quinta-feira, 29 de julho de 2010

Aquela cabeça…

Contava-se frequentemente entre o meu grupo restrito de amigos que emergiu da turba profissional, e como forma de incutir a boa disposição quase automática entre os presentes, uma história recente – que agora já tem bem mais de uma década – produzida por uma visita ministerial ao nosso local de trabalho, em que, como seria de esperar, tanto pelo cumprimento do protocolo, como pela incrustada prática académica do fazer-se notar, todo o directório dos ungidos pela cátedra se uniu ao seu séquito. A dada altura, o Ministro, em plena sala de convívio, entre hors d’œuvre e copos de plástico agradecidamente abastecidos a champanhe – once in a lifetime, diriam uns para os outros, para destoar do linguajar de soberba dos aperitivos –, interpelou um circunstante (membro do nosso círculo restrito) sobre se aquela figura de cabelos brancos, que se ria entre rissóis de camarão e guardanapos de papel, era a pessoa que ele, Ministro, pensava tratar-se. Perante a resposta afirmativa, declarou, em primeiro lugar, que estava impressionado pelo impecável estado de conservação da criatura, para, logo de seguida, pormenorizar a sua relação que evoluiu de aluno/professor para a de colegas de profissão, terminando com a frase: «Um homem inteligentíssimo e com uma cultura bem acima da média, todavia sempre preferiu a sinuosidade do caminho alternativo à recta para chegar do ponto A ao ponto B», a que acrescentou, despedindo simultaneamente o interlocutor de ocasião: «Ah, aquela cabeça…»
Como testemunha ocular, e dada a envolvente da história, posso assegurar sem necessidade de contraprova, a tal “cabeça” não era a de Christopher Nolan, até porque tem menos quarenta anos de bombardeamentos sinápticos e trabalha para o reconhecimento de outras academias.
É isso mesmo, não é necessário um enorme esforço de concentração, em poucas linhas confessei que já me foi dada a oportunidade de ver o filme de que todos falam na actualidade: A Origem (Inception, 2010) do realizador britânico (n. 1970) Christopher Nolan.
Nolan, apesar da ainda jovem idade, já nos obsequiou com sete longas-metragens, entre as quais vi, claramente vistas, quatro: Memento (2000), Insomnia (2002), O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008), e este último que atrás referi; desconfio se realmente vi Batman – O Início (Batman Begins, 2005), dada a profusão de filmes, actores e realizadores que, respectivamente, versaram, encarnaram e dirigiram o morcego moralista de Gotham; não vi os restantes dois, entre eles o muito aplaudido O Terceiro Passo (The Prestige, 2006).
Em A Origem, há uma frase lapidar que nos foi sendo bombardeada nos três ou quatros trailers que há quase seis meses foram sendo criteriosamente projectados nas salas de cinema:
«Qual é o parasita mais resiliente? Uma ideia. Uma simples ideia provinda da mente humana pode construir cidades. Uma ideia pode transformar o mundo e reescrever todas as regras. E é por isso que tenho de a roubar.» [tradução: AMC]
Uma ideia. Injecção de sonhos. Arquitectura de realidades alternativas. Imaginação em socalcos. Resultado: muita parra e pouca uva.
Há uma frase que retirei de um dos livros que neste momento vou desbravando – neste caso em particular com algum deleite pelo desafio intelectual, num momento em que necessito mais do que nunca da leveza espiritual de uma sitcom para confortar a minha mente em efervescência –, que, apesar da complexidade temática, da exigência de reflexão absoluta e de tudo o que foi dito em páginas anteriores da obra que a explicita e circunstancia, caracteriza bem os nossos tempos: «Irrito, logo existo.» (cf. Peter Sloterdijk, Cólera e Tempo, ed. Relógio D’Água, 2010). E Nolan levou-me à exasperação pela tortuosidade obesa de ideias, que mais não é que uma carapaça espaventosa e arraialesca vazia de conteúdo. A Origem, é uma peça meta-fílmica composta em duas horas e meia, que de facto poderia ser traduzida por “documentário de uma ideia” (jamais por obra de arte cinematográfica), como se tratasse de uma prelecção de filosofia do cinema. Aliás, o tom eminentemente preleccionista do filme resultou, porventura, de uma consciencialização de Nolan pela impotência imagética em contar a história, por mais ou menos arabescos visuais e sonoros que introduzisse; muito embora se possa ter apercebido de que o isco de apelo às massas estivesse no ponto certo para mais um retumbante êxito comercial – estava certo, a frieza dos números não o desmente; a horda de admiradores medrou que até dá gosto.
Na minha humilíssima opinião de aficionado da coisa fílmica, Nolan poderia ter aprendido com o ainda recente fenómeno de ascensão e queda em três actos dos manos Wachowski, por um lado, em como se constrói uma história na intrincada dialéctica ficção tecnológica/metaficção, sintetizada no sucesso quase unânime de Matrix (1999), como, por outro, nos desastres subsequentes pelo vazio narrativo de The Matrix Reloaded e The Matrix Revolutions (ambos de 2003). Depois, apesar dos milhões arrecadados, mediante a lembrança de um aforismo ultra-universal de que “o dinheiro não traz a felicidade”, aconselha-se, para a sua saúde psíquica, que o jovem Christopher deixe repousar aquela mente que vai sendo estorcegada pela popularidade filistina do espalhafato, e que caminha em progressão geométrica para o paroxismo do nebuloso e hermético, e não para a, decerto pretendida, abstracção, obviamente admissível sob o ponto de vista estético.
Em suma, a auto-assunção da genialidade, tem estes efeitos colaterais. Neste momento, apenas subjaz a questão: O que se seguirá? Mais um projecto sobre o famoso rato alado. E quem, desta feita, será o cordeiro sacrificial? “Ah, aquela cabeça…”
PS – Peço as minhas mais sinceras desculpas pela forma brusca como terminei o texto, a cheirar a incompletude de argumentos que reforcem a minha opinião sobre o filme, mas vou ver se o meu pião, que ainda há pouco rodava lá fora sobre uma mesa de pinho pacense, continua a girar… É mesmo importante que o faça… agora.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Booker Prize 2010 – semifinalistas

