Querem melhor do que as justificativas para a participação desastrosa da nossa comitiva olímpica (valha-nos Santa Vanessa de Perosinho!): a humidade, o vento, os árbitros ou os juízes do judo, as provas matinais (hora para, em cima da almofada babada, dizer à caminha o quanto gostamos dela – aquele lançador do peso…), e até o desarranjo psíquico. Apenas um, que curiosamente é nigeriano de nascença, teve a humildade de reconhecer que as suas, outrora admiráveis, capacidades como atleta estão diminuídas – a idade não perdoa, especialmente, a um velocista – e que se retira para se dedicar de corpo e alma à sua fundação. Falo, é claro, de Francis Obikwelu.
Mas este regresso efémero – recolherei de imediato à lusa modorra – apenas teve que ver com um acontecimento literário: o meu, declarada e arrebatadamente, escritor preferido – e escusam de escrever na caixa de comentários, como já ocorreu, que é um autor cheio de debilidades – acabou de publicar (saiu para o mercado hoje mesmo no seu país natal) o seu 12.º romance – ou 14.ª obra de ficção para aqueles que preferem separar A Trilogia de Nova Iorque (The New York Trilogy, 1987) em três novelas, que de facto foram inicialmente publicadas em separado, entre 1985 e 1986. Trata-se do prometido Man in the Dark.
Releio incansavelmente o discurso de entrega do Prémio Príncipe de Astúrias de 2006. Concordo com cada linha e assumo que talvez seja por isso que entenda a literatura como a minha principal fuga para estes desvarios e irritações do quotidiano. A fuga ao real através da fantasia, da ilusão, através das histórias que nos são contadas por aqueles a quem concedemos a autoridade para a invasão do nosso imaginário.
Não é que a histórias de A Marquesa saiu às cinco horas não me despertem qualquer tipo de interesse, bem pelo contrário, encanta-me a estética do realismo literário, longe de algumas derivações contemporâneas do realismo: o histérico e o informacional, como crítica James Wood sem dó, nem piedade. Mas, como dizia André Breton, há que regressar aos contos de fadas, criando uma nova forma de contar histórias para gente crescida, retirando-lhes a fortíssima carga de puerilidade, tecendo mais fina a teia da inverosimilhança. No meu entender, Auster consegue-o, umas vezes com estrondoso sucesso, outras, infelizmente, a imperfeição humana, com menor brilhantismo; mas consegue, e isso é comprovável pela sua obra, construir a chamada narrativa do maravilhoso, preconizada pelo surrealista francês.
[Um exemplo cabal da narrativa do maravilhoso é o notável romance de 1978 do escritor chileno José Donoso (1924-1996) Casa de Campo e que foi publicado entre nós pela primeira vez este ano, sob a chancela da editora Cavalo de Ferro. O jogo da Marquesa saiu às cinco (expressão que Donoso retirou de Breton, e que este confessa que resultou de uma confissão de Paul Valéry), o trompe-l'œil, a descontinuidade, são de um empolgante enlevo literário, para além das sucessivas, encantadoras e inabituais interferências do omnisciente autor-narrador no decurso da história, chegando a dialogar com um dos seus inúmeros personagens.
Sobre ele gostava de aqui ter dito alguma coisa, mas a tal modorra/ausência/desencanto não mo vão permitindo.]
Correndo o risco de entrar para o Guiness (onde, decerto, estaria pneumaticamente mal acompanhado…) com o post mais longo de sempre da blogosfera, deixo-vos aqui, um excerto da primeira parte do novo romance de Paul Auster:
«Estou só na escuridão, alterando o mundo na minha cabeça à medida que vou combatendo outro ataque de insónia, outra noite em branco na desolação americana. Lá em cima, a minha filha e a minha neta estão a dormir nos seus quartos, cada uma igualmente só, a Miriam de quarenta e sete anos, a minha única filha, que passou a dormir sozinha nos últimos cinco anos e a Katya de vinte e três, filha única de Miriam, que costumava dormir com um rapaz chamado Titus Small, mas Titus está morto e Katya dorme sozinha com o seu coração partido.
Luz radiosa, depois as trevas. O sol disseminando-se por completo em todos os cantos do céu, seguido pelo negrume da noite, as estrelas silenciosas, o vento açulando os ramos das árvores. Tal é a rotina. Vivo nesta casa há mais de um ano, desde que me deixaram sair do hospital. Miriam insistiu para que eu viesse para cá e no início éramos só nós, com uma enfermeira de dia que cuidava de mim quando Miriam se ausentava para trabalhar. Então, três meses mais tarde, o céu abateu-se sobre Katya, abandonou a escola de cinema em Nova Iorque e regressou a casa para viver com a mãe no Vermont.
