quinta-feira, 22 de abril de 2010

É pau, é pedra (corrigido)

É a literatura a descaminho.
Não são, felizmente as Águas de Março, fechando o Verão, mas os seus Meados no hemisfério Norte que anunciam a Primavera – época de bulício da natureza e do alvor de uma vida que se renova, ou quase…
Em Portugal, é também significado de livros em catadupa – não há carteira que resista à torrente livreira de frontispícios engalanados com prémios e encómios expelidos, como cinzas vulcânicas – que actual – por gente validada. Novidades editoriais. Livros fechando o Inverno da modorra comercial pós-natalícia.
Vejamos. Surgiu o incensado Booker de Mantel, e já se anuncia (para amanhã) o Submundo do notável DeLillo. Publicou-se em simultâneo mundial o mais recente de McEwan; chegou finalmente, com atraso de décadas, a fazer jus à instituição do título que a designa, o(s) Correios de Bukowski (Post Office, 1971)*; ou o Winesburg, Ohio de Sherwood Anderson. Biografias de Kerouac e de Orwell, e mais uns ensaios deste último. Um Bolaño fraquinho, porém inédito. O Hooligan de Manea. Tolstói e Turguéniev (ou Turguénev, vá lá entendam-se, doutos do cirílico russo, quanto à transliteração do mais ocidental dos seus filhos literários oitocentistas) a rodos. A última compilação de contos do recentemente desaparecido Updike, quando se anuncia o Volume II dos contos de Cheever pela Sextante. Reedição do 2.º romance de Auster (data de 1987), negro, sombrio e devastador, que mesmo a ilustrada Moura Pinheiro apresentou como novidade do autor de Newark. O alter-ego de Banville para os policiais. Antes disso houve Jean Rhys, Coetzee, e Valter Hugo Mãe, nos portugueses apreciados. E, por fim, o destaque para o regresso de Martin Amis à grande literatura, com A Viúva Grávida (The Pregnant Widow), publicado em Fevereiro em Inglaterra e apenas dois meses depois em Portugal (edição Quetzal, saúde-se):
«O único romance que ela elogiava sem reservas era Meados de Março1. Porque Lily era uma criatura do mundo mediano.»
Martin Amis, A Viúva Grávida, p. 42
[Lisboa: Quetzal, Abril de 2010, 533 pp.; tradução de Jorge Pereirinha Pires e revisão de Carlos Pinheiro.]
Talvez tenha havido uma electrocussão arbórea – raios cataclísmicos das águas de Março, conduzidas à terra pelo tronco enraizado –, porque a nota do tradutor “1”, postada logo após “Meados de Março”, remete-nos, em pé de página, para Middlemarch. Um caso de gravidez literária, com viúvas mas sem hiatos e herdeiro, porque histérica – abusando, sem remorsos, das águas correntes de Herzen (1812-1870).
Naquele excerto, Amis procurou jogar ironicamente com as palavras, na descrição da activista igualitária de género Lily, conjugando-a com a leitura compulsiva dos clássicos da literatura inglesa por Keith – personagem principal do romance e seu namorado, projecção do autor (mas não o seu superego, essa é outra história): trocadilho entre “Middlemarch” e “middleworld” (esta última traduzida por “mundo mediano”), em que a primeira surge sempre grafada com maiúscula e é citada em várias ocasiões ao longo das mais de quinhentas páginas que compõem a obra.
Ora, o inventivo e esdrúxulo Meados de Março é, tão-só e somente, a obra-prima da escritora vitoriana George Eliot (pseudónimo de Mary Anne Evans, 1819-1880), traduzida para português há várias décadas – recentemente reeditada pela Portugália, com prefácio de Jorge de Sena – como A vida era assim em Middlemarch. Pois, Middlemarch é uma vila ficcional criada por Eliot onde decorre a trama do romance entre 1830 e 1832, que a autora localizou nas Midlands inglesas (zona geográfica central de Inglaterra, entre as zonas norte e sul do país) – obra considerada por Amis, como o melhor romance de língua inglesa.
Se a moda pega, passaremos a ter mais literalismos proparoxítonos, como por exemplo, “Sussex” por “Sexo da Sue”, ou “Cornwall” por “Muro de Milho”, ou até “Blackburn” pelo intolerante e cruel “Queima de Negros”. E não se procurem exemplos sancionadores da asneira, por exemplo, Eugenides, com o seu Pulitzer Middlesex, não é para aqui chamado, porquanto, em boa verdade, o hermafroditismo é a base do seu romance.
E assim vamos andando, rindo e cantando neste acabrunhado país, onde a capital, a imensa cidade-prelo – como significação da fuga e da concentração nesse local, banhado pelo Tagus e o seu Straw Sea, das editoras nacionais –, poderá a partir de hoje literalizar-se em “Hornylily” – curiosamente a tal personagem do “mundo mediano” de Amis, que percorreu a narrativa em “meados” de qualquer coisa –, onde a sugestão de lubricidade poderá funcionar com factor captador de receitas extraordinárias provenientes do turismo anglófono.
Nota – não resisto a postar mais um exemplo sublime de confrontação entre a ficção (no que respeita ao romance inglês) e a realidade ficcionada no romance de Amis, corporizada na batalha dos pensamentos voluptuosos do jovem Keith perante Scheherazade e Gloria (mamas e rabo, respectivamente), com mais um exemplo de literalismo (pelo menos, felicite-se, há coerência do princípio ao fim):
«“E nunca te hei-de perdoar pela Rosamond Vincy”, disse ela [Lily] (retomando a discussão deles acerca do romance por ela preferido – Meados de Março). “Está lá a bela Dorothea, e tu vais atrás daquela cabra gananciosa da Rosamond Vincy. Que arruina [sic] o Lydgate. Badalhocas e vilões. É só disso que tu agora gostas – badalhocas e vilões.”» (p. 386)
*[Correcção, 23/4 às 11:10] Fui, felizmente, alertado por e-mail para um erro de facto cometido neste texto: a primeira publicação em Portugal de Correios de Charles Bukowski é de 2002 e foi da responsabilidade da extinta editora Canguru, com tradução de Marisa Mourinha. Apesar de a referida publicação ter escapado ao conhecimento do grande público – no qual me incluo, sendo um grande admirador da obra do impetuoso autor germano-americano –, isso não invalida que não se corrija o erro (crasso) que aqui cometi, ao referir-me, de forma indirecta, ao carácter inédito da publicação de 2010 da Antígona, com tradução de Rui Lopes.