Foi anunciada há poucos minutos a lista de romances semifinalistas que concorrem ao Booker Prize de 2010, patrocinado pelo grupo financeiro Man desde 2002. Para o vencedor, a anunciar no próximo dia 12 de Outubro*, está reservado um prémio monetário de 50.000 libras esterlinas, que corresponde, aproximadamente, a 60.000 euros.
Eis o habitualmente designado por “Booker’s dozen”** seleccionado pelo júri, que este ano é presidido por Andrew Motion, e que inclui 13 títulos de outros tantos autores (por ordem alfabética do apelido do autor – por enquanto, apenas uma obra está editada no mercado nacional, surgindo na listagem com o título em português):

  • Peter Carey, Parrot e Olivier na América (ed. port. Gradiva; Parrot and Olivier in America)
  • Emma Donoghue, Room
  • Helen Dunmore, The Betrayal
  • Damon Galgut, In a Strange Room
  • Howard Jacobson, The Finkler Question
  • Andrea Levy, The Long Song
  • Tom McCarthy, C
  • David Mitchell, The Thousand Autumns of Jacob de Zoet
  • Lisa Moore, February
  • Paul Murray, Skippy Dies
  • Rose Tremain, Trespass
  • Christos Tsiolkas, The Slap
  • Alan Warner, The Stars in the Bright Sky

Notas: *Os seis finalistas serão anunciados no próximo dia 7 de Setembro.
**designação adoptada nos anos mais recentes pelos organizadores para a longlist, que tem a sua origem na expressão inglesa do século XIII “baker’s dozen” ou “dúzia dos padeiros” (tradução literal), que em Portugal se designa por “dúzia de frade”, que significa treze (uma dúzia de treze).
***(act.) Mais informação em português, aqui.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Em colapso

