terça-feira, 19 de agosto de 2008

Um homem que brilha no escuro

Treze dias passaram desde a data de publicação do último texto neste blogue. A modorra estival que sobre mim sói abater-se neste mês – o oitavo, pelo calendário, e verdade seja dita, também só restavam outros dois –, onde se esfumam os minúsculos resquícios de sanidade deste povo cultor da mediocridade, impede-me que prossiga escrevendo; talvez me solidarize, ou então, trata-se apenas de um sinal, de um terrível lembrete da minha inescapável condição de autóctone. Temo, por isso, sofrer dos mesmos males que afectam essa massa de arraialeiro-consumistas arquetípicos que dá corpo ao país que me viu nascer.
Querem melhor do que as justificativas para a participação desastrosa da nossa comitiva olímpica (valha-nos Santa Vanessa de Perosinho!): a humidade, o vento, os árbitros ou os juízes do judo, as provas matinais (hora para, em cima da almofada babada, dizer à caminha o quanto gostamos dela – aquele lançador do peso…), e até o desarranjo psíquico. Apenas um, que curiosamente é nigeriano de nascença, teve a humildade de reconhecer que as suas, outrora admiráveis, capacidades como atleta estão diminuídas – a idade não perdoa, especialmente, a um velocista – e que se retira para se dedicar de corpo e alma à sua fundação. Falo, é claro, de Francis Obikwelu.

Mas este regresso efémero – recolherei de imediato à lusa modorra – apenas teve que ver com um acontecimento literário: o meu, declarada e arrebatadamente, escritor preferido – e escusam de escrever na caixa de comentários, como já ocorreu, que é um autor cheio de debilidades – acabou de publicar (saiu para o mercado hoje mesmo no seu país natal) o seu 12.º romance – ou 14.ª obra de ficção para aqueles que preferem separar A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy, 1987) em três novelas, que de facto foram inicialmente publicadas em separado, entre 1985 e 1986. Trata-se do prometido Man in the Dark.

Releio incansavelmente o discurso de entrega do Prémio Príncipe de Astúrias de 2006. Concordo com cada linha e assumo que talvez seja por isso que entenda a literatura como a minha principal fuga para estes desvarios e irritações do quotidiano. A fuga ao real através da fantasia, da ilusão, através das histórias que nos são contadas por aqueles a quem concedemos a autoridade para a invasão do nosso imaginário.
Não é que a histórias de A Marquesa saiu às cinco horas não me despertem qualquer tipo de interesse, bem pelo contrário, encanta-me a estética do realismo literário, longe de algumas derivações contemporâneas do realismo: o histérico e o informacional, como crítica James Wood sem dó, nem piedade. Mas, como dizia André Breton, há que regressar aos contos de fadas, criando uma nova forma de contar histórias para gente crescida, retirando-lhes a fortíssima carga de puerilidade, tecendo mais fina a teia da inverosimilhança. No meu entender, Auster consegue-o, umas vezes com estrondoso sucesso, outras, infelizmente, a imperfeição humana, com menor brilhantismo; mas consegue, e isso é comprovável pela sua obra, construir a chamada narrativa do maravilhoso, preconizada pelo surrealista francês.

[Um exemplo cabal da narrativa do maravilhoso é o notável romance de 1978 do escritor chileno José Donoso (1924-1996) Casa de Campo e que foi publicado entre nós pela primeira vez este ano, sob a chancela da editora Cavalo de Ferro. O jogo da Marquesa saiu às cinco (expressão que Donoso retirou de Breton, e que este confessa que resultou de uma confissão de Paul Valéry), o trompe-l'œil, a descontinuidade, são de um empolgante enlevo literário, para além das sucessivas, encantadoras e inabituais interferências do omnisciente autor-narrador no decurso da história, chegando a dialogar com um dos seus inúmeros personagens.
Sobre ele gostava de aqui ter dito alguma coisa, mas a tal modorra/ausência/desencanto não mo vão permitindo.]

