sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Mann


Escuso-me de, aqui e agora, falar sobre o efeito que as obras do realizador norte-americano, nascido em Chicago em 1943, produzem em mim, um misto de admiração vertiginosa e de regalo cinéfilo pela forma como Michael Mann modela os cenários, em que câmara e actores parecem pertencer a um corpus uno, indiviso, criando no espectador uma sensação de movimento perpétuo de imagens cuja origem sugere um passe de magia, inescrutável e sem interesse na sua indagação porquanto estragaria o feitiço que nos fixou ao ecrã.
Escuso-me de falar da sua filmografia, dos encantos e das frustrações, da decepção com o mais recente Inimigos Públicos (Public Enemies, 2009).
Gostaria apenas de aqui deixar a confissão de um vício e a última consequência na reiteração desse vício: sempre que qualquer canal televisivo nacional transmite um filme cujo assombro ultrapassou a fronteira por mim delineada entre o bom e a obra-prima, por mais vezes que o tenha visto, mesmo que aquele seja parte integrante da minha vasta filmoteca, que está à mão de semear, não consigo deixar de assistir à transmissão da obra até ao fim, aturando os infindáveis intervalos e prejudicando as horas de sono que tanta falta me farão no dia seguinte quando, libertado das amarras etéreas da arte, regresso ao mundo para produzir e retirar os proventos que me permitem pagá-las.
Foi assim na última quarta-feira à noite. A TVI – estação televisiva pródiga nos espaços publicitários desmedidos – transmitia O Informador (The Insider, 1999). Enfiado na cama, de auscultadores sem fios amarrados à cabeça – ao lado havia quem protestasse: outra vez!? Deixa-me dormir… –, não perdi nenhum dos cerca de 150 minutos desse filme-portento, bastante subavaliado perante a restante filmografia do realizador. Tudo nele é perfeito: a fotografia de Dante Spinotti, o minucioso argumento urdido pelo próprio Mann e Eric Roth, a música divina sobretudo da minha mui estimada Lisa Gerrard e de Pieter Bourke – impossível ficar indiferente perante “Sacrifice” –, as célebres guitarradas de Santaolalla em “Iguazu”, as orquestrações de Revell, as sublimes interpretações de Russell Crowe, Plummer e Pacino – no caso deste, talvez seja a sua última grande interpretação até aos dias que correm –, e a mão, que tudo uniu, de Mann.
Vi o filme talvez pela 14.ª ou 15.ª vez. Continuo a descobrir pormenores que conseguem fazer o que até ao momento me parecia sempre impossível: engrandecê-lo. O fotograma representado em cima é um entre vários pontos de zénite cinematográfico: o quadro familiar que se esfumou pela dissensão, a opção pelo dever altruísta de denúncia da prática de um crime sobre a comunidade e o zelo, egoísta, dos interesses exclusivamente familiares – Crowe ficou só, emoldurado pelo negrume da noite, onde um segurança privado vela no jardim pela sua integridade física, mas que jamais conseguirá salvaguardar a liberdade perdida por uma família destroçada. Wigand (Crowe) está só naquele quadro de desolação, onde uns fotogramas antes estivera acompanhado por Liane (Diane Venora), que fugiu e o afastou das suas filhas para sempre.
Será porventura um cliché, uma dúvida que emerge em milhares de lares no momento em que os caminhos se bifurcam, mas apetece-me dizer: felizes aqueles que passam por este mundo isentos de opções dilacerantes, mas, por muito paradoxal que isso possa afigurar-se a esses que vivem evitando o risco, perante a tranquilidade de espírito que advém da luta contra tudo o resto que emerge como confortável, escolhi a infelicidade.