Hoje (ontem) ficou a saber-se que Pedro Mexia, subdirector da Cinemateca Portuguesa, abandonou as coisas muito lá da casa pelos expiatórios motivos pessoais. E não se atrevam a esquadrinhar os fundamentos que conduziram à demissão de Mexia de um cargo público – assuntos pessoais, assunto encerrado. E por favor, que não se aproveite este momento para engendrar a lusa questiúncula da escassez de verbas ou de uma incompatibilidade de carácter, ou até política de dirigente(+)/dirigente(-): um argumento rendilhado, novelesco e com toque melodramático, de conflitos ou de desinteligências com a nova directora (ver o que aqui proferi sobre esta eminência parda) empossada há meio ano – a tal que, por ser amiga pessoal do vulto Bénard, ganhou num ápice o estatuto de cinéfila e de erudita da coisa fílmica, e que o magnânimo aparelho socialista colocou sob o foco ardente do cinematógrafo.
Os motivos foram pessoais e há que aceitá-los porque, desta feita, a sua invocação até pode ser manifestamente verdadeira, e ninguém está disposto a, e com coragem para, contrariar a potencial pátina de verdade.
Como indicou a TSF, a notícia encontrava-se postada, sob a forma de uma singela e lacónica mensagem,  no blogue pessoal do demissionário.
Contudo, não posso negar as evidências e esconder a agitação que abalroou as minhas defesas da emoção desamarrada. A notícia do foro lisboeto-empolado teve uma virtude, a de me poder voltar a inebriar com o Lei Seca – motivos pessoais confessáveis e não financiados pelos impostos da Nação estiveram na sua origem, id est, afastamento da blogosfera, um invencível cansaço intelectual pelas expostas melancolias saturninas e pelos epigramas de índole ciorânica (permita-se-me a colagem ao eminente, e maior polímato vivo, George Steiner, para fazer dele a minha opinião sobre a arengada aforística do romeno da guarda de ferro – cf. “Da Concisão”, George Steiner em The New Yorker, Gradiva, 1.ª edição). Abalançado pela prosa curta, esquadrinhei alguns textos e detive-me nestas duas frases de uma mesma talhada cinéfila, a derrotista e a sentenciosa, respectivamente: «Chegámos a finais de Julho e confirma-se: este ano cinematográfico é fraco» e «Scorsese e von Trier entraram em colapso». Quanto ao dinamarquês, e fazendo uma pequeno esforço de memória sobre a sua filmografia, ele próprio é a personificação do colapso – aquele último onde uma auto-excisão é absurdamente dedicada a Tarkovski... ah, então aquela fantochada de antanho com a gritante (é literal) islandesinha cega é de pôr os cabelos em pé. No que respeita ao italo-americano, faço votos para que continue a colapsar desta forma por muitos e bons anos. E, a talho de foice, deixo aqui ficar o texto de um dos raríssimos críticos cinematográficos cujas críticas me servem de guia – embora, nesta matéria, preserve até ao ridículo do absoluto a minha independência estética. Eis Roger Ebert sobre Shutter Island, apreciação publicada no Chicago Sun-Times a 17 de Fevereiro deste ano:
«“Shutter Island” starts working on us with the first musical notes under the Paramount logo’s mountain, even before the film starts. They’re ominous and doomy. So is the film. This is Martin Scorsese’s evocation of the delicious shuddering fear we feel when horror movies are about something and don’t release all the tension with action scenes. In its own way it’s a haunted house movie, or make that a haunted castle or fortress. Shutter Island, we’re told, is a remote and craggy island off Boston, where a Civil War-era fort has been adapted as a prison for the criminally insane. We approach it by boat through lowering skies, and the feeling is something like the approach to King Kong’s island: Looming in gloom from the sea, it fills the visitor with dread. To this island travel U.S. marshal Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) and his partner Chuck Aule (Mark Ruffalo).
It’s 1954, and they are assigned to investigate the disappearance of a child murderer (Emily Mortimer). There seems to be no way to leave the island alive. The disappearance of one prisoner might not require the presence of two marshals unfamiliar with the situation, but we never ask that question. Not after the ominous walls of the prison arise. Not after the visitors are shown into the office of the prison medical director, Dr. Cawley, played by Ben Kingsley with that forbidding charm he has mastered.
It’s clear that Teddy has no idea what he’s getting himself into. Teddy – such an innocuous name in such a gothic setting. Scorsese, working from a novel by Dennis Lehane, seems to be telling a simple enough story here; the woman is missing, and Teddy and Chuck will look for her. But the cold, gray walls clamp in on them, and the offices of Cawley and his colleagues, furnished for the Civil War commanding officers, seem borrowed from a tale by Edgar Allan Poe.
Scorsese the craftsman chips away at reality piece by piece. Flashbacks suggest Teddy’s traumas in the decade since World War II. That war, its prologue and aftermath, supplied the dark undercurrent of classic film noir. The term “post-traumatic shock syndrome” was not then in use, but its symptoms could be seen in men attempting to look confident in their facades of unstyled suits, subdued ties, heavy smoking and fedoras pulled low against the rain. DiCaprio and Ruffalo both affect this look, but DiCaprio makes it seem more like a hopeful disguise.
The film’s primary effect is on the senses. Everything is brought together into a disturbing foreshadow of dreadful secrets. How did this woman escape from a locked cell in a locked ward in the old fort, its walls thick enough to withstand cannon fire? Why do Cawley and his sinister colleague Dr. Naehring (Max von Sydow, ready to play chess with Death) seem to be concealing something? Why is even such a pleasant person as the deputy warden not quite convincingly friendly? (He’s played by John Carroll Lynch, Marge’s husband in “Fargo,” so you can sense how nice he should be.) Why do the methods in the prison trigger flashbacks to Teddy’s memories of helping to liberate a Nazi death camp?
These kinds of questions are at the heart of film noir. The hero is always flawed. Scorsese showed his actors the great 1947 noir “Out of the Past,” whose very title is a noir theme: Characters never arrive at a story without baggage. They have unsettled issues, buried traumas. So, yes, perhaps Teddy isn’t simply a clean-cut G-man. But why are the others so strange? Kingsley in particular exudes menace every time he smiles.
There are thrilling visuals in “Shutter Island.” Another film Scorsese showed his cast was Hitchcock’s “Vertigo,” and we sense echoes of its hero’s fear of heights. There’s the possibility that the escaped woman might be lurking in a cave on a cliff, or hiding in a lighthouse. Both involve hazardous terrain to negotiate, above vertiginous falls to waves pounding on the rocks below. A possible hurricane is approaching. Light leaks out of the sky. The wind sounds mournful. It is, as they say, a dark and stormy night. And that’s what the movie is about: atmosphere, ominous portents, the erosion of Teddy’s confidence and even his identity. It’s all done with flawless directorial command. Scorsese has fear to evoke, and he does it with many notes.
You may read reviews of “Shutter Island” complaining that the ending blindsides you. The uncertainty it causes prevents the film from feeling perfect on first viewing. I have a feeling it might improve on second. Some may believe it doesn’t make sense. Or that, if it does, then the movie leading up to it doesn’t. I asked myself: OK, then, how should it end? What would be more satisfactory? Why can’t I be one of those critics who informs the director what he should have done instead?
Oh, I’ve had moments like that. Every moviegoer does. But not with “Shutter Island.” This movie is all of a piece, even the parts that don’t appear to fit. There is a human tendency to note carefully what goes before, and draw logical conclusions. But – what if you can’t nail down exactly what went before? What if there were things about Cawley and his peculiar staff that were hidden? What if the movie lacks a reliable narrator? What if its point of view isn’t omniscient but fragmented? Where can it all lead? What does it mean? We ask, and Teddy asks, too.»

