo mundo que de certa forma se relacionaram durante os vintes anos que se seguem, de 1976 a 1996, com os personagens Arturo Belano – chileno, tal como o autor e com nome e apelido que se assemelham – e Ulisses Lima – mexicano, inspirado no seu companheiro infra-realista Mario Santiago –, poetas revivificadores do movimento literário apelidado de realismo visceral, ficcionalmente criado nos anos 20 do século passado pela poetisa Cesárea Tinajero, cujo desaparecimento sem obra publicada durante a década de 30 serve de leitmotiv a toda a acção do par instável de detectives selvagens.
Não me irei alongar muito sobre a valia literária deste romance de Bolaño, sob o risco de repetir alguns dos (merecidos) encómios hiperbólicos que fui lendo em recensões lusas recentes, e tão-pouco sobre as suas vida e obra que, por ora, pouco conheço para além da novela Estrela Distante (Estrella distante, 1996), também por cá editada pela Teorema, e das suas deambulações políticas trotskistas, e o colossal 2666 (obra póstuma) que li em castelhano na sua versão original. Os Detectives Selvagens é uma obra de um impressionante fôlego literário. É séria e comovente como um todo, porém desafectada e flexível nos seus recursos, airosa e hilariante nos inúmeros episódios meticulosamente perfilados para servirem de válvula de escape. É, no seu fundo, uma obra melancólica, com laivos de um isolamento e de uma perambulação no espaço eminentemente saturninos, cujos naturais abalos emocionais são magistralmente geridos por Bolaño através do riso, da paródia a uma classe que se serve da literatura, concretamente da poesia, como meio de luta pela sobrevivência no caótico mosaico político, económico e social da América Latina da segunda metade do século XX, ou então, no caso de outros, à laia de contraponto, usando-a como meio de exteriorização de um narcisismo latente – recordo-me, por exemplo, do fabuloso episódio relatado pelo ufano advogado galego, residente em Barcelona, que escreve a partir do leito de morte em Roma em Outubro de 1992 (parte II, capítulo 20 – Xosé Lendoiro) rememorando os diversos encontros infelizes com o chileno Arturo Belano por terras de Espanha; ou da triste sina do escritor homossexual integrado no ubíquo movimento do realismo visceral, que devido a um aneurisma é sujeito a uma intervenção cirúrgica ao cérebro que lhe retira grande parte das capacidades físicas e intelectuais, onde os pais, passando por cima de tudo, exultam o resultado final (de quase vegetal) uma vez que lhe curaram o desvio sexual; as lúcidas divagações do inimputável Joaquim Font, (as mais lúcidas), internado, por ordem da mulher, num manicómio situado nos arredores da Cidade do México; o duelo preventivo (ao sabre) entre Arturo e o crítico literário de Barcelona; o prodigioso capítulo 23 (desde a Feira do Livro de Madrid) e as diversas perspectivas sobre a literatura, ou a vida. E poderia continuar…
Mas, como se sói dizer por cá – acabando agora mesmo de emprestar ao texto um tom eminentemente castelhano, através do emprego do usadíssimo verbo soer (em Cast. soler, do Lat. solere) em espanhol corrente –, não há bela sem senão. Se, através das minhas palavras, não existem dúvidas sobre o brilhantismo deste texto literário de Bolaño, a tradução para português acaba por danificar a obra original e irritar o leitor mais atento e familiarizado com a língua de Cervantes – que é precisamente o meu caso. Não falo das inúmeras gralhas que se multiplicam ao longo das quinhentas páginas e que resultam, decerto, de erros tipográficos e de uma pós-revisão deficiente. Falo, isso sim, do tom usado ao longo de toda a narrativa que parece haver sido traduzida por Luís Figo nos períodos áureos entre treinos e jogos de futebol quando tinha de soltar a língua. A utilização excessiva do “pois”, em particular do “pois que”, ao longo do texto, em toda e qualquer frase, é uma tradução literal do texto original que usa o estribilho a partir do vernáculo castelhano, que não se costuma usar na língua portuguesa: (apenas dois exemplos entre dezenas) «Se havia outras editoriais interessadas, pois que a publicassem eles, eu não» (pág. 174) «Porque eu sou real visceralista, disse eu, e, se esse cabrão não mete Ulisses, pois que também não conte comigo.» (pág. 230) No primeiro exemplo, para além do uso do referido estribilho castelhano, há que acrescentar o uso da expressão “editoriais” como tradução de “editoriales”, que neste caso pretende significar a empresa que edita, comummente designadas por “editora”, embora “editoriais” se refira ao mesmo, não é, porém, de uso corrente em português europeu.
Depois há a repetidíssima utilização da expressão “chino” para designar “chinês” – «Depois saímos todos para jantar num café chino.» (pág. 25), «Pancho e eu encontrámo-nos no café chino El Loto» (pág. 32) –, embora “chino” seja sinónimo de “chinês”, não se usa em português com excepção de “rato-chino”, uma vez mais resulta da tradução literal do espanhol “chino” que significa “chinês” na nossa língua. Este caso não é único, existem outras traduções literais como por exemplo «Quando cheguei levantou a cabeça, era o único usuário da biblioteca» (pág. 489)
Por fim, o critério de tradução de nomes próprios. Começando pelos protagonistas “Ulisses Lima” e “Arturo Belano”, o primeiro sofreu um aportuguesamento de “Ulises” no original (ficou com mais um “s”), e o segundo manteve o “Arturo” que em português é “Artur”. Assim, como “María Font” perdeu o acento agudo no “i”, uma vez que (pues que) a divisão silábica de “Maria” é diferente nas duas línguas: em português, “Maria” é uma palavra grave (Ma-ri-a); em castelhano, é uma palavra aguda devido à divisão silábica em castelhano (Ma-ria); opção que não é consistente com “Luis Rosado” onde se manteve a versão castelhana do nome em detrimento da portuguesa “Luís Rosado” ou com “García Madero” (o terceiro protagonista) em vez de “Garcia Madero”. Já “Joaquim Font” tanto é assim grafado (por exemplo, na página 151), como surge com o nome próprio em castelhano “Joaquín Font” (pág. 252).
Como é certo e sabido, uma má tradução poderá arruinar uma obra. No caso em questão não creio que tenha havido um dano insanável, ou seja, mesmo perante os erros consegue-se vislumbrar a genialidade da obra. Isso não invalida que refira que, através da minha experiência de leitura, houve uma irritação que se adensou à medida que me ia embrenhando no livro, prejudicando, de forma irremediável a avaliação final. À editora pede-se que proceda a uma urgente e aturada revisão do texto traduzido para a 2.ª edição, se a houver, caso contrário acredito que obra permanecerá na sua versão portuguesa, até nova tradução, ferida no seu brilho artístico.
«O que há atrás da Janela?
[figura 1]
Uma estrela.
[…]
O que há atrás da Janela?
[figura 2]
Um lençol estendido. (…)» (pág. 506)
Pues que eclipsou-se uma estrela:
Classificação: **** (Bom)
Tudo o que começa como comédia acaba como ode ao ansiolítico.
[A despeito, neste caso, das outras proposições prismáticas, (…) como tragédia (pág. 403); como tragicomédia (pág. 404); como comédia (pág. 404); como exercício criptográfico (pág. 405); como filme de terror (pág. 408); como marcha triunfal (pág. 409); como mistério (pág. 411); como responso no vazio (pág. 413); como monólogo cómico, mas já não nos rimos (pág. 416).]
Referência bibliográfica:
Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens. Lisboa: Teorema, Junho de 2008, 512 pp. (tradução de Miranda das Neves; obra original: Los detectives salvajes, 1998).