Correndo o risco de entrar para o Guiness (onde, decerto, estaria pneumaticamente mal acompanhado…) com o post mais longo de sempre da blogosfera, deixo-vos aqui, um excerto da primeira parte do novo romance de Paul Auster:

Paul Auster«Estou só na escuridão, alterando o mundo na minha cabeça à medida que vou combatendo outro ataque de insónia, outra noite em branco na desolação americana. Lá em cima, a minha filha e a minha neta estão a dormir nos seus quartos, cada uma igualmente só, a Miriam de quarenta e sete anos, a minha única filha, que passou a dormir sozinha nos últimos cinco anos e a Katya de vinte e três, filha única de Miriam, que costumava dormir com um rapaz chamado Titus Small, mas Titus está morto e Katya dorme sozinha com o seu coração partido.

Luz radiosa, depois as trevas. O sol disseminando-se por completo em todos os cantos do céu, seguido pelo negrume da noite, as estrelas silenciosas, o vento açulando os ramos das árvores. Tal é a rotina. Vivo nesta casa há mais de um ano, desde que me deixaram sair do hospital. Miriam insistiu para que eu viesse para cá e no início éramos só nós, com uma enfermeira de dia que cuidava de mim quando Miriam se ausentava para trabalhar. Então, três meses mais tarde, o céu abateu-se sobre Katya, abandonou a escola de cinema em Nova Iorque e regressou a casa para viver com a mãe no Vermont.

Os pais dele deram-lhe o nome do filho de Rembrandt, o rapazinho dos quadros, a criança de cabelos dourados com o barrete vermelho, o discípulo devaneante meditando profundamente sobre as suas leituras, o rapazinho que se tornou num jovem destruído pela doença e que morreu nos seus vinte e tal anos, assim como o Titus de Katya. É um nome assombrado, um nome que deveria desaparecer para sempre de circulação. Penso imensas vezes na morte de Titus, a história horrível daquela morte, as imagens dessa morte, as consequências demolidoras dessa morte na minha neta amargurada, mas não quero ir por aí agora, eu não posso seguir por aí neste momento. Tenho, tanto quanto possível, de atirar isso para longe de mim. A noite ainda é uma criança, e visto que estou aqui deitado a olhar para cima para escuridão, uma escuridão tão negra que torna o tecto invisível, começo a recordar-me da história que iniciei a noite passada. É isso que faço quando o sono recusa aparecer. Deito-me na cama e conto-me histórias. Elas poderão não acrescentar muito, mas enquanto permaneço dentro delas, elas impedem-me de pensar em assuntos que prefiro esquecer. A concentração pode ser um problema, todavia, e cada vez com mais frequência a minha mente afasta-se fortuitamente da história que tento contar rumo às coisas em que não pretendo pensar. Não há nada a fazer. Eu falho repetidas vezes, e essas são mais frequentes do que aquelas em que tenho sucesso, mas isso não significa que não lhe dedique a parte considerável do meu esforço.

Eu pu-lo num buraco. Pareceu-me um bom começo, uma forma promissora de prosseguir com as coisas. Pus um homem adormecido num buraco, e depois verei o que irá acontecer quando ele acordar e tentar rastejar para fora dele. Estou a falar de um buraco profundo no solo, com cerca de três metros de profundidade, cavado de maneira a formar um círculo perfeito, com paredes interiores alcantiladas formadas por terra tão densa e firmemente compactada que a superfície ganhou a textura de barro cozido, ou talvez até de vidro. Por outras palavras, o homem que está lá dentro será incapaz de se desembaraçar do buraco quando abrir os seus olhos. A não ser que esteja equipado com um conjunto de ferramentas de montanhismo – um martelo e espigões de metal, por exemplo, ou uma corda para enlaçar uma árvore que se encontre próxima – mas este homem não dispõe de ferramentas, e a partir do momento em que recuperar a consciência, rapidamente entenderá a natureza complicada da sua situação.