Nota: Já agora, eis as minhas breves impressões deixadas neste blogue sobre o mesmo filme.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A Imaginação Moral

«Ao contrário de muitos críticos contemporâneos que durante os últimos anos adquiriram uma reputação súbita nos Estados Unidos, Steiner não se dispõe a ler para ficar desapontado, e nunca encarou a actividade crítica como uma oportunidade para adoptar posturas profundamente desdenhosas.»
Robert Boyers, “Introdução”, p. 14. In George Steiner, George Steiner em The New Yorker [Lisboa: Gradiva, 1.ª edição, Junho de 2010, 417 pp; tradução de Joana Pedroso Correia e Miguel Serras Pereira; obra original: George Steiner at The New Yorker, 2008.]
Muito haveria para dizer partindo do curto período atrás citado, retirado do prefácio de autoria do coordenador (não, não se trata do eufemista Louçã) da antologia de ensaios escritos para a revista norte-americana The New Yorker por George Steiner e que, com louvor e consideração – não sem uma pequena reprimenda pela contumaz preguiça editorial de marca lusa* –, a Gradiva traduziu e publicou há cerca de um par de semanas em Portugal, sobre a ortodoxia e o reaccionarismo que se apoderou da crítica literária praticada em solo americano e que se estendeu, de forma pandémica, à crítica literária ocidental, inclusivamente nos cantinhos geográficos propensos à expansão da mediocridade dos visionários de um só olho. Discute-se e muito a técnica, ignora-se a estética e exalta-se a ética literárias – por outras palavras, fazendo uso do conhecimento quase científico da primeira, subordina-se a segunda a um conjunto de interesses de índole diversa que se subsumem nos princípios prevalecentes da terceira num dado momento. Descarta-se a imaginação em detrimento de um manual de bons costumes, de uma cartilha que implicitamente homenageia a obtusidade filistina, pois a arte – imaginação, criatividade, integridade estilística – é menorizada em favor de apriorismos políticos pseudoculturais, ou melhor, segue-se uma agenda económica, garroteada pelos subsídio-saqueadores, e, sobretudo, política, travestida de uma verdade oracular pela untuosa eminência auto-alardeada, apoiada pelo inebriante caleidoscópio contemporâneo dos novos canais promocionais – uma espécie de proliferação acelerada de Rui “brilhantina” Santos, ainda de menor calibre, com acesso privilegiado e exclusivo, porém irrestrito, a uma Delfos, que bem pode ser a Amadora ou Gondomar.
Os que confundem este movimento com a democratização da opinião, são os mesmos que, no seu afã libertário (contrário às convicções íntimas), acabam por criar mitos autocráticos, os monstros da opinião postados em torres de marfim, emprenhando um conjunto de seguidores cegos pelo falso brilho do logro bem vendido, e ainda mais medíocres que o justo progenitor, o que é bem mais atentatório para a evangelizada liberdade de expressão – causa arrebatada pela percebida autoridade moral publicitada, que mais não é que um narcisismo degenerado, porque a distorção mental é de tal ordem que não lhes permite sequer divisar a sua própria imagem numa hesitante superfície reflectora.
É assim a arte na mão dos políticos, burocratas e plutocratas (que proliferam pela actividade dos dois primeiros grupos), roubada aos artistas pelos sequazes da domação da criatividade. Passo a passo vai-se construindo o decálogo de onde emanará a feroz liturgia: e venha a nós a vossa crítica, ó sumo-sacerdote do realismo novecentista, engrandece os livros escritos pelos teus correligionários, publicados pelo grupo editorial da tua mulher e amigos, reprova a abstracção como liberdade criativa. Não denegarás o discurso indirecto livre…
