quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Pedrada no charco

Repetem-se na televisão os debates políticos anódinos, garantidores de uma bipolaridade geométrica do espectro ideológico, para discutir a justeza das últimas afirmações sobre o estado da justiça em Portugal. Hoje à noite, na Quadratura do Círculo, iremos assistir, por um lado, a uma descomunal zurzidela em António Marinho Pinto pelos discursos (o da semana passada e o de ontem, na abertura do Ano Judicial) e explicações subsequentes sobre a impunidade e os crimes de colarinho branco em Portugal e, por outro, a um ligeiro, porém doloroso, puxão de orelhas ao Presidente da República pela pertinência do discurso também proferido ontem e no mesmo evento, embora esta última reprimenda se vá revelar de menor intensidade (em relação à zurzidela ao primeiro protagonista) para que se sobreleve a falta de legitimidade e, acima de tudo, de carácter do actual bastonário da Ordem dos Advogados – e isto pode parecer que da minha parte há uma obsessão persecutória sobre o referido programa, mas se, de uma forma incessante, o trago à colação neste espaço, isso apenas se fica a dever ao forte impacto do que aí se professa na opinião pública, que lê com alguma dificuldade a redondez do discurso político proferido nos diversos púlpitos dos órgãos de soberania nacionais.

Marinho Pinto não tem medo. Cavaco, apesar da preconizada cooperação estratégica, não se furta ao magistério de influência que os seus poderes presidenciais permitem.
O sistema de comentário político, fortemente delimitado por um dogmatismo de forma do discurso dos titulares de cargos dos órgãos de soberania, apodá-los-á de populistas e de demagogos, emitindo mensagens subliminares sobre a índole difamatória das suas afirmações, porque fogem ao cânone discursivo das falinhas mansas e da vacuidade generalista.
Ontem, na abertura do Ano Judicial, Marinho Pinto reiterou, e bem, as afirmações que havia produzido sobre a impunidade dos poderosos. Cavaco Silva, depois do excelente discurso de tomada de posse de 9 de Março de 2006, voltou a insistir na clarificação e no saneamento dos sistemas judicial e judiciário portugueses, apelando à transparência e à perceptibilidade pelos cidadãos das reformas na justiça, ao envolvimento dos actores judiciários na concepção dessas reformas e ao rigoroso escrutínio dos seus resultados.
O Presidente da República pôs o dedo na ferida, não se limitando a referir em abstracto e de forma genérica os males que enfermam a dita justiça em Portugal. Um desses males foi especialmente salientado: os expedientes dilatórios.

«A justiça não pode estar à mercê daqueles que recorrem a todos os instrumentos processuais como meio dilatório para impedir ou retardar o trânsito em julgado das decisões judiciais. O Estado de direito não pode ser refém daqueles que dispõem de maiores recursos.»

Cavaco foi além da já alertada e sentida impunidade dos poderosos na prática reiterada da corrupção e de crimes económicos e financeiros no nosso país. Referiu-se, e muito bem – embora o tenha feito de uma forma subentendida, que em nada prejudicou a inteligibilidade da mensagem –, à complacência e/ou à cumplicidade criminosa entre determinadas indivíduos com a tutela da investigação, da acção penal ou com a autoridade de proferir decisões judiciais e jurisprudenciais, envolvendo os respectivos organismos a que se encontram adstritos pelo exercício das suas funções, e um grupo de pessoas que, pela incomensurabilidade de recursos (financeiros e de acesso privilegiado aos meios de justiça por uma longa e espúria teia de relacionamentos, vulgo compadrio ou tráfico de influências) se serve da justiça para aniquilar aqueles que, de forma estrutural, jamais os possuirão ou, no caso de os possuírem, estes são-lhes incomparavelmente inferiores, de uma desproporcionalidade gritante que anula qualquer hipótese de equidade na administração da justiça.

Que, uma vez mais, não se procure transformar a pedra com que se pretende abanar o charco num irrisório e solúvel grão de areia, rápida e inexoravelmente absorvido pela sua podridão.

Os dados foram lançados. E, ao contrário da aparência reflexiva (ou de apelo à reflexão) com que a classe política sói apodar e interpretar estes efectivos gritos de alerta, criando comissões de estudo bem remuneradas que normalmente se extinguem sem resultados práticos, chegou a altura de agitar as águas que, pela tão conveniente inacção, se vão tornando cada vez mais inquinadas, fétidas e opacas, insusceptíveis de purificação num futuro próximo.
Neste momento e de forma urgente, este país necessita de uma acção firme e incisiva, sob pena de já não ter remedeio, transformando-se em definitivo e com indulgência numa oligarquia dificilmente sanável nas próximas décadas, a não ser pela força, pelo sangue, por uma revolução profunda e dolorosa, de todo não desejável, mas cuja conjectura já esteve mais longe das mentes dos denominados portugueses anónimos, o povo – a rocha.

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