quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Estabilização dos fluidos

Terminou a contraditória excitação estival em busca do sossego pretendido – ou ainda perdura, naturalmente sem o apodo semântico de insensatez, disfarçada de idoneidade intelectual ou de uma vontade inaudita de retomar os afazeres que fui abandonando em razão da manutenção de alguma da minha sanidade mental.
Carreguei uma pilha de livros para três lugares distintos deste nosso lindo Portugal. Descansei, o que se pode traduzir por boas leituras. Levei comigo algumas novidades editoriais, porém, dediquei-me, quase em exclusivo, à leitura daqueles livros que teimavam em ganhar pó – e este, juro-vos, não se consegue rentabilizar pela simples inspiração – na minha imensa estante, de proporções quase límbicas, de obras em lista de espera.
Já aqui dei conta dos três primeiros, aos que agora acrescento quatro, cujo grau de satisfação percorreu de lés a lés o meu espectro classificativo.
Sucintas notas de prova, por ordem de leitura:

Antonio Skármeta, A Dança da Victoria (Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Março de 2007, 341 pp.) [tradução de José Colaço Barreiros; obra original: El baile de la Victoria, 2003]
Eis o último romance do laureado escritor chileno, nascido em Antofagasta em 1940, autor do romance mais que sobreavaliado O Carteiro de Pablo Neruda (Ardiente paciencia, 1985) – transposto para o cinema em 1994 pelo realizador indo-britânico Michael Radford.
A Dança de Victoria é um amontoado de clichés, de lirismos anacrónicos com cheiro a naftalina; diálogos fúteis e pueris, metáforas perfeitamente inacreditáveis, quase sempre risíveis pela absurdez, com um enredo de base que pede meças a uma qualquer novela mexicana, onde nem sequer falta um vendável fim semi-trágico, à laia da necessária sangria para salvar do pecado capital as personagens que ficam para contar a história.
De escrita (demasiado) fluida e simples, por vezes intervalada por curtas deambulações poéticas desconexas, e com uma base narrativa a apelar ao realismo mágico sul-americano dos seus inalcançáveis predecessores mais imediatos como García Márquez ou de Vargas Llosa – apelo que se fica por um zunir quase inaudível ao ouvido atento da qualidade literária –, a mediania grassa por toda a obra.
Eis um bom exemplo:
«Ao entrar na zona, o jovem não pôde impedir que dele transbordasse felicidade. Era como se um duche de pistões, semelhante ao que usam para pintar a carroçaria dos automóveis, lhe tivesse varrido o sarro que acumulava nas suas entranhas. Sentia-se limpo, leve, e ao dar-se conta de que estava prestes a fazer em plena rua uma cabriola de dança, compreendeu pela primeira vez aqueles heróis dos musicais de Hollywood que se punham a cantar ou a dançar quando entravam em êxtase.» (pág. 239)
Classificação: ** (Medíocre)

Halldór Laxness, Gente Independente (Lisboa: Cavalo de Ferro, 2.ª edição, Junho de 2007, 483 pp.) [tradução de Gudlaug Rún Margeirsdóttir; obra original: Sjálfstætt fólk, 1933-1935]
Halldór Kiljan Laxness (1902-1998), escritor islandês, vencedor do Nobel da Literatura em 1955 – um ano após Hemingway – escreveu Gente Independente em duas partes distintas (porém interligadas) entre os anos de 1932 e 1935, enquanto vagueava pela Europa.
Gente Independente é um épico sobre a Islândia e as suas insularidade e ruralidade, particularidades em profundo confronto com uma Europa capitalista, moderna, cujos sistemas político, económico, social e tecnológico se transmutaram em torno da produção massificada, naquela que ficaria conhecida como a segunda vaga da revolução industrial, iniciada em meados do século XIX – a acção decorre entre os primeiros anos do século XX e o final da I Guerra Mundial.
À narrativa não é alheia a simpatia do autor pela emergência do ideal socialista de Marx e Engels, que se ia corporizando na Rússia ex-czarista no pós-1917 – que mais tarde, na década de 50, foi objecto do mais veemente repúdio pelo autor, após a constatação in loco da tirania do regime soviético em nome de um ideal irrealizável –, como contraponto à crescente desumanização e à ruína do pequeno proprietário provocadas pela prevalência do capitalismo como o sistema económico.
A história centra-se na vida de um homem obstinado, rústico, tradicional – Bjartur das Casas de Verão – que, a dada altura da sua vida, tenta prosseguir o sonho de se tornar definitivamente independente dos senhores que o albergavam em troca da sua força de trabalho, num sistema tipicamente feudal na Islândia dos primórdios do século passado. Seguindo um enquadramento histórico exemplar, sucedem-se os episódios numas vezes carregados de um fundo cómico proporcionado pela perseverança cega de um personagem fascinante, bem estereotipado e ricamente trabalhado, noutras, porém, emergindo a crueza, a que o autor não se furta, de um sonho que se desfaz ou de uma vitória que se conquista à custa da vida daqueles que o rodeiam, correspondendo à materialização da ideia subjacente à obra de uma independência que jamais se alcança, perante a corrupção do poder e a perversidade de um sistema que, de forma ilusória, se vende e que, simultaneamente, se alimenta das esperanças dos mais fracos.
Gente Independente é um tratado sobre a Teoria Económica sob a forma de romance. Indispensável para compreender a génese do mundo, globalizado, como hoje o conhecemos.
Classificação: ***** (Muito Bom)