*Nota: a edição lusa deste livro, para além de alguns pecadilhos de tradução detectados logo no primeiro e gigantesco ensaio (por exemplo, troca-se “MI5” por “M15”), enferma do habitual nacional-forretismo, um dos principais derivados do nacional-porreirismo. De facto, os responsáveis da Gradiva não só eliminaram o essencialíssimo “índice remissivo” – peça fundamental em obras com esta configuração –, como também suprimiram um importante “anexo” que continha, na edição original, a listagem completa de todos os artigos publicados por Steiner na icónica revista norte-americana. Assim como, em nenhuma parte do texto em português se faz referência à, jamais negligenciável, data de publicação – percorri o livro de lés a lés e… nada de datas, que permitiriam descortinar a envolvente e o enquadramento histórico no momento em que os escritos foram produzidos e publicados.
Assim sendo, deixo aqui ficar um auxiliar de minha lavra [tudo o que figurar entre parêntesis rectos], para aqueles que fazem tenções de se aventurar na 1.ª edição desta obra (esperando, porventura em vão, uma correcção para a 2.ª):
–––O Sacerdote da traição [sobre Anthony Blunt; “The Cleric of Treason”; 08/12/1980]
–––Wien, Wien, Nur du Allein [sobre Anton Webern & Viena; 25/06/1979]
–––De Profundis [sobre o Volume III do Arquipélago de Gulag de Aleksandr Solzhenitsyn; 04/09/1978]
–––Espiões de Deus [sobre O Factor Humano de Graham Greene; “God’s Spies”; 08/05/1978]
–––Da Casa dos Mortos [sobre Albert Speer; “From the House of the Dead”; 19/04/1976]
–––De Mortuis [sobre Philippe Ariès & O Homem Perante a Morte; 22/06/1981]
–––Mil Anos de Solidão [sobre Salvatore Satta; “One Thousand Years of Solitude”; 19/10/1987]
–––Matar o Tempo [sobre Mil Novecentos e Oitenta e Quatro de George Orwell; “Killing Time”; 12/12/1983]
–––Danúbio Negro [sobre Karl Kraus & Thomas Bernhard; “Black Danube”; ”21/07/1986]
–––B. B. [sobre Bertolt Brecht; 10/09/1990]
–––Uneasy Rider [sobre Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas de Robert M. Pirsig; 15/04/1974]
–––Uma Ave Rara [sobre Guy Davenport; “Rare Bird”; 30/11/1981]
–––Cartas Perdidas [sobre John Barth; “Dead Letters”; 31/12/1979]
–––Tigres no Espelho [sobre Jorge Luis Borges; “Tigers in the Mirror”; 20/06/1970]
–––Do Cambiante e do Escrúpulo [sobre Samuel Beckett; “Of Nuance and Scruple”; 27/04/1968]
–––Aos Olhos do Oriente [sobre Aleksandr Solzhenitsyn & outros russos; “Under Eastern Eyes”; 11/10/1976]
–––Homem-Gato [sobre Louis-Ferdinand Céline; “Cat Man”; 24/08/1992]
–––O Amigo de um Amigo [sobre Walter Benjamin & Gershom Scholem; “The Friend of a Friend”; 22/01/1990]
–––Uma Sexta-Feira Má [sobre Simone Weil; “Bad Friday”; 02/03/1992]
–––O Jardim Perdido [sobre Claude Lévi-Strauss; “The Lost Garden”; 03/06/1974]
–––Da Concisão [sobre E.M. Cioran; “Short Shrift”; 16/04/1984]
–––Velhos Olhos Cintilantes [sobre Bertrand Russell; “Ancient Glittering Eyes”; 19/08/1967]
–––Uma História de Três Cidades [sobre as Memórias de Elias Canetti; “A Tale of Three Cities”; 22/11/1982]
–––Le [sic] Morte d’Arthur [sobre Arthur Koestler; “La Morte D’Arthur”; 11/06/1984]
–––As Línguas do Homem [sobre Noam Chomsky; “The Tongues of Man”; 15/11/1969]
–––Uma Morte de Reis [sobre Xadrez; “A Death of Kings”; 07/09/1968]
–––Dar a Palavra [sobre James Murray & o Oxford English Dictionary; “Give the Word”; 21/11/77]
–––Uma Vida Examinada [sobre Robert Hutchins & a Universidade de Chicago; “An Examined Life”; 23/10/1989]