E assim acontece. O homem recobra os sentidos e descobre que está deitado de costas, olhando fixamente um céu crepuscular sem nuvens. Chama-se Owen Bricks e não faz a mínima ideia de como veio aqui parar, não tem memória de ter caído neste buraco cilíndrico, cujo diâmetro ele considera aproximar-se dos três metros e meio. Ele senta-se. Para sua surpresa enverga um uniforme militar feito de uma lá grosseira de tom pardacento. Tem uma boina na sua cabeça e calça um par de botas gastas de cabedal preto, atacadas acima dos tornozelos por um firme nó duplo. Existem duas listas militares em cada manga do seu casaco, indicando que aquele uniforme pertence a alguém com a patente de cabo. Essa pessoa poderá ser Owen Brick, porém o homem no buraco, cujo nome é Owen Brick, não se consegue recordar de, alguma vez na vida, ter servido em algum exército ou combatido numa guerra.

Em busca de uma qualquer explicação, ele assume que lhe infligiram uma pancada na cabeça e que temporariamente perdeu a memória. Quando põe a ponta dos dedos no seu escalpe e começa a procurar por inchaços ou golpes, ele não encontra, porém, qualquer sinal de tumefacção, nada de cortes, pisaduras, nada que sugira que tal lesão haja ocorrido. O que se passa, então? Terá sofrido alguma espécie de trauma debilitante que afectou uma grande parcela do seu cérebro? Talvez. Contudo, ele jamais terá maneira de o saber a não ser que regresse a memória desse trauma. Depois, ele começa a explorar a possibilidade de estar a dormir na sua cama em casa, aprisionado dentro de um qualquer sonho sobrenaturalmente lúcido, um sonho tão verosímil e intenso que a fronteira entre a fantasia e a consciência quase se dissipou. Se isso for verdade, então ele terá apenas de abrir os olhos, levantar-se num ápice da sua cama e ir para a cozinha preparar o seu primeiro café da manhã. Mas como podereis abrir os olhos se eles já estão na realidade abertos? Infantilmente, ele pestaneja algumas vezes, imaginando que esse acto lhe quebraria o feitiço – mas não há nenhum feitiço para quebrar e a cama mágica não é capaz de se materializar.

Um bando de estorninhos passa ao alto entrando no seu campo de visão por cinco ou seis segundos, desaparecendo depois na penumbra. Brick levanta-se para inspeccionar as suas imediações e enquanto o faz sente um objecto protuberante no bolso esquerdo da frente das suas calças. Era uma carteira, a sua carteira, e para além de setenta e seis dólares americanos, continha uma carta de condução emitida pelo Estado de Nova Iorque em nome de um Owen Brick, nascido a 12 de Junho de 1977. Isto só vem confirmar o que Brick já sabia: um homem aproximando-se dos trinta que vive em Jackson Heights, Queens. Ele também sabe que é casado com uma mulher chamada Flora e que nos últimos sete anos ele trabalhou como mágico profissional, actuando de preferência em festas de aniversário de crianças à volta da cidade, sob o nome artístico de Grande Zavello. Estes factos apenas adensam o mistério. Se ele está tão certo de quem é, então como é que ele acabou no fundo deste buraco, vestindo, sem mais, um uniforme de um cabo, sem papéis, chapas ou um cartão de identificação militar que pudessem provar o seu estatuto de soldado?

Não demora muito a aperceber-se de que escapar está fora de questão. A parede circular é demasiado alta e quando a pontapeia para amolgar a superfície e assim criar uma espécie de apoio para o pé que o ajudasse a trepá-la, o único resultado que logra alcançar é um dedo grande do pé dorido. A noite vai caindo velozmente e forma-se um tempo frio, um frio húmido e primaveril que lhe vai penetrando o corpo a pouco e pouco, e embora Brick comece a sentir algum receio, naquele momento ele ainda permanece mais confuso do que receoso. Não obstante, ele não se consegue deter em clamar por ajuda. Até agora, tudo se manteve silencioso à sua volta, sugerindo que ele se encontrava numa remota e despovoada extensão de terreno no campo, sem qualquer som excepto um ocasional gemido de um pássaro e o sussurrar do vento. Porém, como se estivesse ao comando, como se devesse a uma lógica torcida de causa e efeito, no preciso momento em que gritou a palavra SOCORRO, irrompe à distância fogo de artilharia e o céu escurecido iluminou-se por traços de cometas de destruição. Brick ouve metralhadoras, granadas a explodir e por trás de tudo isso, sem dúvida a quilómetros de distância, um coro sombrio de uivantes vozes humanas. Isto é a guerra, apercebe-se, e ele é um soldado nessa guerra, mas sem dispor de arma, nem forma de se defender perante o ataque, e, pela primeira vez desde que acordou dentro do buraco, ele está verdadeiramente assustado.