Lev Tolstói, A Sonata de Kreutzer (Lisboa: Relógio D’Água, 1.ª edição, Julho de 2007, 115 pp.) [tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra; obra original: Kreutzerova sonata, 1889]
O que dizer desta pequena maravilha da literatura mundial? Que palavras nos restam para classificar pouco mais de cem páginas de uma novela, onde se descobre que o dom inato de um homem, do mesmo autor, para contar histórias curtas irradia com o mesmo brilho, as mesmas intensidade e integridade relativamente àquele que se evidencia pela simples leitura dos seus imortais romances enciclopédicos?
Há muito que Tolstói passou a desempenhar a função de adjectivo, sinónimo de “excelência literária” ou de “grau dificilmente alcançável de perfeição literária” ou simplesmente de “obra-prima”.
Depois dos colossais Guerra e Paz (1869) e Anna Karénina (1877), A Sonata de Kreutzer surge na fase espiritual da vida de Tolstói, iniciada com a publicação de cariz autobiográfico A Minha Confissão (1882), e na sequência da publicação de uma outra obra-prima, A Morte de Ivan Ilitch (1886) frequentemente usada com termo de comparação com a primeira. Se em Ivan Ilitch, Tolstói reflecte sobre a iminência da morte como epifania para a ainda tão contemporânea solidão acompanhada e do egoísmo imanente à espécie humana, em A Sonata de Kreutzer o autor russo reflecte sobre o ciúme, a mulher e o sacramento do casamento, onde a morte surge como instrumento manipulável, reverberando a sua conturbada vida marital após a sua recente conversão: a assunção da razão da moral cristã como princípio de vida e norma de conduta, independente do Homem ou da Igreja – que considera dissoluta, e lhe valerá a pena de excomunhão.
O mais admirável em Tolstói, engenhosamente evidenciado nesta pequena obra-prima, é a sua destreza na manipulação dos personagens, a sua capacidade divina de tão depressa as evidenciar, elevando-as à condição de protagonistas, como num passe de mágica as fazer desaparecer e colocar em primeiro plano uma outra que nada mais é que a ideia central, a moral, se quisermos, da história que nos pretende contar.
Tolstói foi unanimemente considerado pelos seus contemporâneos (Proust, Joyce, Dostoievski, Flaubert, Turguéniev ou Tchékhov) como o génio da Literatura. Morreu sozinho e isolado em 1910 – em 1901 foi atribuído o primeiro Prémio Nobel da Literatura, galardoou o autor francês Sully Prudhomme...
Classificação: ****** (Obra-prima)