Imagem: (cf. Metamorfoses de Ovídio) reprodução de Eco e Narciso, de Nicolas Poussin (1594-1665), circa 1630, óleo sobre tela (Museu do Louvre, Paris).

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Rotten Apple

O homem de cabelo branco e o Sr. Francisco Costa – como hoje nos foi apresentado – acabaram de vender uma maçã podre por onze milhões de euros, a que acresce uma promissora maçã, porém ainda verde, humanizada em Coelho.
Mas até no podre se descobrem novas virtudes, para além do rico húmus que mata de imediato a fome da terra estéril, é de cautela guardar-se uma boa talhada da rejeitada maçã (25%), por muito deplorável que seja o seu pútrido estado; não vá o tempo e a humidade nortenha transformar em pomar o que se rejeitou por bichado.
Assim se vão calando as vozes da possível sedição, ficando Francisco Costa a enxertar o jovem bacelo com homens de boa casta, para que a podridão não se alastre (é esta a futura Blimunda leonina, de cenho franzido, jejuando pela manhã, apanhando o bicho antes que roa a maçã, assim lhe tragam o pão ao fim da matina) e o do cabelo branco, que no vai e vem do imaculado e compassivo mundo da banca, vai carregando o alforge repleto de virtudes para afastar a corrupção das almas, repetindo sempre que necessário uma nova histrionia: Johnny Rotten, never (after all, he is an antichrist), tal como outro, nome de santo e de Papa, era forever.

