Como diria o outro (não me recordo agora de quem seja), é
todo um programa que levou menos de três décadas a cumprir. Não é uma visão
apocalíptica, trata-se de uma constatação da miséria humana num mundo em
decadência compulsiva, quiçá registada no seu código genético, a autodestruição
pela emergência in ego dos contrários.
«Sempre quis ser amado pelo Partido Comunista e pela Santa Madre Igreja. Queria viver numa canção folk, como o Joe Hill. Queria chorar pelas pessoas inocentes que a minha bomba deixaria necessariamente estropiadas. Queria agradecer ao velho camponês que nos daria de comer na nossa fuga. Queria usar a minha manga vazia arregaçada até cima, ver as pessoas sorrir quando eu fizesse a continência com a mão errada. Queria ser contra os ricos, mesmo que alguns deles conhecessem Dante; momentos antes da derrocada um deles ficaria a saber que também eu conhecia Dante. Queria que levassem o meu busto pelas ruas de Pequim, com um poema escrito no meu ombro. Queria poder sorrir aos dogmas, e apesar de tudo deixar que estes me distorcessem a personalidade. Queria defrontar as máquinas da Broadway. Queria que a Quinta Avenida recordasse os atalhos índios que por lá passavam. Queria sair de uma cidade mineira com maus modos e convicções incutidos por um tio ateu e bêbedo, ovelha negra da família. Queria atravessar a América num comboio blindado, ser o único branco aceite pelos negros na convenção. Queria ir a cocktails de metralhadora ao ombro. Queria dizer a uma velha namorada escandalizada pelos meus métodos que as revoluções não se fazem nos buffets, que não podemos ser selectivos, e ver o seu vestido de noite prateado molhar-se no sítio da cona. Queria lutar contra o golpe de estado da polícia secreta, mas de dentro do partido. Queria que uma velha a quem morreram os filhos se lembrasse de mim nas suas orações, numa igreja de adobe, e que os filhos me garantissem que o fizera. Queria persignar-me quando ouvisse palavrões. Queria ser tolerante para com os vestígios de paganismo numa festa de aldeia, condenando a Cúria. Queria envolver-me em negócios obscuros de imobiliário, ser o agente de um bilionário sem nome e sem idade. Queria escrever bem dos Judeus. Queria ser alvejado entre os Bascos por transportar a eucaristia para o campo da batalha contra Franco. Queria pregar sobre o casamento com a indiscutível autoridade de uma virgem, espreitando pêlos negros das pernas das noivas. Queria escrever um manifesto contra o controlo de natalidade num inglês muito claro, um panfleto que se vendesse nas salas de espera, ilustrado a duas cores com desenhos de estrelas cadentes e da eternidade. Queria proibir a dança durante uns tempos. Queria ser um padre drogado que gravasse um disco para a Folkways. Queria ser deportado por razões políticas. Acabo de descobrir que o cardeal … recebeu um avultado suborno de uma revista feminina, fui alvo de propostas desonestas por parte do meu confessor, vi os camponeses serem traídos por razões necessárias, mas os sinos tocam esta noite, outra noite no mundo de Deus, e há muitos que precisam de alimento, muitos joelhos ansiosos por se vergarem, subo os degraus gastos enrolado na velha pele de arminho.»Leonard Cohen, Belos Vencidos, pp. 30-32 [Lisboa: Relógio D’Água, Novembro de 1997, 271 p; tradução de Margarida Vale de Gato; obra original: Beautiful Losers, 1966]