O tiroteio prossegue por mais de uma hora, depois dissipa-se gradualmente no silêncio. Não muito depois disso, Brick ouve o som desmaiado de sirenes, o que ele entende como sendo carros de bombeiros que acorrem aos edifícios que foram danificados durante o ataque. A seguir as sirenes também param e o silêncio assalta-o uma vez mais. Sente-se gelado e amedrontado, mas Brick está igualmente exausto e depois de ter andado à volta dos confins da sua prisão cilíndrica até as estrelas surgirem no céu, ele estende-se no chão e consegue finalmente adormecer.

Cedo, na manhã seguinte, ele é acordado por uma voz que o chama do topo do buraco. Brick olha para cima e vê o rosto de um homem que sobressai do rebordo, e uma vez que a cara é tudo o que ele consegue divisar, ele assume que o homem está estendido no chão sobre a sua barriga.

Cabo, diz o homem. Cabo Brick, é tempo de se pôr a mexer.

Brick levanta-se e agora que os seus olhos apenas se encontram a mais ou menos um metro do rosto do estranho, ele pode ver que o homem é um tipo de tez escura, de maxilar quadrado, com uma barba de dois dias e que enverga uma boina militar idêntica à dele. Antes de Brick poder protestar, tanto como gostaria de se pôr a mexer, ele não está em posição de fazer algo desse estilo, o rosto do homem desapareceu.

Não te preocupes, ele ouve-o a dizer. Nós tiramos-te daí já a seguir.

Uns instantes depois, segue-se um som de um martelo ou de uma marreta de ferro batendo ruidosamente num objecto de metal, e visto que, a cada martelada sucessiva, o som se ia tornando cada vez mais mudo, Brick imagina se o homem estará a espetar uma estaca no solo. E se for uma estaca, então talvez ser-lhe-á em breve amarrado um bocado de corda, e com essa corda Brick será capaz de trepar para fora do buraco. O estrépito pára, passam-se outros trinta ou quarenta segundos, e então, tal como havia previsto, uma corda desce até junto dos seus pés.»
Paul Auster, Man in the Dark, pp. 1-7
[tradução livre a partir da edição americana: AMC – New York: Henry Holt, first edition, 2008, 192 pp.]

Nota: foi actualizada a lista de obras, editadas em Portugal em 2008, por mim lidas e classificadas, que figura, desde o seu início, na coluna do lado direito deste blogue. Como se pode desde logo constatar, ao contrário das listas de 2006 e 2007, publicadas no Porque e no In Absentia, respectivamente, a lista deste ano, por manifesta falta de tempo e sobretudo de vontade, figura quase desprovida de “notas de leitura”.
Sic transit gloria mundi.

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Pós-Humano

Para o antigo fã de Carpenter e dos restantes subprodutos da arte da realização cinematográfica, não é sem um arrepio de um horror declarado que me vou lembrando da atribuição do romance Meridiano de Sangue ou o Crepúsculo Vermelho no Oeste (Blood Meridian, or the Evening Redness in the West, 1985) do escritor norte-americano Cormac McCarthy ao realizador britânico Ridley Scott para dele erigir um filme. O argumento passará, no entanto, pelas mãos curiosamente mais subtis de William Monahan – reescreveu o argumento de Entre Inimigos (The Departed, 2006) de Scorsese.