domingo, 4 de julho de 2010

O regresso do fedelho

Tem sido lento o processo criativo do autor norte-americano, nascido em Los Angeles em 1964, Bret Easton Ellis. De facto, Ellis acabou de publicar o seu sétimo romance, depois de se haver estreado auspiciosamente com o seu minimalista e desbastado de eloquência lírica, epítome da, na altura, recém-criada geração MTV, Menos que Zero (Less Than Zero, 1985) quando tinha apenas vinte anos. Seguiram-se o fraquinho As Regras da Atracção (The Rules of Attraction, 1987), o tenebrosamente estranho e prodigioso Psicopata Americano (American Psycho, 1991), o modesto e sem qualquer valor acrescentado literário (um novo conceito, porventura mensurável) Os Confidentes (The Informers, 1994) – muito menos o filme que nele se baseou, o paupérrimo Os Informadores, do australiano Gregor Jordan –, o magnífico, cru e tão houellebecquiano Glamorama (1998) e, finalmente, o thriller existencialista, de certa forma desequilibrado pela estranha mescla de sentimentos contraditórios que me assomaram durante a sua leitura, e carregado de um pathos inédito em Ellis, Lunar Park (2005) – afinal, o homem não é de pedra, frio, hedonista e sem adiposidades sentimentais, e talvez por aquele ter sido escrito durante os seis anos de quase idílio amantético com o escultor Michael Wade Kaplan (1974-2004), que terminou de forma abrupta, Kaplan morre com apenas trinta anos, vítima de um fulminante ataque cardíaco; na realidade, este triste episódio acaba por fazer despertar o autor do torpor passional e pôr um fim à longa travessia do deserto em assuntos literários.
Em 2010, Ellis reaparece no mercado editorial com Imperial Bedrooms (uma vez mais tendo Elvis Costello como inspiração para o título), que o autor confirma, para depois parecer contestar a evidência – dado porventura o anátema normalmente associado ao vocábulo –, tratar-se de uma sequela da sua obra de estreia, incluindo os jovens personagens frívolos, mimados, degradantes e celerados, agora na idade adulta na Los Angeles da actualidade, um Menos Que Zero (na sua mais recente reedição) com upgrade: um par de cornos. Eles são adultos diplomados, com mais posses e poder, e por isso com maior capacidade de abrir o leque de horrores psicopatológicos. Senão atente-se no parágrafo de abertura da obra:

«Eles fizeram um filme sobre nós. O filme baseou-se num livro escrito por alguém que conhecíamos. O livro baseava-se numa história simples sobre quatro semanas passadas na cidade em que crescemos e na sua grande parte reproduzia um retrato fiel. Foi catalogado como ficção mas apenas alguns detalhes foram alterados, os nossos nomes não o foram e não havia nada nele que não houvesse ocorrido. Por exemplo, houve de facto a projecção de um filme snuff naquele quarto em Malibu numa tarde de Janeiro, e sim, eu abandonei o quarto e dirigi-me ao terraço mirando distraidamente o Pacífico onde o autor tentou consolar-me, assegurando-me que os gritos produzidos pelas crianças ao serem torturadas eram falsos, mas ele sorria enquanto proferia tudo isto e eu tive de me retirar. Outros exemplos: a minha namorada na realidade atropelou um coiote nos desfiladeiros sob Mulholland e foi fielmente relatado um jantar de natal com a minha família no Chasen’s que deplorei e, por casualidade, contei ao autor. E uma rapariga de doze anos foi mesmo violada em grupo – eu estava com o autor naquele quarto de West Hollywood, que no livro apenas descreve uma vaga relutância de minha parte e falhou em descrever com exactidão aquilo que eu realmente sentira nessa noite – o desejo, o choque, o medo que eu tinha do autor, um rapaz louro e solitário por quem a rapariga com que eu andava estava meio apaixonada. Mas o escritor jamais corresponderia ao seu amor porque estava demasiado perdido na sua própria passividade para estabelecer a ligação de que ela necessitava, e assim ela regressou a mim, mas na altura já era tarde de mais, e como o escritor ficou ressentido quando ela voltara a dar-me atenção, eu tornei-me no belo e nebuloso narrador, inabilitado no amor e na bondade. Foi desta forma que me tornei no perturbado rapaz das festas que vagueia pelos despojos, com sangue a correr do nariz, fazendo perguntas que não carecem de resposta. Foi desta forma que me tornei no rapaz que nunca compreendeu o funcionamento das coisas. Foi desta forma que me tornei no rapaz que jamais conseguiria manter uma amizade. Foi desta forma que me tornei no rapaz que não pôde amar a rapariga.» [tradução impudicamente livre: AMC, 2010]
Bret Easton Ellis, Imperial Bedrooms, pp. 3-4 [New York: Knopf, first edition, June 2010, 192 pp.]