Os pais dele deram-lhe o nome do filho de Rembrandt, o rapazinho dos quadros, a criança de cabelos dourados com o barrete vermelho, o discípulo devaneante meditando profundamente sobre as suas leituras, o rapazinho que se tornou num jovem destruído pela doença e que morreu nos seus vinte e tal anos, assim como o Titus de Katya. É um nome assombrado, um nome que deveria desaparecer para sempre de circulação. Penso imensas vezes na morte de Titus, a história horrível daquela morte, as imagens dessa morte, as consequências demolidoras dessa morte na minha neta amargurada, mas não quero ir por aí agora, eu não posso seguir por aí neste momento. Tenho, tanto quanto possível, de atirar isso para longe de mim. A noite ainda é uma criança, e visto que estou aqui deitado a olhar para cima para escuridão, uma escuridão tão negra que torna o tecto invisível, começo a recordar-me da história que iniciei a noite passada. É isso que faço quando o sono recusa aparecer. Deito-me na cama e conto-me histórias. Elas poderão não acrescentar muito, mas enquanto permaneço dentro delas, elas impedem-me de pensar em assuntos que prefiro esquecer. A concentração pode ser um problema, todavia, e cada vez com mais frequência a minha mente afasta-se fortuitamente da história que tento contar rumo às coisas em que não pretendo pensar. Não há nada a fazer. Eu falho repetidas vezes, e essas são mais frequentes do que aquelas em que tenho sucesso, mas isso não significa que não lhe dedique a parte considerável do meu esforço.
Eu pu-lo num buraco. Pareceu-me um bom começo, uma forma promissora de prosseguir com as coisas. Pus um homem adormecido num buraco, e depois verei o que irá acontecer quando ele acordar e tentar rastejar para fora dele. Estou a falar de um buraco profundo no solo, com cerca de três metros de profundidade, cavado de maneira a formar um círculo perfeito, com paredes interiores alcantiladas formadas por terra tão densa e firmemente compactada que a superfície ganhou a textura de barro cozido, ou talvez até de vidro. Por outras palavras, o homem que está lá dentro será incapaz de se desembaraçar do buraco quando abrir os seus olhos. A não ser que esteja equipado com um conjunto de ferramentas de montanhismo – um martelo e espigões de metal, por exemplo, ou uma corda para enlaçar uma árvore que se encontre próxima – mas este homem não dispõe de ferramentas, e a partir do momento em que recuperar a consciência, rapidamente entenderá a natureza complicada da sua situação.
E assim acontece. O homem recobra os sentidos e descobre que está deitado de costas, olhando fixamente um céu crepuscular sem nuvens. Chama-se Owen Bricks e não faz a mínima ideia de como veio aqui parar, não tem memória de ter caído neste buraco cilíndrico, cujo diâmetro ele considera aproximar-se dos três metros e meio. Ele senta-se. Para sua surpresa enverga um uniforme militar feito de uma lá grosseira de tom pardacento. Tem uma boina na sua cabeça e calça um par de botas gastas de cabedal preto, atacadas acima dos tornozelos por um firme nó duplo. Existem duas listas militares em cada manga do seu casaco, indicando que aquele uniforme pertence a alguém com a patente de cabo. Essa pessoa poderá ser Owen Brick, porém o homem no buraco, cujo nome é Owen Brick, não se consegue recordar de, alguma vez na vida, ter servido em algum exército ou combatido numa guerra.
Em busca de uma qualquer explicação, ele assume que lhe infligiram uma pancada na cabeça e que temporariamente perdeu a memória. Quando põe a ponta dos dedos no seu escalpe e começa a procurar por inchaços ou golpes, ele não encontra, porém, qualquer sinal de tumefacção, nada de cortes, pisaduras, nada que sugira que tal lesão haja ocorrido. O que se passa, então? Terá sofrido alguma espécie de trauma debilitante que afectou uma grande parcela do seu cérebro? Talvez. Contudo, ele jamais terá maneira de o saber a não ser que regresse a memória desse trauma. Depois, ele começa a explorar a possibilidade de estar a dormir na sua cama em casa, aprisionado dentro de um qualquer sonho sobrenaturalmente lúcido, um sonho tão verosímil e intenso que a fronteira entre a fantasia e a consciência quase se dissipou. Se isso for verdade, então ele terá apenas de abrir os olhos, levantar-se num ápice da sua cama e ir para a cozinha preparar o seu primeiro café da manhã. Mas como podereis abrir os olhos se eles já estão na realidade abertos? Infantilmente, ele pestaneja algumas vezes, imaginando que esse acto lhe quebraria o feitiço – mas não há nenhum feitiço para quebrar e a cama mágica não é capaz de se materializar.