Este devaneio de tons negros (o medo de um acontecimento que, com forte probabilidade, ocorrerá num futuro próximo) fez-me recordar um artigo publicado na novíssima revista
n+1, no seu primeiro número no Outono de 2004. Apesar de aí se discutir de forma lateral o assunto que me levou a escrever este texto, não resisto a enunciar a matéria principal que aí se tratava: a crítica literária praticada pela rival The New Republic. Os editores da n+1 dedicam-se a zurzir no negativismo do mais destacado crítico literário da revista e, certamente, da sua geração, o inglês James Wood (n.1965), actualmente ao serviço da revista The New Yorker, depois de quinze anos de serviço de recenseador repartidos pelo jornal britânico de The Guardian e pela já mencionada The New Republic.
O editorial da n+1 ataca-o em diversas frentes, por um lado acusando-o por exemplo de uma perseguição implacável a escritores consagrados como Don DeLillo, Toni Morrison (Nobel da Literatura em 1993), John Updike, Thomas Pynchon, Ian McEwan, Julian Barnes, Martin Amis e ao seu alvo dilecto Salman Rushdie, tal como a novos talentos que incluem autores como Zadie Smith ou Jonathan Frazen. E, por outro lado, afirmando que o esteticismo preconizado por Wood pretende pôr os escritores contemporâneos a escrever como os realistas do século XIX.
Wood defende-se, e bem, numa longa carta aos editores publicada na íntegra na edição número 3 da revista. Para além de refutar o negativismo militante que lhe é apontado, recordando um extenso rol de autores vivos e recentemente falecidos de quem as suas recensões foram assaz positivas – relembrando, ainda, outros que deixaram de publicar quando iniciou as suas funções e que de certa forma fazem parte do seu panteão pessoal –, Wood defende-se da crítica da sua alegada apologia do arcaizamento da escrita contemporânea ou pós-moderna. O crítico inglês diz que defender isso seria um total absurdo, porque apesar das realidades envolventes diferentes, hoje mais mediática e informacional, e das constantes mutações que afectam a arte da escrita, há toda uma ontologia da identidade que atravessa e supera as modas, as tendências e as formas de criação artística, concretamente a Literatura.

Eis uma explicação mais clara, usando para isso a suas próprias palavras:

«A forma e a linguagem da ficção encontram-se em permanente mudança. E o eu pode também estar a mudar. Mas não de forma tão rápida como as representações desse eu. A nossa geração pós-moderna cai frequentemente numa espécie de superioridade histórica ou provincianismo metafísico, já que nos orgulhamos no quão diferente é a nossa subjectividade – menos evidente, mais fracturada, mais consciente de si, etc. – em relação à dos nossos antepassados. Se isto fosse verdadeiro, seríamos incapazes de ler a ficção produzida por esses predecessores. Além disso, há escritores, como Hamsun e Dostoievski, cujas ideias do eu continuam a ser mais radicais do que qualquer coisa engendrada por, digamos, Thomas Pynchon. Nada na ficção contemporânea, nem mesmo as fantasias sádicas de Dennis Cooper ou as destruições sangrentas de Cormac McCarthy, é mais chocante que o momento em que o narrador de Hunger (1890) de Hamsun põe o seu próprio dedo na boca e começa a comê-lo. Não é pós-modernismo, é pós-humano. Beckett pediu claramente de empréstimo esta cena a Hamsun, quando Molloy come as suas pedras. E, claro, Beckett é um bom exemplo de escritor cujas forma e linguagem são completamente diferentes dos seus predecessores, mas cuja metafísica do eu seria reconhecível não só por Schopenhauer, mas provavelmente por Tomás de Aquino. (Poderão chamar a Beckett o último dos realistas.)» (pp. 135-136)
James Wood, “A Reply to the Editors”, n+1, n. 3, Fall 2005, pp. 129-139 [tradução: AMC]

O que hoje há, seguramente, de diferente em relação a épocas mais remotas é a possibilidade de perpetuação mediática de pós-humano referido por Wood, através de novas formas de representação artística, que ultrapassam a simples mimese, confundida amiúde com literalismo, a representação da beleza – conceito indissociável aos fundamentos da arte –, para entrar no domínio da repetição, do choque gratuito, em suma, da dita pornografia pseudo-artística.
O choque faz despertar sensações, retira-nos do torpor da indiferença. Porém, a sua reiteração faz desviar-nos do objecto de criação artística para um estado de catarse convulsiva, onde náusea passa à condição de reflexo condicionado sempre que as campainhas anunciam a chegada do seu criador.

