Como tudo se torna mais agradável quando se ouve falar de livros por pessoas que os conhecem e a eles dedicam a sua paixão, de forma independente aos impulsos normalizadores do mercado que busca na Literatura a reverberação da frugalidade e da leveza intelectual da vida quotidiana contemporânea.
João Rodrigues falou do eventual insucesso comercial do seu último lançamento: os Contos Completos de Truman Capote (1924-1984). Mas a edição desta obra, como a de outras largas centenas que ainda permanecem por publicar em Portugal, tem de ser feita para que, pelo menos, se consiga abalar esse tal impulso normalizador, cultor da mediocridade e do pensamento mínimo – e daí a tal necessidade de divulgação de um cânone literário, como num programa anterior referiu Francisco José Viegas. Falou-se da imperiosa necessidade de existir um projecto cultural inteligível materializado num catálogo coerente oferecido pelas pequenas editoras, sem isso corre-se o sério risco de se quebrar, de forma definitiva, o elo de confiança entre o leitor e o editor, sendo simultaneamente factor de diferenciação e de sobrevivência.
Chegamos, assim, a Truman Capote numa colectânea de vinte contos de qualidade manifesta, com apresentação de Reynolds Price. A antologia foi originalmente editada pela Random House em 2004 e inclui todos os contos de A árvore da noite e outras histórias (A Tree of Night and Other Stories, 1949; em Portugal editada conjuntamente com a novela A Harpa de Ervas pela Relógio D’Água, com tradução de Paulo Faria), para além de “Mojave” incluído em duas obras, em Música para Camaleões (Music for Chameleons, 1980; obra esgotada há anos em Portugal) e como capítulo do romance inacabado, pseudo-proustiano, recentemente editado em Portugal pela Dom Quixote, Súplicas Atendidas (Answered Prayers, 1987). Os restantes contos foram publicados separadamente em livros ou revistas.«Há vários anos que Mrs. H. T. Miller vivia sozinha num apartamento confortável (duas divisões e kitchenette), num brownstone remodelado perto do East River. Era viúva: o seguro de vida de Mr. H. T. Miller permitira-lhe receber uma soma razoável. Os seus interesses eram limitados, não tinha amigos dignos desse nome, e, no que tocava a viagens, raramente ia mais longe do que a mercearia da esquina. As outras pessoas do prédio pareciam nunca reparar nela: as suas roupas eram banais, o cabelo de um tom cinzento-escuro, curto, ondulado sem grandes primores; não usava cosméticos, os seus traços eram simples e vulgares, e, no seu último aniversário, fizera sessenta e um anos. As suas actividades raramente eram espontâneas: mantinha as duas assoalhadas num brinquinho, fumava um cigarro uma vez por outra, preparava as suas próprias refeições e tratava do canário.
«Até que conheceu Miriam. (…)»
Truman Capote, “Miriam”, Contos Completos, pág. 61.
[Lisboa: Sextante, 1.ª edição, Setembro de 2008, 413 pp.; tradução de José Vieira de Lima; obra original: The Complete Stories of Truman Capote, 2004.]
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