Um bando de estorninhos passa ao alto entrando no seu campo de visão por cinco ou seis segundos, desaparecendo depois na penumbra. Brick levanta-se para inspeccionar as suas imediações e enquanto o faz sente um objecto protuberante no bolso esquerdo da frente das suas calças. Era uma carteira, a sua carteira, e para além de setenta e seis dólares americanos, continha uma carta de condução emitida pelo Estado de Nova Iorque em nome de um Owen Brick, nascido a 12 de Junho de 1977. Isto só vem confirmar o que Brick já sabia: um homem aproximando-se dos trinta que vive em Jackson Heights, Queens. Ele também sabe que é casado com uma mulher chamada Flora e que nos últimos sete anos ele trabalhou como mágico profissional, actuando de preferência em festas de aniversário de crianças à volta da cidade, sob o nome artístico de Grande Zavello. Estes factos apenas adensam o mistério. Se ele está tão certo de quem é, então como é que ele acabou no fundo deste buraco, vestindo, sem mais, um uniforme de um cabo, sem papéis, chapas ou um cartão de identificação militar que pudessem provar o seu estatuto de soldado?
Não demora muito a aperceber-se de que escapar está fora de questão. A parede circular é demasiado alta e quando a pontapeia para amolgar a superfície e assim criar uma espécie de apoio para o pé que o ajudasse a trepá-la, o único resultado que logra alcançar é um dedo grande do pé dorido. A noite vai caindo velozmente e forma-se um tempo frio, um frio húmido e primaveril que lhe vai penetrando o corpo a pouco e pouco, e embora Brick comece a sentir algum receio, naquele momento ele ainda permanece mais confuso do que receoso. Não obstante, ele não se consegue deter em clamar por ajuda. Até agora, tudo se manteve silencioso à sua volta, sugerindo que ele se encontrava numa remota e despovoada extensão de terreno no campo, sem qualquer som excepto um ocasional gemido de um pássaro e o sussurrar do vento. Porém, como se estivesse ao comando, como se devesse a uma lógica torcida de causa e efeito, no preciso momento em que gritou a palavra SOCORRO, irrompe à distância fogo de artilharia e o céu escurecido iluminou-se por traços de cometas de destruição. Brick ouve metralhadoras, granadas a explodir e por trás de tudo isso, sem dúvida a quilómetros de distância, um coro sombrio de uivantes vozes humanas. Isto é a guerra, apercebe-se, e ele é um soldado nessa guerra, mas sem dispor de arma, nem forma de se defender perante o ataque, e, pela primeira vez desde que acordou dentro do buraco, ele está verdadeiramente assustado.
O tiroteio prossegue por mais de uma hora, depois dissipa-se gradualmente no silêncio. Não muito depois disso, Brick ouve o som desmaiado de sirenes, o que ele entende como sendo carros de bombeiros que acorrem aos edifícios que foram danificados durante o ataque. A seguir as sirenes também param e o silêncio assalta-o uma vez mais. Sente-se gelado e amedrontado, mas Brick está igualmente exausto e depois de ter andado à volta dos confins da sua prisão cilíndrica até as estrelas surgirem no céu, ele estende-se no chão e consegue finalmente adormecer.
Cedo, na manhã seguinte, ele é acordado por uma voz que o chama do topo do buraco. Brick olha para cima e vê o rosto de um homem que sobressai do rebordo, e uma vez que a cara é tudo o que ele consegue divisar, ele assume que o homem está estendido no chão sobre a sua barriga.
Cabo, diz o homem. Cabo Brick, é tempo de se pôr a mexer.
Brick levanta-se e agora que os seus olhos apenas se encontram a mais ou menos um metro do rosto do estranho, ele pode ver que o homem é um tipo de tez escura, de maxilar quadrado, com uma barba de dois dias e que enverga uma boina militar idêntica à dele. Antes de Brick poder protestar, tanto como gostaria de se pôr a mexer, ele não está em posição de fazer algo desse estilo, o rosto do homem desapareceu.
Não te preocupes, ele ouve-o a dizer. Nós tiramos-te daí já a seguir.
Uns instantes depois, segue-se um som de um martelo ou de uma marreta de ferro batendo ruidosamente num objecto de metal, e visto que, a cada martelada sucessiva, o som se ia tornando cada vez mais mudo, Brick imagina se o homem estará a espetar uma estaca no solo. E se for uma estaca, então talvez ser-lhe-á em breve amarrado um bocado de corda, e com essa corda Brick será capaz de trepar para fora do buraco. O estrépito pára, passam-se outros trinta ou quarenta segundos, e então, tal como havia previsto, uma corda desce até junto dos seus pés.»
Paul Auster, Man in the Dark, pp. 1-7
[tradução livre a partir da edição americana: AMC – New York: Henry Holt, first edition, 2008, 192 pp.]
Nota: foi actualizada a lista de obras, editadas em Portugal em 2008, por mim lidas e classificadas, que figura, desde o seu início, na coluna do lado direito deste blogue. Como se pode desde logo constatar, ao contrário das listas de 2006 e 2007, publicadas no Porque e no In Absentia, respectivamente, a lista deste ano, por manifesta falta de tempo e sobretudo de vontade, figura quase desprovida de “notas de leitura”.