O tal devaneio ridley-scottiano, levam-me já a vislumbrar uma sucessão inimaginável de cabeças cortadas e de escalpes arrancados. Começo a salivar… vem aí a náusea.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Verdade

Morreu aos 89 anos, aquele que pela verdade viu ser-lhe retirada por decreto a sua amada nacionalidade e foi obrigado ao exílio em 1974 por ter aceitado receber o Prémio Nobel da Literatura, atribuído em 1970 pela Academia Sueca – regressou à Rússia em 1994.
Acusado por muitos de anti-semitismo e de um desmedido fervor religioso Ortodoxo, ninguém lhe retira o mérito das suas denúncias de opressão de um regime totalitário e de haver escrito O Arquipélago de Gulag, o seu magnum opus. Escrita entre 1958 e 1968, a obra circulou clandestinamente pela União Soviética até ser publicada pela primeira vez no ocidente em 1973, pondo a nu a brutalidade e perversidade do regime comunista soviético entre 1918 e 1956, condenando milhões aos campos de trabalhos forçados designados pelo acrónimo Gulag (transliterado em Glavnoye Upravleniye Ispravitelno-trudovykh Lagerey – Administração dos Campos de Trabalho ou de Reeducação).

Aleksandr Solzhenitsyn

Aleksandr Solzhenitsyn
(Kislovodsk, 11 de Dezembro de 1918 – Moscovo, 3 de Agosto de 2008)

«Os provérbios acerca da verdade são muito apreciados em russo. Eles dão uma expressão firme e por vezes surpreendente da não negligenciável dura experiência nacional:
UMA PALAVRA DE VERDADE DEVE PREVALECER SOBRE O MUNDO INTEIRO.
E é aqui, num imaginário de fantasia, uma violação do princípio da conservação da massa e da energia, em que eu fundamento tanto a minha actividade, como o meu apelo a todos os escritores do mundo inteiro.
»

Aleksandr Solzhenitsyn, parte da habitual prelecção Nobel entregue à Academia Sueca, que não chegou a ocorrer devido a impedimento das autoridades soviéticas e por alguns pruridos da Academia em entregar o prémio na embaixada sueca em Moscovo.

O erro de Salinger

Chapman (Jared Leto) enfrentando a sua imagem no espelho no filme «Capítulo 27»
Estupidamente, depois de ter visto o filme e sem haver lido qualquer análise crítica sobre o filme intitulado Capítulo 27, procuro na minha biblioteca a nova tradução da obra-prima de Salinger que li há uns anos, À Espera no Centeio – a versão anterior, a da editora Livros do Brasil, chamava-se de forma esdrúxula Uma Agulha em Palheiro. Procuro nele o significado do tal capítulo que serve de leitmotiv ao filme, e a sensação do cometimento de uma burrice ainda maior apodera-se de mim com maior acuidade: 27, qual 27?
É com as palavras que se reproduzem a seguir que termina o famoso livro do relato da inocência perdida de um tal Holden Caulfield:

«É esquisito. Nunca contem nada a ninguém. Se contam, acabam por ter saudades de toda a gente.»
J.D. Salinger, À Espera no Centeio, pág. 226.
E assim termina o capítulo 26 do bestseller escrito pelo clandestino (por opção) escritor norte-americano Jerome David Salinger (n. 1919), que narra, na primeira pessoa, a história do jovem de dezasseis anos Holden Caulfield que, após expulsão da escola, aproveita as férias do Natal para escapar das garras parentais e passar três dias sozinho de intensa descoberta em Nova Iorque.
Salinger, antes de se dedicar à família Glass e aos seus pequenos prodígios ocidentalizados proto-tântricos, criou um dos personagens mais populares da história da literatura: um jovem que, provavelmente, no divã do seu psicanalista conta, um ano depois, o seu descrédito pelo mundo: corrompido e falso, clivado entre os baby-boomers e os adolescentes que, de forma metafórica, são atiradas por essa indiferença generalizada de um penhasco antecedido de um campo de centeio onde o avanço do cereal não permite o vislumbre dos jovens que nele se precipitam. Caulfield propõe-se a ser o “apanhador” dessa massa que resvala pelo campo e termina, ironicamente, como alguém que, perante a sordícia testemunhada, necessita de salvação. Nada mais a acrescentar.
Qual foi, então, o erro de Salinger? Trata-se do erro comum a todos os escritores: escrever ficção, que determinados psicóticos interpretam de forma messiânica, justiceira e apocalíptica, instrumentalizando a palavra escrita de outrem para, através da violência, alcançar a fama nas suas vidinhas enfadonhas. Por princípio, mas essencialmente, por pudor e honestidade intelectual, estas vidinhas deveriam no momento seguinte ao cometimento da barbárie – seja ela de que natureza for – voltar para o atroz e insuportável anonimato, condição cujas cabeças doentes, pervertidas e atormentadas dos perpetradores não conseguem aguentar. Mas, o voyeurismo da sociedade contemporânea jamais o permitiria. Logo, há que pôr a trabalhar a máquina de fazer milhões, e saciar a sede necrófila e sanguinária de uma massa tão banal como anónima. Todavia, a máquina falha, e muitas vezes devido a um erro na aquisição de uma simples peça que completa a engrenagem. Deixa de funcionar, ou funciona mal, virando-se o feitiço contra o cúpido feiticeiro.