Norman Mailer, O Fantasma de Hitler (Lisboa: Dom Quixote, 1.ª edição, Agosto de 2007, 460 pp.) [tradução de Octávio Gameiro; obra original: The Castle in the Forest, 2007]
Com 84 anos, Norman Mailer publica a sua 46.ª obra, O Fantasma de Hitler, uma obra entre a ficção e o ensaio, tal como dezenas de obras da sua extensa bibliografia, que poderemos classificar como “não-ficção criativa”.
Desta vez a personagem é Adolf Hitler (1889-1945) e os primeiros anos da sua existência na sua Áustria natal – romance biográfico tal como Mailer havia feito anteriormente com Lee Harvey Oswald, Jesus Cristo, Pablo Picasso, ou a sua experiência de combate durante a II Guerra Mundial no seu livro, internacionalmente aclamado como a obra-prima, Os Nus e os Mortos (The Naked and the Dead, 1948).
O Fantasma de Hitler é uma história narrada por um personagem chamado Dieter – ou D. T., forma como pede aos leitores que o tratem – presumivelmente um pequeno demónio que mais tarde, a partir de 1938, se materializou como ex-oficial das SS de Heinrich Himmler, e agora, à distância de décadas, radicado nos Estados Unidos conta a história das suas inoculações malévolas ao jovem Adolf, sob a direcção do Mestre – supostamente Satanás – numa luta eterna, sem quartel, baseada na luta dos Dois Reinos descrita por Milton no seu Paraíso Perdido, pela conquista das almas com D. K. – abreviatura para Dummkopf, epíteto jocoso para Deus – e o seu exército de Bastões, como são apelidados os anjos:
«É capaz de ser por isso que o Maestro nos encoraja a falarmos de Deus como o D. K. (pelo menos a nós que trabalhamos em regiões onde se fala alemão. Na América, é o D. A. – dumb ass! Em Inglaterra, o B. F. – bloody fool! Para a França, A. S. – l’âme simple. Na Itália, G. C. – gran cornuto! Entre os espanhóis, G. P. – gran payaso.) […] Isto não quer dizer que consideremos Deus estúpido – isso nunca! […] O nosso uso da palavra Dummkopf advém, penso eu, do desejo do Maestro de nos desabituar da nossa maior fraqueza – a admiração relutante que sentimos pelo Omnipotente. Tal como o Maestro nos relembra constantemente. Deus pode ser Poderoso, mas não é Todo-Poderoso. Isso dificilmente. Nós, ao fim e ao cabo, também cá estamos. Se o D. K. é o Criador, nós somos os Seus críticos mais perspicazes e bem sucedidos.» (pág. 98)
Com este livro, Mailer dá-nos, partindo de factos verídicos recolhidos numa extensa bibliografia sobre Hitler, a visão romanceada da génese de um tirano, cuja subida ao poder em 1933, e o seu reinado de doze anos, mostrou ao mundo um dos maiores facínoras da História, responsável pela aniquilação de milhões de judeus e pela destruição de grande parte dos territórios europeus.
O pequeno Adi – diminutivo de Adolf – surge no seio de uma família cujas práticas ancestrais de incesto vão envenenando os genes das gerações vindouras. Para além de se sugerir que Alois – pai de Adolf – pode de facto ter sangue judeu – que não deixa de ser uma ironia do destino –, sabe-se, com toda a certeza, que Klara – mãe do jovem Hitler – é sobrinha do seu próprio marido, ou possivelmente filha – o estudo genealógico não conseguiu provar esta última tese.
Outro facto cómico surge no momento de concepção de Adolf. Segundo Mailer, Hitler terá sido concebido após um exercício prévio de sexo oral recíproco e simultâneo – prática sexual inovadora para o casal –, vulgo “69”:
«Klara virou-se dos pés para a cabeça, e pôs a sua parte mais indecorosa no nariz e na boca dele [Alois]
que respiravam com dificuldade, e levou o velho aríete dele aos lábios.» (pág. 72)
Após a excitação inicial o próprio Demónio participou no coito vaginal que se seguiu e:

«Assim como Anjo Gabriel foi o servo de Jeová numa noite solene em Nazaré, também eu estava lá com o Demónio nesta concepção nessa noite de Julho, nove meses e dez dias antes de Adolf Hitler ter nascido a 20 de Abril de 1889.
» (pág. 73)
Para além das práticas incestuosas, conhecidas à época como “mal de sangue” e de uma atracção inusitada pelos excrementos, há uma estranha alegoria que perpassa toda a narrativa: o simbolismo da apicultura. A organização escrupulosa, hierarquizada e funcionalmente irrepreensível das abelhas no seu meio, possivelmente usada mais tarde na estrutura de comando nazi.
A fluidez discursiva e a comicidade que o autor norte-americano apõe à sua extensa narrativa, são sem dúvida os pontos mais fortes de uma obra que parece ter sido abandonada a meio do percurso por falta de fôlego – aliás como Mailer recorrentemente alerta no decurso da obra, através das inúmeras reticências ou promessas de uma nova obra que vai deixando no texto.
O que pesará na minha singela avaliação? A destreza descritiva? Ou, sobretudo, parodiando, a lassidão e a inconsistência da profusão escatológica ao longo da obra?
Ao ler este romance de Mailer dominou-me um sentimento de fervorosa aquiescência com os encómios habitualmente a ele dirigidos pelo seu amigo – o mais famoso língua de prata da literatura norte-americana – Gore Vidal
Apesar de tudo:
Classificação: *** (A Ler)

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