terça-feira, 13 de outubro de 2009

Invisível

É já no próximo dia 27 que a Asa publicará em estreia mundial, numa operação inédita em Portugal com uma obra do autor em causa, a tradução para a nossa língua do último romance de Paul Auster, Invisível (Invisible, no seu título original), com tradução garantida, e por mim aplaudida, porquanto é sinónimo de qualidade, por José Vieira de Lima.

Na abertura temos Auster e a alusão a uma das suas obras de eleição da sua juventude: a referência alegórica ao oitavo círculo do Inferno de Dante que se divide em dez fossos (Malebolge ou bolsas circulares), em concreto ao nono fosso, dedicado aos “semeadores de escândalo e de cisma”.
O primeiro parágrafo reza assim (tradução minha, que de hoje a quinze dias será distintamente derrogada pela do tradutor oficial):

«Apertei-lhe a mão pela primeira vez na Primavera de 1967. Eu era, então, estudante do segundo ano em Columbia, um rapaz ignorante com um tal apetite por livros e com a crença (ou ilusão) de que um dia seria suficientemente bom para me intitular como um poeta, e porque lia poesia, eu já conhecia o seu homónimo no Inferno de Dante, um homem morto vagueando pelos versos finais do vigésimo oitavo canto do Inferno. Bertrand de Born, o poeta da Provença do século XII, agarrando a sua cabeça decapitada pelos cabelos enquanto esta vai oscilando como uma lanterna – seguramente, uma das imagens mais grotescas naquele catálogo volumoso de alucinações e tormentos. Dante era um defensor acérrimo da obra de de Born, mas condenou-o à danação eterna por este ter aconselhado o príncipe Henrique a rebelar-se contra o seu pai, o rei Henrique II, e uma vez que de Born promoveu a divisão entre pai e filho, tornando-os inimigos, o engenhoso castigo de Dante foi o de dividir de Born dele mesmo. Daí o corpo decapitado lastimando-se no submundo, perguntando ao viajante florentino se algum sofrimento poderia ser mais terrível que este.»
Paul Auster, Invisible, pp. 3-4.
[a partir da edição, New York: Henry Holt, 1st edition, 2009, 320 pp; tradução: AMC, 2009]
Mas, para que não se perca a cabeça, eis Virgílio e Dante no seu encontro com martirizado, ao decepamento, Bertrand (ao lado, figura a famosa ilustração de Gustave Doré):

«Mas eu fiquei a olhar a fila e vou
contar o visto, e em pavor perdura,
sem ter mais prova, o descrevê-lo só;
senão que a consciência me assegura,
pois boa companhia nos proteja
sob a couraça de sentir-se pura.
Decerto vi, e creio inda que veja
um busto sem cabeça a andar assim
como da triste creche o resto adeja;
a fronte da guedelha pende ao fim
duma das mãos à guisa de lanterna
e olhando para nós diz: «Ai de mim!»
De si ia fazendo a si lucerna,
e eram dois num e um era nos dois:
como ser pode, o sabe quem governa.
Ao pé da ponte erguendo-se depois,
alto levanta o braço com a testa,
pondo as palavras perto de nós, pois
que foram: “Ora vê pena molesta,
tu que respiras e vais vendo os mortos:
vê se alguma é tão grande como esta.
E por que leves novas dos meus tortos
feitos, sabe que sou Bertrand de Born,
que ao rei jovem prestou os maus confortos.
Eu fiz que filho e pai revel se torne:
Aquitófel não faz mais, que Absalão
e o pai David com más punções adorne.
Pois separei pessoas que eram tão
juntas, oh dor!, o cérebro deslaço
de seu princípio que é neste troncão.
Assim se observa em mim o contrapasso.”»
Dante Alighieri, A Divina Comédia: Inferno, Canto XXVIII, vv. 112-142, pp. 257-259
[Venda Nova: Bertrand, 5.ª edição, Dezembro de 2000, 894 pp; tradução de Vasco Graça Moura; obra original: (Divina) Commedia, 1304-1321.]


Nota: Aproveitando a maré dantesca, há uma nota final inquietante num texto de Casanova brandindo o seu canhão literário (por vezes perde-se, na selva alegórica, um “n” ânglico para as coisas fazerem sentido) sempre pronto a disparar fazendo mira ao mais firme divergente – sem que, necessariamente, houvesse ocorrido um cisma... fundamento para corpo mutilado – com as suas alegações peremptórias em assuntos livrescos (porventura um imagem poética que ganha força pela hipérbole):


Pois parece que, de bom aviso, é necessário trazer de novo Dante à colação e o segundo vale (o da tal selva), descrito, por azar, no canto XIII, do sétimo círculo do Inferno, onde os corpos caídos são transformados em árvores espinhosas sem fruto, cravados em terra firme, desnudados perante a fúria rapace das harpias:

«Surge uma ervinha e planta brava resta:
e as Harpias lhe pastam toda a folha,
fazem-lhe dor e à dor dão uma fresta.
Iremos, como os mais, pela recolha
dos despojos, mas não para vesti-los;
que não é justo ter o que se tolha.
Na triste selva vamos destruí-los
e hão-de ficar-nos corpos pendurados,
co as más sombras, nas sarças a cobri-los.»
Dante Alighieri, op. cit., Canto XIII, vv. 100-108, p. 133.

Finalmente, o que diz o Papa – segundo a frase criptográfica de Dan Brown (“a knight a pope interred”):

«Some to conceit alone their taste confine,
And glittering thoughts struck out at every line;
Pleased with a work where nothing’s just or fit;
One glaring chaos and wild heap of wit. […]»
Alexander Pope, An Essay on Criticism (pub. 1711), vv. 289-292, p.15
[Charleston, SC: Forgotten Books, 2008, 37 pp.]