A 8 de Dezembro de 1980, um inadaptado social chamado Mark David Chapman, no portão principal do edifício Dakota em Nova Iorque, onde John Lennon e Yoko Ono tinham um apartamento, consegue à saída do eminente ex-Beatles um autógrafo no disco Double Fantasy. No regresso ao Dakota, Chapman mata Lennon pelas costas, debaixo da mesma arcada do portão principal do edifício, com cinco tiros revólver – uma das balas foi a fatal, seccionou a aorta do cantor.
Chapman, para além do disco autografado e da arma do crime, trazia consigo um exemplar de À Espera no Centeio, e disse em entrevistas posteriores que se sentia maioritariamente como Holden Caulfield, procurando trazer justiça ao mundo – aquele que espera num campo de centeio e impede que os jovens se precipitem no penhasco da vida.

O filme Capítulo 27 – O Assassinato de John Lennon (Chapter 27, 2007), primeiro filme escrito e realizado pelo desconhecido germano-americano, cujo apelido encerra uma estranha coincidência*, Jarrett Schaefer (ou J.P. Schaefer, n. 1979), retrata os dias de insanidade de Chapman, interpretado por um irreconhecível Jared Leto, que engordou cerca de 30 quilos para poder desempenhar o papel – e que já o levou a confessar-se como arrependido, afirmando que jamais repetirá tal façanha.
O filme é igual a zero. Sem chama, sem ritmo, sem conteúdo, retrata o assassino sob a perspectiva do livro de base de Jack Jones Let Me Take You Down de 1992, correcta e impiedosamente massacrado pela crítica literária da altura, que se inspirou em entrevistas com o assassino e lhe dá uma configuração arrojada de propósito justificado pela cabeça de Chapman.
No ecrã aparecem sucessivas transcrições dos pensamentos – se é que lhe poderemos chamar pensamentos num sentido mais erudito do termo – a letras de fogo do assassino, misturadas com passagens do romance de Salinger.
Uma entrevista dada pelo casal Lennon/Ono funciona como catalisador, para um homem que se julga investido de um poder redentor de um personagem de ficção (no argumento):

«Li o artigo sobre o John Lennon. Ele dizia que apenas comia sushi e sashimi, e barras de chocolate com amêndoas “Hershey”. E que só fumava cigarros franceses. Quando lhe perguntaram se os Beatles alguma vez se voltariam a juntar, ele disse que lá porque um monte de idiotas perdeu a oportunidade na primeira vez, ele não teria de ser novamente crucificado. Não teria de voltar a caminhar sobre as águas. Ele disse que não teria de voltar a indicar o caminho às multidões.

«Ele, na realidade, disse isso tudo. E olhem para ele a viver a sua vida sumptuosa. Imaginem-no sem o seu património. O canalha tem milhões: iates, quintas, terrenos e sabe-se lá o que mais? Ele voltou as costas a toda a gente. Esta é para mim uma terrível confirmação.» [tradução: AMC]

O auge da risibilidade no filme – a medir forças com a cena a la Taxi Driver retratada na imagem acima – dá-se quando Chapman faz uma terrível associação, para cultivar o seu estribilho celerado de phoniness realçado por Caulfield. Num diálogo com Jude (papel interpretado pela actriz mal-amada em Hollywood Lindsay Lohan) Chapman fica a saber que naquele mesmo edifício foi rodado o icónico filme de terror A Semente do Diabo (Rosemary's Baby, 1968) de Roman Polanski. Chapman faz a associação entre o filme, o edifício onde germina o diabo, e a vida particular de Polanski, no que se refere ao trágico episódio do assassinato, em 1969, da sua jovem mulher Sharon Tate, grávida no fim de gestação, às mãos dos sequazes do demoníaco psicopata Charles Manson. Manson e as suas visões apocalípticas do fim do mundo a que chamou Helter Skelter, que se baseou no título de uma canção dos Beatles gravada em 1968 para o duplo álbum do mesmo ano The White Album, que por acaso foi integralmente escrita por Paul McCartney, sem qualquer participação de Lennon. O horrível diálogo que consta do argumento é o que se segue, contudo o desastre só é inteiramente assimilável vendo a histriónica interpretação de Leto no diálogo com Lohan:

«– Espera… esse é o tipo a quem Charles Manson matou a mulher. Certo?
– Sharon Tate.
– Pois, ela estava grávida.
– E bonita.
– “Helter Skelter”. O John Lennon vive num edifício onde foi rodado um filme sobre a vinda de Satanás à Terra de um realizador cuja mulher e o filho foram assassinados devido a uma canção do John Lennon. Oh Meu Deus, isto não é uma coincidência. Hoje é o dia. Hoje é o dia.
– É uma maneira de ver as coisas.
– Não há coincidências.**
» [tradução: AMC]
Não há uma única ideia aproveitável, uma técnica narrativa e fílmica inovadoras, um fio condutor da história para além do que se conhece do trágico incidente, nem sequer uma esperada interpretação de encher o olho por Leto – a não ser pela desmesura corporal do actor. Apenas diálogos primários e espúrios, circunlóquios estafados, uma cadência de planos repetitiva e cansativa.

Se no ano passado tive algumas dúvidas em atribuir a classificação de “pior filme do ano” a Ao Anoitecer (Evening, 2007) do realizador húngaro Lajos Koltai, com argumento de Michael Cunningham, baseado num romance de Susan Minot ou a Peões em Jogo (Lions for Lambs, 2007) realizado e protagonizado por Robert Redford (acabou por vencer o primeiro); este ano, ainda no início de Agosto, não vislumbro qualquer hipótese de salvação para esta sequência de imagens inanes a que alguns ousam chamar de filme, cinema, arte.

«Não estava para começar uma discussão. “OK – disse eu. E então de repente lembrei-me de uma coisa. – Oiça – disse eu. – Está a ver os patos naquela lagoa mesmo junto ao Central Park South? Um laguinho pequeno? Por acaso faz ideia para onde vão eles, os patos, quando aquilo fica gelado? Faz ideia, por acaso?” – Sabia bem que havia uma hipótese num milhão.»
J.D. Salinger, À Espera no Centeio, pág. 71.
Notas:
*A 18 de Julho de 1989 a jovem actriz norte-americana Rebecca Schaeffer (1967-1989) era assassinada a tiro no seu apartamento em Hollywood por um perseguidor e assediador chamado Robert John Bardo; ele, tal como Chapman, trazia consigo um exemplar de À Espera no Centeio de Salinger no momento do homicídio. Não há coincidências! Os apelidos da actriz e do realizador do slapstick, diferem apenas num “f” – ah, as liberdades poéticas que isso não me permitiria…

**Já o dizia MRP®, figura de proa do último número da
revista Ler, entrevistada por Carlos Vaz Marques (e que bem lhe fez incluí-la no seu pobre currículo). E, não fosse o filho de Rosemary tecê-las, a celebrada “escritora” foi também merecedora de entrevista pela rival Os Meus Livros.

Referência bibliográfica:
J.D. Salinger, À Espera no Centeio. Algés: Difel, Janeiro de 2005, 226 pp. (tradução de José Lima; obra original: The Catcher in the Rye, 1951).